domingo, novembro 24, 2024

Biocyberdrama: um universo em quadrinhos

 


Mozart Couto é dos mais importantes desenhistas de quadrinhos do Brasil. Seu traço anotomicamente perfeito ilustrou algumas das melhores histórias nos gêneros fantasias e ficção científica da HQB. Edgar Franco é um dos nomes fundamentais dos quadrinhos poéticos filosóficos, um gênero surgido em nosso país que teve grande destaque a partir da década de 1990 através de fanzines e publicações alternativas. Seu traço flerta com o onírico mostrando figuras impossíveis em cenários surreais. A junção desses dois talentos tão diferentes deu origem ao Biocyberdrama, um dos mais importantes álbuns de quadrinhos lançados em 2013.
A própria origem da publicação é uma saga. Em 2000, influenciado pelas ideias de artistas e filosóficos que tratam da pós-humanidade, Edgar Franco produziu o fanzine Biocyberdrame e enviou para várias pessoas. Uma delas foi Mozart Couto, que adorou a ideia e propôs uma parceria, o que deu origem a um primeiro álbum, com o primeiro capítulo. Os outros sete capítulos levaram 12 anos para serem feitos e reunidos na edição publicado este ano pela editora UFG. Uma edição, aliás, que faz juz ao conteúdo: um papel interno de alta gramatura, uma capa em policromia com um emblemático desenho de Mozart e uma sobrecapa em PB que se fecha sobre as páginas, formando um box.

A maioria dos leitores de quadrinhos tende a ir direto para a história, mas nesse caso, vale a pena parar no início e ler o Prefácio de Edgar Franco, no qual ele disserta sobre a fundamentação teórica da obra. Em um texto agradável, é apresentado todo um fundamento que permite uma leitura muito mais aprofundada da HQ e dá a dimensão do universo e da mitologia criada por ele – talvez o aspecto mais impressionante dessa HQ cheia de predicados.
Franco explica que os membros artificiais estão se tornando cada vez mais perfeitos. Cientistas e artistas defendem a possibilidade de transplantar a consciência para um chip de computador e tornar-se imortal, num movimento que foi batizado de Extropy.  “Vivemos em um momento de ruptura do humano, o qual nos compele a abrir os olhos para as implicações morais, éticas, socioculturais das mudanças drásticas de comportamento, percepção e paradigmas, que vêm atreladas às inovações nos campos da biotecnologia, da cibernética, da robótica, da telemática e da comunicação”.
A partir dessa percepção, Franco criou um universo pós-humano em que o mundo se divide em três grupos: humanos resistentes, tecnogenéticos e extropianos.
Os tecnogenéticos são fruto da hibridação entre humanos, animais e vegetais, permitidos pelo avanço da engenharia genética.
Os extropianos são pessoas que transmitiram sua consciência para corpos robóticos, vivendo, assim, eternamente.
Os resistentes são pessoas que resistem às mudanças extropianas e tecnogenéticas. Reproduzem-se sexualmente e imitam o modo de vida dos antepassados.

Cada um desses grupos tem detalhados os seus sub-grupos, método de reprodução, tecnologia, relação com a morte e organização social, uma mitologia que permite o surgimento de dezenas de histórias. A versão contada no álbum Biociberdrama é apenas uma dela. Nesse álbum acompanhamos o protagonista, Antônio (uma referência ao líder messiânico Antônio Conselheiro, de Canudos), um humano resistente indeciso entre o mundo tecnogenético e extropiano. A partir dessa base intimista, de conflito interno do personagem, visualizamos o mundo e suas relações sociais, políticas e culturais. Com o passar das páginas, no entanto, o drama pessoal torna-se também um drama social. Nessa sociedade perfeita de incrível avanço tecnológico, nesse paraíso terrestre, existe uma serpente: a intolerância. Essa intolerância se mostra na forma de atentandos terroristas, em especial dos tecnogenéticos contra os extropianos.
Franco namora com a teoria do caos ao mostrar como pequenos (e grandes) fatos vão provocando mudanças na sociedade e nos personagens. Os personagens, aliás, são tridimensionais e vão passando por mudanças ao longo da trama. Imperfeitos, traem, agem por vingança e muitas vezes por ganância (como no caso do peregrino que foge com as oferendas de um grupo que se destina a uma vila religiosa-resistente).
O leitor acompanha essa história que dura anos numa verdadeira saga e, ao mesmo tempo se surpreende com as reviravoltas, afeiçoa-se aos personagens e intriga-se com a complexidade imaginada pelo roteirista.
Sobre o desenho, um único porém: no primeiro capítulo Mozart Couto parecia estar influenciado, ou tentando aproveitar a onda dos mangás, um estilo interessante, mas que não tem absolutamente nada a ver com seu estilo. A partir do capítulo dois, o desenhista parece se livrar dessa influência e torna seu traço cada vez mais próximo do estilo que o tornou famoso na década de 1980 em revistas de editoras como a Grafipar.
Para os leitores mais interessados, vale a pena ler o Pósfacio, em que Edgar Franco destrincha todas as referências utilizadas em sua obra. Pós-moderno, o roteirista espalhou pela obra diversas citações, que vão do ciberartista brasileiro Eduardo Kac à artista francesa Orlane, que realiza operações plásticas em seu corpo com tomando como referência obras-primas da pintura, passando pelo escritor de ficção científica visionário Phillip K. Dick. Para os fãs, mais um agrado: o fanzine Biociberdrame, que deu origem a tudo vem completo, como anexo do volume.
Em suma: uma edição imperdível com dois mestres do quadrinho nacional.

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