sábado, dezembro 21, 2024

Autobiografia musical

  Até os 14 anos mais ou menos eu costumava dizer que não gostava de música. As referências que eu tinha a respeito eram os bregas que se ouvia em casa... e Erasmo Carlos, nos dias muito eruditos.

Acho que tinha também um disco do Roberto Carlos, do início da fase decadente. Meus dois tios e meu padrastro eram caminhoneiros e por isso compraram o disco que tinha o famoso refrão: ¨No volante eu penso nela/ Já pintei no pára-choque um coração e nome dela¨.
Então eu não gostava de música. Até que um dia estava na casa de um amigo e ele me chamou no corredor para ouvir uma música que tocava no rádio de sua irmã: era Eduardo e Mônica, do Legião Urbana. A canção me arrebatou como se eu estivesse passando por um êxtase estético.
Eu nunca havia ouvido algo que falasse de maneira tão singela e inteligente do que sentíamos. Nós éramos como o Eduardo, tão indecisos sobre a vida e sobre todas as outras coisas. A canção fez tanto sucesso entre nós que costumávamos cantá-la na frente do colégio, antes da campainha tocar.


Com o tempo fui conhecendo outras músicas do Legião Urbana e aprendendo que as músicas podiam expressar o que sentíamos, fosse alegria ou tristeza.
Um dia minha namorada (e atual esposa) gravou para mim uma fita com um mix de músicas que achava legais. No final da fita havia três músicas de Raul Seixas. O restante, daquele lado, era Milton Nascimento. Devolvi a fita e pedi para gravar o lado todo com o Raulzito. Eu o descobrira algum tempo antes, numa oficina de bicicletas. O pneu furou e, sem ter o que fazer, fiquei lá, ouvindo o que tocava no som da oficina. Era justamente Ouro de Tolo. Fiquei impressionado ao perceber que, apesar de muito popular, a música tinha uma letra genial, uma bela reflexão filosófica sobre o sentido da vida. A letra era a personificação do que deveria ser a atitude de um artista:

“Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego
Sou dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês
Eu devia agradecer ao Senhor por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz porque consegui comprar um corcel 73

Eu devia estar alegre e satisfeito por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome por dois anos aqui na cidade maravilhosa
Eu devia estar contente por ter conseguido tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado que eu estou decepcionado”

Muito tempo depois, quando tive contato com o livro O Mundo de Sofia, lembrei de Rauzito ao ler a descrição do maravilhamento e inquietude diante do mundo que deveriam caracterizar o filósofo. Estava tudo ali, em Ouro de Tolo.Raul Seixas me mostrou que músicas podiam falar de qualquer assunto, de filosofia à política e ainda assim serem populares. Mostrou também que a popularidade não significa falta de qualidade.
Aos 19 anos eu já conhecia algo de música, mas ainda não havia sido apresentado aos Beatles. Um dia uma professora de redação jornalística me convidou para ir na casa dela. Chegando lá me deparei com uma enorme coleção de CDs e LPs. Eu nunca tinha visto um CD. "Escolhe um disco", ela encorajou. Escolhi Sgt Peppers, dos Beatles, até hoje o meu disco predileto do quarteto de Liverpoll.Nunca poderia imaginar o êxtase que me arrebatou ao ouvir as músicas. Era como se, ao embalo de Lucy in The Sky With Diamonds, eu viajasse nos acordes. 

Legião Urbana e Raul Seixas eram bons, mas Beatles eram divindades que compunham músicas com poder sobrenatural.Lembro que pouco tempo depois conversei com um amigo sobre o assunto e ele riu: "Agora que você descobriu os Beatles?!". Antes tarde do que nunca.Juntei o pouco dinheirinho que tinha e comprei, em loja, os três grandes discos do quarteto: Sgt. Peppers, Revolver e Magical Mistery Tour em fita cassete (sim, naquela época vendia-se discos em fitas cassete).
Nessa mesma época, descobri Pink Floyd. Quem me apresentou essa banda de rock progressivo foi o meu compadre Bené Nascimento. Hoje ele assina Joe Bennett e desenha histórias para a DC Comics, mas na época ele era só um desenhista despontando no mercado nacional e meu principal parceiro em histórias de terror. O tom depressivo das músicas de Pink Floyd combinava perfeitamente com o horror denso e psicológico que fazíamos. Combinou tanto que virou quase uma obsessão. Ouvíamos Pink Floyd de manhã, tarde e noite.

Em 1993 eu me mudei para Curitiba e sofri com a frieza do povo local. Curtibanos são muito simpáticos, mas também pouco calorosos. Para quem vinha de Belém do Pará (um lugar onde se faz amizade no ônibus), foi um choque. Nessa difícil adaptação, ajudou muito uma música: O Mundo ainda não está pronto, do Pato Fu.
Quem acha que o mundo é tudo na vidaInfelizmente não sabe de nadaInclusive eu também não seiInclusive eu também não seiMas pelo menos eu estou, eu estouEu estou aqui gritando:AAAHHHHH, eu estou aqui gritando
Uma letra simples, mas que permitia várias interpretações. O grito poderia ser o meu grito diante da nova situação.

Nessa época, claro, eu desprezava Roberto Carlos. Brega era o mínimo a dizer do homem que, na minha infância, bradava um refrão para caminhoneiros. Então, um dia, quando ainda morava em Curitiba, ouvi uma versão da música “Todos estão surdos” cantada por Chico Science e me surpreendi. A letra era muito boa, filosófica até. Não parecia o mesmo Roberto Carlos que fazia músicas para gordinhas ou mulheres de óculos.
Outro dia, um cabeludo falou:
"Não importam os motivos da guerra
A paz ainda é mais importante que eles".
Esta frase vive nos cabelos encaracolados
Das cucas maravilhosas
Mas se perdeu no labirinto
Dos pensamentos poluídos pela falta de amor.
Muita gente não ouviu porque não quis ouvir
Eles estão surdos!

Isso me levou a pesquisar melhor a discografia do “rei”. Comecei por um disco mais antigo, da década de 1960, Roberto Carlos em ritmo de aventura. As letras não eram geniais, mas a música era ótima. Um bom rock. Aí fui comprando os discos na sequência. Quem for ouvindo a obra de Roberto Carlos cronologicamente descobrirá que o cantor passou por uma evolução óbvia. Cada disco da década de 1970 parece ser melhor do que o outro. O som ficou menos rock, mas as letras ficaram mais reflexivas. Como as letras sempre foram o que mais me chamou atenção, o discos de RC da década de 1970 eram um profundo campo de descobertas.
Havia letras com narrativas paralelas, como em “Rotina”, em que acompanhamos o dia-a-dia de um casal apaixonado:
Estou chegando para mais um diaDe trabalho que começaEnquanto lá em casa ela despertaPra rotina do seu diaEu quase posso ver a água mornaA deslizar no corpo delaEm gotas coloridas pela luzQue vem do vidro da janela
E havia letras com fundo psicológico, como em Traumas:
Minha mulher em certa noiteAo ver meu sono estremecido
Falou que os pesadelos sãoAlgum problema adormecido
Durante o dia a gente tentaCom sorrisos disfarçar
Alguma coisa que na almaConseguimos sufocar

Roberto Carlos, na década de 1970, tornou-se um compositor reflexivo, com letras ricas em interpretação que vão muito além das obras mais famosas. Descobri-lo coincidiu justamente com um período em que eu mesmo me tornava mais reflexivo.
Como sempre, a boa música é aquela que expressa os sentimentos de quem a ouve.

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