Encontrei em um sebo daqui de Macapá uma coleção chamada Paradigmas, da
editora Século Futuro. Pelo que pude perceber, é um vesão nacional de uma
coleção chilena. A tradução escorrega em alguns termos (os golfinhos, por
exemplo, são chamados de delfins em um artigo. O rei Salomão é chamado de
Solomón em outro), mas os artigos de origem parecem ser bons, escritos por
gente que entende do assunto. Cada livreto trata de quatro temas. O que mais me
chamou atenção tratava da inteligência dos golfinhos, de visões da morte, de
poderes psi e de hermafroditas.
O texto sobre hermafroditas se
revelou de um inusitado interesse histórico. Bem poderia constar no volume
História Universal da Infâmia, de Jorge Luís Borges se fosse um pouco mais bem
escrito.
Os hermafroditas sempre existiram,
apesar de durante séculos a medicina negar isso. Há uma grande variedade de
pinturas e estátuas gregas sobre o tema. Os gregos pareciam ser fascinados pelo
tema e explicavam o fenômeno através da união do filho de Hermes com a Afodite,
que teria dado origem a um ser metade homem, metade mulher (ilustrando este
texto, coloquei duas estátuas gregas sobre o tema). Mas os primeiros relatos
históricos ocorrem a partir da Idade Média.
Em uma delas o abade do mosteiro de
Santa Genoveva descobriu que faltava dinheiro no tesouro do mosteiro e as
suspeitas recaíram sobre um jovem que morava lá desde os 12 anos. O abade
ordenou que fosse desnudado e açoitado. O rapaz se desesperou com a pena e
pediu misericórdia. Disse que tinha nascido homem, mas que com o tempo
percebera que era mulher. Nisso o verdadeiro ladrão foi pego. O abade pediu o
exame de médicos, que chegaram à conclusão de que se tratava, de fato, de uma mulher.
Ela passou a se vestir de mulher, casou-se e teve dois filhos.
Casos como esse, como final feliz,
são a excessão quando se trata de hermafroditas.
Um caso que escandalizou a França no
século XVII foi o de Marie le Marcis.
Ela nascera mulher, de uma família
pobre, que a colocou para trabalhar como camareira. Em das casas em que
trabalhou, teve que dividir a cama com uma enfermeira viúva, Jeanne Lefébure.
Na intimidade da noite, revelou a ela a curiosidade de sua sexualidade e as
duas começaram a se relacionar.
O amor foi crescendo e as duas
decidiram se casar. Elas foram falar com Guillaume, pai de Marie, mas ela
tentou convencê-las a mudar de opinião. Elas foram então procurar os parentes
de Jeanne, que as aconselharam a consultar a penitenciária de Rouen. Para
viajar, Marie se vestiu de homem e passou a se chamar Marin.
As duas foram presas assim que se
descobriu o caso e levadas a um tribunal. O juiz se viu sem saber o que fazer
já que, apesar dos sinais aparentes de feminilidade, as duas declaravam que
Marie era na verdade um homem. A viúva chegou a declarar inclusive que o seu
sexo era perfeitamente capaz de realizar os atos maritais e que Marie,
inclusive a satisfazia mais do que seu antigo marido.
Uma junta de especialistas foi
chamada e conclui que Maria não tinha nenhum sinal de virilidade.
No julgamento, Marie reclamou que os
supostos especialistas não haviam examinado seu sexo. Mas o processo estava
encerrado e as duas foram entregues à Câmara do Conselho.
O procurador do rei pediu ambas
fossem condenadas, declarando-se culpadas com a cabeça e os pés descobertos,
diante de uma igreja. Depois Marie seria queimada viva e seus bens confiscados.
Jeanne assistiria à execução de sua cúmplice e depois seria açoitada e expulsa
da região.
Entretanto, antes que as penas
fossem aplicadas, elas foram levadas ao Parlamento de Rouen, que pediu um novo
exame de uma equipe de especialistas composta por 10 doutores em medicina, dois
praticantes e duas parteiras.
Marie foi examinada e a equipe declarou
que não encontrou nela qualquer traço feminino, mas um dos médicos se revoltou
com o exame superficial, já que a comissão havia se contentado com exames
externos alegando que seria indecente apalpar o sexo da acusada. Mesmo diante
da hojeriza dos colegas, ele examinou Marie e percebeu que ela era viril. Foi a
salvação das duas, que foram inocentadas. Marie foi orientada a continuar se
vestindo de mulher até os 25 anos e foi proibida de manter relações sexuais com
qualquer pessoa, sob pena de morte.
Pouco tempo depois, uma disputa por
poder revelou outro famoso famoso caso de hermafroditismo na França.
Nessa época a abadessa do Convento
das Filhas de Deus cedeu seus benefícios eclesiásticos à sobrinha, senhorita
d´Appremont. Mas havia uma outra pretendente ao cargo, irmã Damilly, que, em
sua ofensiva, acusou d´Apremont de ser hermafrodita.
O advogado de defesa alegou a lei de
Longi tempori preascriptione, segundo a qual não se deve perturbar aqueles que
estão de boa fé, na posse de algo por mais de 20 anos. A freira possuía sua
feminilidade há mais de 50 anos e, portanto, seu sexo não poderia ser
questionado. Além disso, a religiosa se opunha a qualquer exame: Não há nada de
mais vergonhoso que este exame para o qual nem a noite tem suficiente escuridão,
nem a natureza suficientes véus".
O caso foi levado à corte
eclesiástica de Chartres e se recorreu apenas a testemunhos de pessoas que
diziam ter feito sexo com a religiosa. Como consequência, d´Appremont foi
considerada culpada de abusar dos dois sexos e condenada a ser enforcada e
depois queimada.
O advogado da condenada apelou e
conseguiu que a freira fosse examinada por especialistas, que concluiram que
d´Appremont tinha os dois sexos. Ela foi, então, condenada a ser presa e
açoitada e todos os seus bens foram confiscados.
Outtro caso que angariou atenções na
França e serviu de exemplo por parte dos iluministas, de que era necessária uma
era de razão foi o Jean-Baptiste Grandjean. Ele nasceu mulher, com o nome de
Claudine, mas aos 14 anos começou a perceber alterações não só físicas, mas
também emocionais. Ela só se interessava por moças. A pedido do pai, foi se
confessar com um padre, que disse que ela deveria se vestir de homem, pois
continuar se vestindo de mulher seria cometer pecado contra a religião.
Assim Claudine virou Jean-Baptiste e
chamou a atenção de todas as moças da região. A primeira a manter relações com
ele foi uma tal de Legrand, que seria fatal para o hermafrodita.
Algum tempo depois ele conheceu
Françoise Lambert e se casou com ela. Quis um destino que um dia a esposa se
encontrasse com a antiga amante do marido, que a alertou para o fato de que seu
esposo era um hermafrodita.
A mulher consultou um confessor, que
a aconselhou a não ter mais intimidades com o marido até que o caso fosse
esclarecido. O casal ficou de visitar o Vigário, mas antes que isso ocorresse,
Legrand já havia espalhado para todos o caso.
A história chegou ao ouvido do
Procurador, que ordenou a prisão de Jean-Bapitiste e posterior exame.
Uma comissão designada concluiu que,
embora tivesse traços de virilidade, a pessoa em questão era uma mulher.
Grandjena foi condenado por profanar
o sagrado sacramento do casamento. Seri exposto em praça pública por três dias,
açoitado e ficaria em prisão perpétua.
O rapaz apelou ao parlamento e
passou a ser defendido pelo famoso advogado Verneil. Este analisou melhor o
relatório dos especialistas e concluiu que seu cliente tinha sexualidade
indefinida. Ele alegou que seu cliente tinha presunção de boa-fé, o que
atenuava o delito.
O parlamento admitiu a argumentação
e absorveu o réu, mas também anulou seu casamento e impediu-o de casar
novamente. Foi o último caso de hermafrodita levado aos tribunais.