quinta-feira, outubro 31, 2024

O roteiro para quadrinhos e o cavalo dançarino

 

Nat Muniz parece ter nascido para desenhar temas regionais e em especial cobras. 

Alan Moore conta que, quando era criança, ficou fascinado com um show em um circo em que um músico tocava um violino e um cavalo dançava. O cavalo parecia ter sido tão bem adestrado que acompanhava o ritmo da música: se o violnista tocava mais lentamente, ele fazia movimentos mais lentos, se acelerava, o cavalo acelerava também.

Já adulto, ele descobriu que o que acontecia era exatamente o contrário. O músico ensinara o cavalo a dar alguns pulinhos – e só isso. Na verdade, era o violinista que acompanhava o ritmo dos movimentos do cavalo.

Segundo Alan Moore, o que acontece na relação entre o roteirista e o desenhista é exatamente assim. Parece que o roteirista está ditando tudo e o desenhista se adaptando ao roteiro, quando na verdade está acontecendo o contrário: o escritor está adaptando o roteiro ao desenhista. Para isso, é essencial que o roteirista saiba com quem está trabalhando e quais as suas maiores qualidades.

A história do Astronauta tinha tudo que o JJ Marreiro gostava de desenhar. 


Eu cheguei a ver o primeiro roteiro que Moore escreveu para o compadre Joe Bennett no título Supreme. Logo no início vinha uma observação: “Joe, eu percebi que você adora desenhar prédios expressionistas, então vamos colocar muitos nessa história”.

Quando escreveu uma história do Arqueiro Verde, para Klaus Jason, Alan Moore aproveitou ao máximo a capacidade desse desenhista, que durante anos foi arte-finalista de Frank Miller no Demolidor, para ambientação urbana. A história é repleta de prédios nos mais diversos ângulos.

Escrever um bom roteiro começa por conhecer o desenhista e saber no que ele é bom e aproveitar isso na história.  Já repararam que alguns dos melhores, senão os melhores trabalho de muitos desenhistas, foram realizados com Alan Moore?

A história de Moore para Klaus Jason aproveitava ao máximo a ambientaçã urbana.


Essa estratégia não só tira do desenhista o que ele tem de melhor como também faz com que ele se empolgue ao desenhar a HQ.

Um exemplo pessoal. Quando fui convidado a escrever uma história para o álbum MSP+50, em homenagem a Maurício de Sousa, fiquei muito feliz, e mais feliz ainda ao descobrir que seria desenhada pelo grande amigo JJ Marreiro, cujo trabalho admiro muito.

Entretanto, o peso da camisa, como se diz no futebol, acabou virando um problema. A responsabilidade de desenhar para um álbum tão importante fez o JJ travar. Eu escrevi dois roteiros e ele não desenhava.

Muitos diálogos e diagramação diferenciada na história para Kaic. 


Resolvi a situação usando a dica de Alan Moore sobre o cavalo dançarino: escrevi um novo roteiro colocando na história tudo que o JJ mais gosta. Assim, na história, o Astronauta encontra um apetrecho alienígena, a máquina do talvez, que mostra o que ele seria se não fosse um cosmonauta. Em uma versão ele era um cowboy, em outra versão um detetive ao estilo Sherlock Holmes etc...

Como sei que JJ Marreiro adora esses personagens clássicos, sabia que ele adoraria o roteiro e foi isso que aconteceu. Ele se divertiu tanto desenhando a história que acabou esquecendo a responsabilidade que era fazer um trabalho em homenagem aos 50 anos do Maurício de Sousa.

Isso, entretanto, não significa manter o desenhista numa zona de conforto. A partir daquilo que ele gosta de fazer, podemos propor inovações, algo que ele não está acostumado a fazer.

Mais uma página de Nat Muniz, só porque eu gostei muito. 


Recentemente, fui convidado a escrever roteiros para a revista do coletivo AP Quadrinhos e analisei o estilo das pessoas que iriam ficar responsáveis por desenhar minhas histórias. Também conversei com eles.

No caso do Kaic percebi que ele gosta de mostrar personagens, cenas de diálogos. Percebi também que havia abertura para uma diagramação mais arrojada. Fiz um roteiro que envolvia principalmente diálogos e estimulava uma diagramação inovadora. O resultado surpreendeu e me pareceu inclusive acima dos trabalhos anteriores dele.

No caso da Nat Muniz, eu tinha ficado impressionado com uma produção anterior dela, o fanzine Jaguadarte. Esse trabalho mostrou que o traço dela funcionava muito bem para temas regionais e ela parecia ter se esmerado ao desenhar a cobra da história. Assim, fiz um roteiro sobre a cobra grande e o resultado foi impressionante, especialmente a cena com a luta das duas cobras. Dá para perceber que ela curtiu muito fazer aquela sequência, tanto que foi a primeira que ela arte-finalizou. Eu comentei com ela: “você nasceu para desenhar cobras”.

Usar a tática do cavalo dançarino, além de ser uma consideração aos desenhistas, oferece um terreno fértil para que para que eles possam expressar aquilo que têm de melhor.

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