Chico Xavier é uma das figuras mais importantes e polêmicas do Brasil. Sua popularidade é tão grande que, mesmo depois de morto, continua levando milhares de pessoas para Uberlândia, transformando o turismo religioso na principal fonte de renda da cidade. Não admira, portanto, que a vida do médium fosse transformada em uma biografia.
Ainda assim, o jornalista Marcel Souto Maior teve que vencer vários obstáculos para escrever o livro “As vidas de Chico Xavier”. O primeiro deles veio dos próprios colegas jornalistas. “Chico Xavier? Não é o Chico Buarque, não? Chico Anysio? Chico Mendes?”, ironizavam os amigos do Jornal do Brasil.
Outro obstáculo filho adotivo de Chico, Euripedes. Preocupado com a saúde do pai e em preservá-lo, Euripedes não deixou o jornalista passar nem do portão. Ainda assim, Marcel insistiu: resolveu assistir a uma sessão no Centro Espírita da Prece, fundado por Chico muitos anos antes. Depois que o médium deixara de comparecer, o público minguara e eram apenas 14. Surpreendentemente, naquele dia, ele resolveu reaparecer, com um sorriso largo e um terno mal-ajambrado.
Cético, Marcel não soube explicar as lágrimas que começaram a desabar em borbotões de seu rosto, sem nenhuma razão especial.
Terminada a sessão, o jornalista procurou Chico para pedir autorização para a biografia. Chico respondeu de forma indireta, evitando a palavra não:
- Deus é que autoriza.
- E ele autoriza?
- Autoriza.
Mas a muralha de Euripedes ainda continuava existindo. O jeito foi apelar para o outro filho adotivo de Chico, Vivaldo, que mora nos fundos da casa do pai. Quando o jornalista o visitava, Chico chamou o filho por um interruptor. Quando Vivaldo saiu, um calor insuportável tomou conta das mãos do jornalista. Sobressaltado, ele largou a caneta, saltou do sofá e correu para o quintal. Ficou lá, sacudindo as mãos na noite fria, até que Vivaldo aparecesse:
- Meu pai disse que sua biografia vai ser um sucesso. Parabéns!
O episódio mostra bem os mistérios e a mística por trás de Chico Xavier. Chico escreveu quase 400 livros, cartas de pessoas desencarnadas, virou celebridade nacional. No entanto, até o final da vida, viveu de forma modesta, sem grandes fortunas, sendo quase um prisioneiro de seu próprio sucesso.
O fato do livro ser escrito por um cético, mas que passou pelas duas experiências acima (do choro descontrolado e das mãos em fogo) faz com que ele tenha a abordagem correta, não caindo nem na armadilha de um livro doutrinário, nem na reportagem sensacionalista que o filho adotivo de Chico tanto temia.
O que se revela é uma figura ímpar, que angariou milhões de fãs no Brasil todo e igual número de detratores. Essa dualidade já se apresentava na infância do médium, quando ao ouvir que ele conversava com os espíritos, a madrinha dizia que ele tinha o diabo no corpo e lhe fincava garfos na barriga na tentativa de espantar o mal. Chico, convencido de que que conversar com espíritos era errado, tentava tudo para se curar. Chegou até a desfilar em uma procissão com uma pedra de 15 quilos na cabeça, repetindo mil vezes a ave-maria. Nada adiantava. Quanto mais rezava, mais via espíritos.
O livro nos revela um Chico sofredor, que não era compreendido na infância e apanhava por causa da mediunidade. Quando finalmente se tornou adulto, sofria com doenças, como a catarata que fazia seus olhos sangrarem. À noite, era atormentado por espíritos baixos, que lhe provocavam pesadelos em, alguns casos, tentavam matá-lo usando para isso pessoas com mediunidade. Ao se queixar com seu guia espiritual, Emmanuel, recebia reprimendas. Tinha que aceitar de bom grado tudo que lhe acontecia, pois servia para expiar culpas de outras encarnações. Quando se tornou uma figura famosa, sofria com o assédio, com pessoas que queriam falar com ele mesmo quando ele estava muito doente. Além disso, Chico nunca ganhou nada com isso, pois todo o dinheiro das vendas dos livros ia para instituições de caridade.
Sua missão espírita parecia mais um castigo do que um prêmio. Por outro lado, havia as tentações. Uma vez Chico entrou no banheiro e encontrou três mulheres tomando banho nuas, jogando água umas nas outras e rindo para ele, convidativas. O médium fechou os olhos e rezou. Quando os abriu, elas haviam desaparecido.
Abnegado, Chico usava a humildade para resistir aos sofrimentos e tentações do mundo. Dizia que era um Cisco Xavier, brincando com o próprio nome. Quando lhe disseram que talvez fosse eleito para a Academia Brasileira de Letras, ele perguntou: “E agora aceitavam cavalos lá?”.
Se a biografia revela esse lado humilde, abnegado e caridoso, revela também um homem carismático e divertido. Chico gostava de contar casos e gostava de rir. Uma vez, convidado pelos amigos a pescar, foi, mas não pescou nada. Passaram a tarde na beira do rio e os amigos pegaram muito peixe. De Chico não se aproximava nem lambari. Ele acabou confessando: não tinha colocado isca no anzol, para não incomodar os bichinhos. Ao ser assediado por uma figura demoníaca, que lhe perguntava se tinha sido chamada, ele saiu-se com essa: “É que a vida anda difícil e queria que o senhor me abençoasse em nome de Deus ou das forças que o senhor crê”. O diabo reclamou: “É só a gente aparecer que você já cai de joelhos!” e sumiu.
Em suma: As vidas de Chico Xavier é um livro que abarca as várias facetas dessa famosa personalidade, num livro leve e gostoso de ler. É tão fascinante que serviu de base para o filme de Daniel Filho sobre a vida do médium mineiro.
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