Nat Muniz parece ter nascido para desenhar temas regionais e em especial cobras. |
Alan Moore conta que, quando era criança,
ficou fascinado com um show em um circo em que um músico tocava um violino e um
cavalo dançava. O cavalo parecia ter sido tão bem adestrado que acompanhava o
ritmo da música: se o violnista tocava mais lentamente, ele fazia movimentos
mais lentos, se acelerava, o cavalo acelerava também.
Já adulto, ele descobriu que o que
acontecia era exatamente o contrário. O músico ensinara o cavalo a dar alguns
pulinhos – e só isso. Na verdade, era o violinista que acompanhava o ritmo dos
movimentos do cavalo.
Segundo Alan Moore, o que acontece na relação entre o roteirista e o desenhista é exatamente assim. Parece que o roteirista está ditando tudo e o desenhista se adaptando ao roteiro, quando na verdade está acontecendo o contrário: o escritor está adaptando o roteiro ao desenhista. Para isso, é essencial que o roteirista saiba com quem está trabalhando e quais as suas maiores qualidades.
A história do Astronauta tinha tudo que o JJ Marreiro gostava de desenhar.
Eu cheguei a ver o primeiro roteiro que Moore escreveu para o compadre Joe Bennett no título Supreme. Logo no início vinha uma observação: “Joe, eu percebi que você adora desenhar prédios expressionistas, então vamos colocar muitos nessa história”.
Quando escreveu uma história do Arqueiro
Verde, para Klaus Jason, Alan Moore aproveitou ao máximo a capacidade desse
desenhista, que durante anos foi arte-finalista de Frank Miller no Demolidor,
para ambientação urbana. A história é repleta de prédios nos mais diversos
ângulos.
Escrever um bom roteiro começa por conhecer
o desenhista e saber no que ele é bom e aproveitar isso na história. Já repararam que alguns dos melhores, senão os
melhores trabalho de muitos desenhistas, foram realizados com Alan Moore?
A história de Moore para Klaus Jason aproveitava ao máximo a ambientaçã urbana.
Essa estratégia não só tira do desenhista o
que ele tem de melhor como também faz com que ele se empolgue ao desenhar a HQ.
Um exemplo pessoal. Quando fui convidado a
escrever uma história para o álbum MSP+50, em homenagem a Maurício de Sousa,
fiquei muito feliz, e mais feliz ainda ao descobrir que seria desenhada pelo
grande amigo JJ Marreiro, cujo trabalho admiro muito.
Entretanto, o peso da camisa, como se diz
no futebol, acabou virando um problema. A responsabilidade de desenhar para um
álbum tão importante fez o JJ travar. Eu escrevi dois roteiros e ele não
desenhava.
Muitos diálogos e diagramação diferenciada na história para Kaic.
Resolvi a situação usando a dica de Alan
Moore sobre o cavalo dançarino: escrevi um novo roteiro colocando na história
tudo que o JJ mais gosta. Assim, na história, o Astronauta encontra um
apetrecho alienígena, a máquina do talvez, que mostra o que ele seria se não
fosse um cosmonauta. Em uma versão ele era um cowboy, em outra versão um
detetive ao estilo Sherlock Holmes etc...
Como sei que JJ Marreiro adora esses
personagens clássicos, sabia que ele adoraria o roteiro e foi isso que
aconteceu. Ele se divertiu tanto desenhando a história que acabou esquecendo a
responsabilidade que era fazer um trabalho em homenagem aos 50 anos do Maurício
de Sousa.
Isso, entretanto, não significa manter o
desenhista numa zona de conforto. A partir daquilo que ele gosta de fazer,
podemos propor inovações, algo que ele não está acostumado a fazer.
Mais uma página de Nat Muniz, só porque eu gostei muito.
Recentemente, fui convidado a escrever
roteiros para a revista do coletivo AP Quadrinhos e analisei o estilo das
pessoas que iriam ficar responsáveis por desenhar minhas histórias. Também
conversei com eles.
No caso do Kaic percebi que ele gosta de
mostrar personagens, cenas de diálogos. Percebi também que havia abertura para
uma diagramação mais arrojada. Fiz um roteiro que envolvia principalmente
diálogos e estimulava uma diagramação inovadora. O resultado surpreendeu e me
pareceu inclusive acima dos trabalhos anteriores dele.
No caso da Nat Muniz, eu tinha ficado
impressionado com uma produção anterior dela, o fanzine Jaguadarte. Esse
trabalho mostrou que o traço dela funcionava muito bem para temas regionais e
ela parecia ter se esmerado ao desenhar a cobra da história. Assim, fiz um
roteiro sobre a cobra grande e o resultado foi impressionante, especialmente a
cena com a luta das duas cobras. Dá para perceber que ela curtiu muito fazer
aquela sequência, tanto que foi a primeira que ela arte-finalizou. Eu comentei
com ela: “você nasceu para desenhar cobras”.
Usar a tática do cavalo dançarino, além de
ser uma consideração aos desenhistas, oferece um terreno fértil para que para
que eles possam expressar aquilo que têm de melhor.
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