Houve um tempo em que famílias inteiras se postavam na frente do
rádio para ouvir músicas, novelas e informações. Para se ter uma idéia da
popularidade do rádio na primeira metade do século passado, na virada dos anos
40 para a década de 50, apenas 30% da população brasileira tinha geladeira, mas
70% possuía um rádio. Na verdade, o rádio havia crescido em uma progressão
geométrica desde a instalação das primeiras rádios no Brasil, na década de 30 e
se firmou definitivamente a partir de 31 de dezembro de 1942, quando a Rádio
Nacional passou a ser irradiada do Rio de Janeiro para todo o país.
Nessa época, mágica para muitos, havia uma grande curiosidade sobre as estrelas do rádio (ou cartaz, como se dizia na época). Afinal, os fãs só conheciam a voz dos seus ídolos. Para saciar a curiosidade dos fãs surgiu a Revista do Rádio, durante muito tempo uma das publicações mais famosas do Brasil. Para não deixar essa época se perder no limbo do tempo, a editora Relume Dumará e a Secretaria de Cultura da prefeitura do Rio de Janeiro trazem a público um livro sobre o assunto.
Revista do Rádio, de Rodrigo Faour conta toda a trajetória da publicação desde sua origem até os tempos de decadência, quando o rádio foi suplantado pela televisão. No total foram 22 anos de sucesso. A revista chegou a ficar tão famosa que se tornou marchinha de carnaval, na voz do palhaço Carequinha: “Ela é fã da Emilinha/ Não sai do 'César Alencar'/ Grita o nome do Cauby – Cauby!? E depois de desmaiar/ Pega a revista do Rádio/ E começa a se abanar”.
A cabeça por trás da Revista do Rádio era Anselmo Domingos. Homem tímido e educadíssimo, católico apostólico, Anselmo tinha seu nome ligado ao veículo. Desde pequeno ele escrevia programas para a Educadora. Mais tarde, tornou-se diretor artístico da Tamoio, parte do complexo de comunicação de Assis Chateaubriand. Na rádio, ele inovou fazendo novelas religiosas com a vida dos santos que bateram todos os recordes de audiência. Mas seu sonho era fazer uma revista que falasse dos astros e não fosse vinculada a nenhuma emissora. Mas não tinha dinheiro. Todos os antropólogos que se debruçaram sobre a cultura nacional encontraram como traço facilmente reconhecível: o jeitinho. A história da Revista do Rádio comprova isso. Quem acabou arranjando o financiamento para a criação da revista foi um banqueiro, José Batista, conhecido como China da Saúde, que comprava músicas e entrava como co-autor.
O primeiro número da revista saiu em fevereiro de 1948, custava três cruzeiros e foi um sucesso imediato. Em 1949 ela já vendia 50 mil exemplares. Em 1950 já se tornava semanal. A razão disso estava na forma diferenciada como a nova publicação tratava o mundo do rádio. Antes existiam outras publicações sobre o assunto, como A Carioca, A Noite Ilustrada, A Noite e A Manhã, mas todas funcionavam como órgão oficial de divulgação da Rádio Nacional, pertencente ao governo. Ou seja, eram o que se chama no meio jornalístico de revistas de releases. A nova publicação, ao contrário, divulgava todas as rádios e de forma mais autônoma, agradando a um público mais amplo.
Segundo Faour, a revista tinha os ingredientes certos para agradar ao público dos anos 40/50: “Não bastassem as informações em geral sobre a vida pessoal e artística das celebridades do momento, havia ‘fuxicos’ e um pouco de apelação em suas manchetes para atingir em cheio a curiosidade do povão”. As seções da revista comprovam isso. A seção “Ficha completa”, por exemplo trazia informações sobre os artistas na forma de pequenas frases. Como exemplo, a ficha (resumida) de Agnaldo Rayol:
"Seu verdadeiro nome é Agnaldo Coniglio Rayol. Usa pasta dental colgate e sabonete cinta azul. Tem a mania de morder os lábios. Seus pratos prediletos: nhoque e vatapá. Dorme de calção. Em casa adora andar de chinelos. Adora o nome Sueli."
Como se vê, as informações (totalmente fúteis) eram organizadas na forma de fichário, daí o nome da seção.
A “Eu sou assim” era dividida em duas colunas: “Eu gosto” e “Eu não gosto”. Para uma pergunta dessas, nenhuma resposta poderia ser melhor do que a dada pela cantora Stelinha Egg, especializada em canções folclóricas: “Eu gosto de tudo que é belo e não gosto de tudo que feio”.
A seção “Entrevista Teco-teco” trazia um perfil dos artistas, com suas opiniões sobre assuntos recentes. As perguntas eram do tipo: que marca de automóvel você prefere? O que você acha de tal moda? Respostas muito interessantes deu a cantora Dolores Duran em entrevista publicada 15 dias antes de sua morte:
"Que marca prefere: o Cadillac ou o Chevrolet Belair? - Prefiro saber a 'marca' de quem está dirigindo.
"Qual o seu número da sorte? – É exatamente o que vem contido dentro de um certo envelope no fim do mês."
A seção “24 h na vida de um artista” mostrava o dia-a-dia dos artistas, ilustrado com foto. Detalhe: o dia-a-dia muitas vezes era inventado pelos redatores. Exemplo disso foi a matéria dedicada a Ademilde Fonseca. Depois de acordar às 7h30, tomava banho, escovava os dentes. Depois, alegre e jovial, a cantora saía em passeios pelo bairro de Higienópolis. De carro ou de lambreta, Ademilde matava o tempo enquanto aguardava a hora de regressar a casa. Ao lado, uma foto da cantora posando ao lado de uma lambreta.
Entrevistada por Faour, a cantora declarou: “Eu nunca andei de lambreta, mas realmente tomava banho frio todo dia”. Outra seção curiosa era a “Minha casa é assim”. Nela, os artistas mostravam suas casas, um vexame comparado ao que vemos hoje em revistas como Caras. Mesmo a classe média não tinha um padrão alto de vida e bens de consumo eram pouquíssimos. Quando um artista tinha carro, esse fato era bastante destacado nas matérias como forma de demonstrar o status do mesmo.
Se a seção “Minha casa é assim” revela as diferenças econômicas do Brasil da década de 50 para o atual, a seção “Pergunta da semana” revela as diferenças culturais. Em setembro de 1952, por exemplo, a revista perguntou aos artistas qual a melhor profissão para mulher.
Joana D’Arc, da rádio Tupi, respondeu, “A de esposa, porque é o mais belo cargo e o que a mulher pode exercer com facilidade e segurança”.
Saint Clair Lopes (que fazia a voz do personagem Sombra), respondeu: “Qualquer profissão serve para a mulher, desde que ela não abdique de seus direitos de dona do lar, a dona da casa”.
Mas o grande sucesso da revista foi a seção “Mexericos da Candinha”. A partir dela, Candinha virou sinônimo de fofoqueira. Qualquer coisa era assunto para uma fofoca: o valor gasto por uma cantora no ar-condicionado, uma festa dada por uma celebridade do rádio, a magreza de uma atriz, a suspeita de infidelidade conjugal...
Eis alguns exemplos do veneno da Candinha:
"Esse Humberto Teixeira tem cada uma! A última foi uma festa que ele promoveu lá nos cafundós da Gávea, perto da Vista Chinesa, uma festa de noite, até de madrugada, e onde rolou tudo! Basta dizer que lá pelas tantas a ordem era reviver os tempos de Adão e Eva! E olhem que muita gente boa estava presente... Esse Humberto!
"Vocês já repararam que a Dalva de Oliveira não despreza um crucifixo de ouro que traz sempre ao pescoço? Eu quis saber dela quem deu a linda cruz, Dalva disse que não podia dizer. É um segredo que ela levará para o túmulo – e nada mais adiantou.
"Maysa e Ângela continuam se odiando cordialmente.
"O prato predileto do Cauby é feijoada. Mas nem assim ele engorda. Pesa 60 kg com roupa e tudo!"
Claro que isso eram tempos passados, quando raramente o editor de uma revista ou jornal era processado. Hoje isso seria impossível. Mas os artistas da época tinha outra forma de se vingar: fazendo música. A primeira delas saiu em 1963 e foi gravada pelo comediante Moacyr Franco. A segunda, mais famosa, é de 1965 e foi gravada por Roberto Carlos:
"A Candinha vive a falar de mim em tudo
Diz que sou louco, esquisito e cabeludo
E que eu não ligo para nada
Que dirijo em disparada (...)
Mas a Candinha já está falando até demais
Porém ela no fundo saber que eu sou um bom rapaz
Sabe bem que essa onda é uma coisa natural
E eu digo que viver assim é que é legal
Sei que a Candinha vai comigo concordar
Mas sei que ainda vai falar..."
O autor, Raimundo Faour, é jornalista formado pela PUC/ RJ. Tem trabalhado como critico musical, além de ajudar diversas gravadoras a recuperarem seu acervo. É autor do livro “Bastidores: Cauby Peixoto: 50 anos da voz e do mito”. Assina coluna na revista Muito Prazer sobre músicas da MPB que tratam de amor e sexo. Sua especialização em música antiga o faz o autor ideal para o projeto. Além disso, o estilo usado por ele no livro lembra o que era usado na própria Revista do Rádio. Uma das características desse estilo: cada parágrafo termina com uma pergunta retórica ou com uma exclamação, do tipo: “Que mimo!”, “Não é mesmo?”, “Vocês não concordam?”. Ou seja, é como se o leitor estivesse tendo contato com a própria revista.
Revista do Rádio é um bom livro não só para quem é fã da época aura do rádio, como também para os interessados em história das comunicações no Brasil.
Nessa época, mágica para muitos, havia uma grande curiosidade sobre as estrelas do rádio (ou cartaz, como se dizia na época). Afinal, os fãs só conheciam a voz dos seus ídolos. Para saciar a curiosidade dos fãs surgiu a Revista do Rádio, durante muito tempo uma das publicações mais famosas do Brasil. Para não deixar essa época se perder no limbo do tempo, a editora Relume Dumará e a Secretaria de Cultura da prefeitura do Rio de Janeiro trazem a público um livro sobre o assunto.
Revista do Rádio, de Rodrigo Faour conta toda a trajetória da publicação desde sua origem até os tempos de decadência, quando o rádio foi suplantado pela televisão. No total foram 22 anos de sucesso. A revista chegou a ficar tão famosa que se tornou marchinha de carnaval, na voz do palhaço Carequinha: “Ela é fã da Emilinha/ Não sai do 'César Alencar'/ Grita o nome do Cauby – Cauby!? E depois de desmaiar/ Pega a revista do Rádio/ E começa a se abanar”.
A cabeça por trás da Revista do Rádio era Anselmo Domingos. Homem tímido e educadíssimo, católico apostólico, Anselmo tinha seu nome ligado ao veículo. Desde pequeno ele escrevia programas para a Educadora. Mais tarde, tornou-se diretor artístico da Tamoio, parte do complexo de comunicação de Assis Chateaubriand. Na rádio, ele inovou fazendo novelas religiosas com a vida dos santos que bateram todos os recordes de audiência. Mas seu sonho era fazer uma revista que falasse dos astros e não fosse vinculada a nenhuma emissora. Mas não tinha dinheiro. Todos os antropólogos que se debruçaram sobre a cultura nacional encontraram como traço facilmente reconhecível: o jeitinho. A história da Revista do Rádio comprova isso. Quem acabou arranjando o financiamento para a criação da revista foi um banqueiro, José Batista, conhecido como China da Saúde, que comprava músicas e entrava como co-autor.
O primeiro número da revista saiu em fevereiro de 1948, custava três cruzeiros e foi um sucesso imediato. Em 1949 ela já vendia 50 mil exemplares. Em 1950 já se tornava semanal. A razão disso estava na forma diferenciada como a nova publicação tratava o mundo do rádio. Antes existiam outras publicações sobre o assunto, como A Carioca, A Noite Ilustrada, A Noite e A Manhã, mas todas funcionavam como órgão oficial de divulgação da Rádio Nacional, pertencente ao governo. Ou seja, eram o que se chama no meio jornalístico de revistas de releases. A nova publicação, ao contrário, divulgava todas as rádios e de forma mais autônoma, agradando a um público mais amplo.
Segundo Faour, a revista tinha os ingredientes certos para agradar ao público dos anos 40/50: “Não bastassem as informações em geral sobre a vida pessoal e artística das celebridades do momento, havia ‘fuxicos’ e um pouco de apelação em suas manchetes para atingir em cheio a curiosidade do povão”. As seções da revista comprovam isso. A seção “Ficha completa”, por exemplo trazia informações sobre os artistas na forma de pequenas frases. Como exemplo, a ficha (resumida) de Agnaldo Rayol:
"Seu verdadeiro nome é Agnaldo Coniglio Rayol. Usa pasta dental colgate e sabonete cinta azul. Tem a mania de morder os lábios. Seus pratos prediletos: nhoque e vatapá. Dorme de calção. Em casa adora andar de chinelos. Adora o nome Sueli."
Como se vê, as informações (totalmente fúteis) eram organizadas na forma de fichário, daí o nome da seção.
A “Eu sou assim” era dividida em duas colunas: “Eu gosto” e “Eu não gosto”. Para uma pergunta dessas, nenhuma resposta poderia ser melhor do que a dada pela cantora Stelinha Egg, especializada em canções folclóricas: “Eu gosto de tudo que é belo e não gosto de tudo que feio”.
A seção “Entrevista Teco-teco” trazia um perfil dos artistas, com suas opiniões sobre assuntos recentes. As perguntas eram do tipo: que marca de automóvel você prefere? O que você acha de tal moda? Respostas muito interessantes deu a cantora Dolores Duran em entrevista publicada 15 dias antes de sua morte:
"Que marca prefere: o Cadillac ou o Chevrolet Belair? - Prefiro saber a 'marca' de quem está dirigindo.
"Qual o seu número da sorte? – É exatamente o que vem contido dentro de um certo envelope no fim do mês."
A seção “24 h na vida de um artista” mostrava o dia-a-dia dos artistas, ilustrado com foto. Detalhe: o dia-a-dia muitas vezes era inventado pelos redatores. Exemplo disso foi a matéria dedicada a Ademilde Fonseca. Depois de acordar às 7h30, tomava banho, escovava os dentes. Depois, alegre e jovial, a cantora saía em passeios pelo bairro de Higienópolis. De carro ou de lambreta, Ademilde matava o tempo enquanto aguardava a hora de regressar a casa. Ao lado, uma foto da cantora posando ao lado de uma lambreta.
Entrevistada por Faour, a cantora declarou: “Eu nunca andei de lambreta, mas realmente tomava banho frio todo dia”. Outra seção curiosa era a “Minha casa é assim”. Nela, os artistas mostravam suas casas, um vexame comparado ao que vemos hoje em revistas como Caras. Mesmo a classe média não tinha um padrão alto de vida e bens de consumo eram pouquíssimos. Quando um artista tinha carro, esse fato era bastante destacado nas matérias como forma de demonstrar o status do mesmo.
Se a seção “Minha casa é assim” revela as diferenças econômicas do Brasil da década de 50 para o atual, a seção “Pergunta da semana” revela as diferenças culturais. Em setembro de 1952, por exemplo, a revista perguntou aos artistas qual a melhor profissão para mulher.
Joana D’Arc, da rádio Tupi, respondeu, “A de esposa, porque é o mais belo cargo e o que a mulher pode exercer com facilidade e segurança”.
Saint Clair Lopes (que fazia a voz do personagem Sombra), respondeu: “Qualquer profissão serve para a mulher, desde que ela não abdique de seus direitos de dona do lar, a dona da casa”.
Mas o grande sucesso da revista foi a seção “Mexericos da Candinha”. A partir dela, Candinha virou sinônimo de fofoqueira. Qualquer coisa era assunto para uma fofoca: o valor gasto por uma cantora no ar-condicionado, uma festa dada por uma celebridade do rádio, a magreza de uma atriz, a suspeita de infidelidade conjugal...
Eis alguns exemplos do veneno da Candinha:
"Esse Humberto Teixeira tem cada uma! A última foi uma festa que ele promoveu lá nos cafundós da Gávea, perto da Vista Chinesa, uma festa de noite, até de madrugada, e onde rolou tudo! Basta dizer que lá pelas tantas a ordem era reviver os tempos de Adão e Eva! E olhem que muita gente boa estava presente... Esse Humberto!
"Vocês já repararam que a Dalva de Oliveira não despreza um crucifixo de ouro que traz sempre ao pescoço? Eu quis saber dela quem deu a linda cruz, Dalva disse que não podia dizer. É um segredo que ela levará para o túmulo – e nada mais adiantou.
"Maysa e Ângela continuam se odiando cordialmente.
"O prato predileto do Cauby é feijoada. Mas nem assim ele engorda. Pesa 60 kg com roupa e tudo!"
Claro que isso eram tempos passados, quando raramente o editor de uma revista ou jornal era processado. Hoje isso seria impossível. Mas os artistas da época tinha outra forma de se vingar: fazendo música. A primeira delas saiu em 1963 e foi gravada pelo comediante Moacyr Franco. A segunda, mais famosa, é de 1965 e foi gravada por Roberto Carlos:
"A Candinha vive a falar de mim em tudo
Diz que sou louco, esquisito e cabeludo
E que eu não ligo para nada
Que dirijo em disparada (...)
Mas a Candinha já está falando até demais
Porém ela no fundo saber que eu sou um bom rapaz
Sabe bem que essa onda é uma coisa natural
E eu digo que viver assim é que é legal
Sei que a Candinha vai comigo concordar
Mas sei que ainda vai falar..."
O autor, Raimundo Faour, é jornalista formado pela PUC/ RJ. Tem trabalhado como critico musical, além de ajudar diversas gravadoras a recuperarem seu acervo. É autor do livro “Bastidores: Cauby Peixoto: 50 anos da voz e do mito”. Assina coluna na revista Muito Prazer sobre músicas da MPB que tratam de amor e sexo. Sua especialização em música antiga o faz o autor ideal para o projeto. Além disso, o estilo usado por ele no livro lembra o que era usado na própria Revista do Rádio. Uma das características desse estilo: cada parágrafo termina com uma pergunta retórica ou com uma exclamação, do tipo: “Que mimo!”, “Não é mesmo?”, “Vocês não concordam?”. Ou seja, é como se o leitor estivesse tendo contato com a própria revista.
Revista do Rádio é um bom livro não só para quem é fã da época aura do rádio, como também para os interessados em história das comunicações no Brasil.
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