Skreemer apresenta flash backs de vários personagens |
Falaremos agora de um dos temas mais fáceis de
serem percebidos e mais difíceis de serem usados numa história em quadrinhos.
Falo da narrativa. O
que é a narrativa? É a maneira como a história se desenrola. Com isso não quero
me referir aos diálogos e ao texto, assuntos de que trataremos mais tarde e que
pertencem ao mundo da FORMA.
O tipo mais evidente
de narrativa é a linear. Ou seja, é aquela história com início, meio e fim
muito bem delineados.
Por exemplo: um
bando de assaltantes resolve roubar um banco. Eles chegam de carro, rendem o
gerente, pegam o dinheiro e fogem. É quando aparece o Super-homem e prende
todos os malfeitores. Termina a história com os meninos maus atrás das grades e
um texto do tipo: "Viram, meninos? O crime não compensa".
Esse é o tipo de
narrativa mais comum de se encontrar nos quadrinhos clássicos (claro que não me
refiro a algumas pérolas do roteiro, tais como Príncipe Valente, Spirit ou
Capitão César). É o que chamamos de roteiro linear. Há um início, um meio e um
fim bem delineados. E também não há complicações no miolo da história. As
coisas se resolvem facilmente.
Imaginemos, no
entanto, que o roteirista queira tornar esse roteiro um pouco mais complexo.
Ele pode, por exemplo, focar o Super-homem. O homem de aço está numa reunião no
Planeta Diário e percebe que o banco está sendo assaltado. Como sair da reunião
sem ser notado? Isso pode criar algumas situações interessantes, que vão tirar
a atenção do leitor do assunto principal (no caso, o assalto ao banco).
Isso é bom? Isso é
ótimo! O roteirista deve ser, antes de tudo, um sádico. O leitor está louco
para saber se o assalto vai se concretizar e você fica enrolando, mostrando
Clark Kent tentando se transformar no
homem de aço. Chama-se a isso suspense. Toda boa história tem algum tipo de
suspense, mesmo aquelas que fogem do esquema comercial.
Mas voltemos à nossa
história. Imaginemos que os bandidos estão em dois carros. O pessoal de um
carro vê o Super-homem interceptando o outro veículo. Eles estão desesperados e
tentam fugir. Mas... o destino e o roteirista são cruéis. O carro não pega. O
motorista tenta, mas não consegue fazer o motor funcionar.
Isso vai introduzir
um pouco mais de suspense na história e, como já disse, todo suspense é
bem-vindo. Podemos, inclusive, melhorar as coisas. Um dos bandidos sai correndo
desesperadamente. Ele está fugindo
agora. Está entrando em becos escuros, está pisando em latas de lixo e pulando
cercas. Tudo o que ele queria agora era estar em algum lugar seguro...
O que acharam? Nossa
história melhorou um pouco, hein? Mas, apesar de todo o suspense, ainda é uma
história linear. Os acontecimentos se sucedem em perfeita ordem cronológica.
Voltemos ao nosso
amigo. Ele corre, fugindo do Super-homem e, enquanto pisa o lixo, pula as
cercas e entra nos becos escuros, vai se lembrando do que aconteceu antes. A
história é toda contada do ponto de vista das lembranças do personagem.
Chama-se a isso flash back. Flash back é tudo aquilo que é contado, mas que
aconteceu antes do tempo real da história. É o principal recurso para tornar a
história não linear.
Em Piada Mortal os flash backs seguem uma ordem cronológica |
Existem vários tipos
de flash backs. No simples, as lembranças do personagem seguem uma seqüência
cronológica. Assim, nosso amigo vai se lembrar de quando seus comparsas estavam
planejando o roubo para depois se lembrar do roubo em si. Um exemplo de flash
back simples é Piada Mortal, de Alan
Moore.
Mas as memórias não
precisam, necessariamente, seguir uma ordem. Pelo contrário, elas podem vir
embaralhadas, como cartas de um baralho.
Certa vez, eu e Joe
Bennett (Bené Nascimento) fizemos uma história em que usávamos esse recurso.
Ela começava com o Puritano, o personagem principal, sobre uma clarabóia de
vidro. Lá embaixo uma garota estava sendo sacrificada num rito satânico. Ele
pula e quebra a clarabóia. O tempo real da história se passa em alguns segundo:
é o tempo de chegar ao chão. Toda a trama é contada pelas lembranças, tanto de
Puritano quanto da moça.
Poderíamos, claro,
ter mostrado primeiro os flash backs da moça e depois os do Puritano. Mas não.
Preferimos embaralhar tudo. As lembranças eram mostradas intercalada e numa
ordem não cronológica... Outro exemplo de narrativa não-linear é a história
Belzebu, escrita por mim e desenhada por Joe Bennett. A história começa do
final, e os fatos do passado são narrados como uma lembrança da personagem. No
caso dessa história há também uma interessante estrutura de elipse, pois a
história começa e termina com um cachorro morto.
Watchmen e o flash back não cronológico |
Um ótimo exemplo de
flash back embaralhado é o capítulo quatro (dois no Brasil) de Watchmen, quando Dr. Manhathan está em
marte e começa a lembrar do seu passado.
Outro ótimo exemplo
é a mini-série Skreemer, de Peter
Millingan. Lá existem tantos flash backs não cronológicos e de tantos
personagens que o colorista optou por usar tons pastéis nas cenas de passado.
Isso para não confundir o leitor. O resultado é que cada releitura de Skreemer nos revela novos detalhes da trama. E, falando em
detalhes, aí vai um: o tempo real da trama é de 15 minutos, o tempo que Skreemer está esperando para soltar seus
balões infectados.
Um recurso
interessante de narrativa que Alan Moore diz ter emprestado de Gabriel Garcia
Marques é contar a história através das narrativas de vários personagens. Só
que nenhum deles tem a história completa, de modo que o leitor é obrigado a
montar a trama mentalmente, como se
montasse um quebra-cabeça.
O filme Cidadão Kane, de Orson Wells, mostra uma
técnica narrativa semelhante. A história é construída através do depoimento de
várias pessoas que conheceram Kane e muitas vezes os mesmos fatos são mostrados
de maneiras bem diferentes.
Há um livro da
coleção Perry Rhodan que leva ao
extremo essa possiblidade narrativa. Dois agentes que se odeiam são mandados
para realizar, juntos, uma missão em um planeta distante. A aventura é contada
através do relatório dos dois. Acontece que os dois documentos são
absolutamente discordantes. Um fato é mostrado como heróico em um dos
relatórios e patético em outro. O resultado é muito divertido de se ler.
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