Doutor era uma figura imponente. Do alto de seus um metro e
sessenta, entrava nos locais batendo os pés, peito estufado, como um rei que
desfila entre súditos. E à primeira
oportunidade anunciava:
- Sou doutor!
Certa vez precisou ir ao médico e lá entrou, altivo, e
anunciou:
- Sou doutor!
A recepcionista abaixou os óculos, consultou a agenda, e
informou:
- O doutor já vai atendê-lo.
Mas como? Que desrespeito! Que afronta! Chamar o médico de
doutor, sendo que doutor era ele!
Nem mesmo se consultou. A doença haveria de se curar
sozinha.
Foi direto para o escritório de um advogado. Ia processar o
médico. Ora essa: doutor era ele!
Na recepção perguntaram-lhe o nome e do que se tratava, ao
que ele respondeu com um:
- Sou doutor!
O rapaz da recepção desculpou-se:
- O doutor advogado está atendendo um cliente, mas já vai recebê-lo.
Foi embora furibundo! Que maçada! Doutor era ele!
Apesar disso, vivia bem, feliz, e, de tempos em tempos
recebia em sua casa seus únicos três amigos. Recebia-as com seu cumprimento
familiar:
- Sou doutor!
Mas um dia essa vida pacata e feliz foi abalada por uma notícia
terrível: um de seus amigos passara no doutorado!
Era incompreensível essa traição. “De nihilo nihil”,
pensou ele, coçando os já ralos cabelos e repuxando a barba grande e grisalha. O
que significava aquilo?
Aquela notícia foi sucedida por outra, ainda pior, ainda mais
terrível: o segundo amigo agora também estava fazendo doutorado. “Aetatem
habet, ipse sibi consulte expertus”, pensou ele, tentando a todo custo
desvendar o que significava aquele emaranhado de más notícias: “Mala ultro
adsunt”.
Então, quando a terceira má notícia rebentou, ele já mal
conseguia dormir à noite: o terceiro amigo também estava no doutorado!
Como era possível? Traição! “Traição...”, lembrou-se o doutor
“vem de traditio. Traditio, passar a diante...” mas, claro, porque não pensara
nisso antes? Quando estava tudo claro! Agora tudo fazia sentido! “Qui nimium
properat serius absolvit”!
Só havia uma explicação possível: o orientador de seu
primeiro amigo só poderia ser um marciano! Marciano é um habitante de Marte, o
deus da guerra, que viera colocar cizânia onde antes havia amizade.
Só podia ser um marciano. Mas se ele era um marciano, o
orientador do segundo também só podia ser um marciano e também o orientador do
terceiro!
Mas isso levava a uma conclusão ainda mais terrível. Se os
três eram marcianos, também seus orientandos só podiam ser marcianos! Era essa
ligação entre esses seis marcianos! “Veritatis simplex oratio”!
O Doutor achou que era sua obrigação alertar a sociedade e
foi para a rua.
Ficava nos sinais, avisando a todos sobre os marcianos que
estavam dominando a sociedade.
- Seu maluco, sai da rua! – gritaram de dentro de um carro
que quase o atropelou.
- Alea jacta est! – retrucou ele.
Mas não adiantava alertar os outros se ele mesmo estava
exposto. Era preciso fazer uma limpeza em casa. Assim, passou dois dias olhando
atrás dos móveis procurando algum marciano que estivesse escondido. Felizmente
não encontrou nenhum, mas nunca se sabia onde poderia estar um marciano.
- Optima citissime pereunt. – repetia, a cada cômodo
vistoriado.
E havia algo mais grave, um perigo ainda maior: os vizinhos! Quantos
deles seriam marcianos?
O Doutor comprou um binóculo e passou a espionar os vizinhos.
Qualquer comportamento estranho poderia ser um indício. “Indício, do latim
inditium, Amat victoria curam”, raciocinou ele.
E a realidade era assustadora! Um dos vizinhos comia cereal
de bolinhas! O outro usava camisa amarela! O outro usava chinelos para tomar
banho!
“Abusus non est usus, sed corruptela”, pensou ele “estou
cercado de marcianos! Eles estão por todos os lados! Hic tua mercatur quia a te
saepe precatur!”.
Quantas outras pessoas estariam envolvidas? Talvez o rapaz do
mercadinho fosse um deles e estivesse tentando envenená-lo, o que explicaria a diarreia
que tivera na semana passada: “Mammas atque tatas nimium conducit habere”.
A partir deste dia, ficou trancado em casa, vigiando a rua
pela janela. Comia o que tinha e bebia água da torneira. Dormia apenas o suficiente
e voltava para a janela, um revólver a postos na mão direita.
Uma noite eles vieram.
O disco voador pousou na frente de sua casa e de dentro dele
saíram pequenos seres verdes vestidos de branco. Tinham bocas grandes, brancas
e se comunicavam através de sons estranhos, que ele não conseguia identificar.
Não esperou que se aproximassem e atirou.
Quase acertou um deles e os marcianos se esconderam atrás do
disco voador. Logo apareceu outro disco voador e outro.
O Doutor atirou neles, mas quando suas balas acabaram, eles
invadiram sua casa e o levaram. Colocaram-no na nave espacial e levantaram voo.
Que tipo de torturas terríveis esperavam por ele em Marte? Audaces fortuna
juvat, timidosque repellit
...
No dia seguinte, a rua acordou alvoroçada com a novidade. Entre
as mais excitadas estavam duas velhinhas:
- Amiga, eu vi tudo! Ontem levaram o Doutor!
- Levaram? Quem levou?
- Os enfermeiros do hospício!
- Eu bem vi que ele andava estranho. Nem saía de casa. Da última
vez que o vi ele veio me falar de marcianos...
- Ele atirou nos enfermeiros e tiveram que chamar a polícia.
- Coitado. Parecia uma pessoa tão ajuizada... professor... só
tinha aquela mania estranha de obrigar todos a chamarem ele de doutor...
- E de falar aquelas frases estranhas em latim...
- Estudou muito, amiga. Estudou muito e deu nisso...
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