quarta-feira, julho 18, 2018

O cão da meia-noite, de Marcos Rey


No final do século XIX e início do século XX a literatura brasileira era dominada pelos parnasianos. Um dos princípios dessa corrente literária era a linguagem empolada, difícil, afastada do populacho. Monteiro Lobato foi o primeiro a se revoltar contra essa maneira de escrever - a ponto de se recusar a ser chamado de escritor, pois associava o nome à "alta literatura" e, por tabela, aos parnasianos. Para Lobato, a literatura devia falar a língua do povo, repetir suas gírias e modos de dizer. Posteriormente, essa proposta seria levada a cabo pelos modernistas, mas ninguém conseguiu encarnar a proposta de Lobato de maneira tão completa e perfeita como Marcos Rey. O grande autor de livros juvenis, cujo pai era encadernador na gráfica lobatiana, conseguiu como ninguém apanhar o jeito de falar de toda gente e transformá-lo em palavra impressa. Ótimo exemplo disso é o livro de contos O cão da meia-noite (Global editora, 216 páginas). 
No volume, Rey conta histórias de pessoas normais que acabam sendo envolvidas em algum tipo de drama. Algo em comum em todos eles é iniciar com um episódio cotidiano, pitoresco (como amigos que se encontram num bar, ou um homem que resolve adotar um cachorro), que vai se tornado mais e mais complexo ao correr das páginas. 

No primeiro conto, "Eu e meu fusca", vemos o que parece ser o relato apenas de um garoto viciado em seu carro, mas que logo se torna uma história policial no melhor estilo serial killer (provavelmente um dos primeiros textos ficcionais sobre o assunto escritos no Brasil). Todo narrado em primeira pessoa, o texto repete as gírias das ruas da década de 1960.

Em "O bar dos cento e tantos dias" um redator publicitário desempregado conhece um boêmio que lhe dá dicas de empregos (quase sempre furadas) enquanto lhe ensina a "observar o espetáculo da cidade" e seus personagens - um exercício que certamente o autor fez à exaustão, a se tirar pela fauna presente nesse livro. 

No conto que dá título ao livro vemos um homem que encontra um cachorro de rua e resolve leva-lo para casa e cuidar dele. Ocorre que se trata de um cão de rua, incapaz de viver preso. O que começa como um simples gesto de carinho acaba se tornando uma obsessão assassina e acabamos tendo mais uma história policial. Para entender "A escalação" é interessante saber que Marcos Rey foi roteirista de cinema, mais especificamente da pornochanchada, o que lhe permite falar com muita propriedade do assunto. No texto, um produtor cinematográfico reúne o elenco de seu novo filme, mas joga psicologicamente com cada um deles de modo a sempre ganhar. Ali temos desde o roteirista que aceita qualquer salário porque é perseguido pela ditadura e ninguém quer lhe dar emprego até a atriz decadente em busca de um papel que a traga de volta à cena. 

Muito difícil escolher o melhor conto num livro de pérolas como esse, mas se fosse necessário, eu escolheria "O adhemarista". O mote é simples, quase irrisório: um taxista que faz campanha para Adhemar de Barros num texto narrado por um amigo igualmente taxista. Nada demais. Mas Marcos Rey nos revela neste conto uma verve psicológica, um talento para coletar tipos e a capacidade de escrever como as pessoas de determinada época falavam de maneira ímpar. Saca só: 

"Aquela foi a semana mais quente que o Moa (Moacir) viveu na puta da vida. Nós, do ponto, é que sabíamos. Quente, digo, em toda parte. No carro, na rua, na sede do partido, na Lila, em casa. O homem estava envenenado, com fé em Deus e pé na tábua, dormindo só uma três horas por noite. Foi também a semana do papo, da lábia, da saliva, dia e noite de campanha, amarrando votos, aliciando os indecisos. Nunca vi na life um cabo eleitoral com tanta corda, tanta garra, tanto embalo".

Não bastasse a ótima análise do tipo fanático, que transforma política em torcida de futebol e coloca a eleição acima de tudo, Marcos Rey ainda constrói sua narrativa como um verdadeiro suspense policial, em que o mistério não é saber quem é o assassino, mas quem irá ganhar a eleição. 

"Soy loco por ti, América!", repete o tema de "A escalação". Nele, vemos uma festa de granfinos e estrelas do cinema e da televisão no dia anterior ao golpe militar. Regada a lança-perfumes, a festa, que começa tímida, torna-se um verdadeiro circo, com direito a gay enrustido, que de repente se interessa por uma atriz, para desespero de seu parceiro assumido, a atriz que humilha o produtor que a recusou antes da fama e anfitrião que filma tudo. 

Em "Traje de rigor" encontram-se no bar quatro homens muito diferentes: um publicitário (cujos slogans, como "Mil a vista e o resto a perder de vista", lhe renderam um ótimo salário), um jornalista decadente, que parece interessado unicamente em vender um revólver para qualquer um que encontre, um velho cantor igualmente decadente e um homem de família, com filho doente em casa, que quer apenas levar uma lata de leite em pó para casa. Esses quatro juntam-se numa inesperada jornada pela noite de São Paulo que a vai se revelando mais e mais surpreendente a capa página (o homem de família, por exemplo, acaba se mostrando o mais bôemio). 
Finalmente, em "Mustangue cor-de-sangue" acompanhamos o relato de um redator de um programa infantil estrelado por um anão que no dia-a-dia é um devasso e, na ocasião, resolve transar justamente com a vedete pela qual o escriba é apaixonado. O conto oscila entre as tentativas do anão e as fugas da moça, interessada em um contrato na TV e os planos do intelectual para salvá-la e, ao mesmo tempo, tirar sua casquinha da moça. Daria uma ótima pornochanchada, como muitas das que foram escritas por Marcos Rey para a boca do lixo na década de 1970. Aqueles que, quando crianças e adolescentes se deliciaram com as histórias de Marcos Rey para a coleção Vaga-lume irão se deliciar ao descobrir esse outro lado do escritor. 

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