terça-feira, julho 06, 2021

A ilha – uma distopia que derrapa no roteiro

 


A Ilha, filme de 2004, de Michael Bay, tem uma ótima premissa e tinha tudo para ser um verdadeiro clássico do cinema. No entanto, o roterio perde-se na tentativa desesperada de transformar uma distopia num filme de ação.

O grande problema é que o grande segredo do filme acaba se revelando cedo demais e sem impacto nenhum com o objetivo de partir logo para a ação desenfreada. A reviravolta é tão banal que todo mundo, mesmo aqueles que não assistiram o filme, já sabem: um grupo de pessoas é criada em um local afastado, um dos poucos refúgios seguros depois que a Terra foi devastada por uma doença. Todos ali sonham com o dia em que serão sorteados na loteria e terão direito a ir para A Ilha, o último local paradisíaco que sobrou.

Ocorre que a Ilha não existe, nem a doença que exterminou a humanidade. Tudo faz parte de um projeto médico e as pessoas que estão ali são clones de outras, que pagaram para terem clones cujos órgãos precisariam usar quando necessário. As pessoas sorteadas na loteria vão, na verdade, para a mesa de cirurgia, onde seus órgãos são retirados.

Um dos clones descobre a verdade e a partir daí tentar fugir e salvar uma amiga que foi sorteada na loteria.

Como havia uma necessidade tão grande de deixar tempo para a ação, não há tempo para que o telespectador crie uma empatia com os personagens. O expectador não sente, por exemplo, o medo do lado de fora (contaminado).

De resto, o filme sucinta várias discussões (não aprofundadas) e remete a várias outras obras. O mito da caverna, de Platão, em que pessoas vivem presas em uma caverna e tudo que vêm são sombras das coisas verdadeiras do lado de fora, é uma referencia óbvia. Para Platão, tudo que vemos tem a sua contraparte perfeita no mundo das idéias, da mesma forma que todos os clones do filme têm sua contraparte no mundo verdadeiro.

A questão da clonagem também é algo que não passa nem perto de ser aprofundado. No filme, os clones começam a desenvolver habilidades de seus originais. Matéria recente do Fantástico mostrou que pessoas que recebem transplantes começam a desenvolver características dos doadores, como se as células humanas guardassem algum tipo de memória não-genética.

Há algum tempo um cientista norte-americano concentrou suas pesquisas nas planária, um tipo de verme dos pântanos. As planárias têm características interessantes. Por exemplo, se você cortar uma ao meio, terá duas guzanos novas. É assim que ela se reproduz: agarrando-se a uma pedra e puxando o rabo até que cabeça e rabo se separem (convenhamos, o sexo foi uma descoberta bem mais divertida!). Pois bem, esse mesmo cientista descobriu que, se ensinasse um desses bichinhos a percorrer um labirinto, depois o retalhasse e desse de comer aos outros, os comilões aprendiam a percorrer o labirinto.

Tal experiência nos diz que talvez não fosse tão sem sentido a idéia dos índios brasileiros, que comiam a carne dos guerreiros abatidos afim de conseguir dele a sua coragem.

A estarrecedora conclusão de que habilidades e memórias podem ser transmitidas pela comida me faz pensar o que estamos comendo?

Ah, mas nem pense que A Ilha faz esse tipo de discussão: os tiros e perseguições de carro são bem mais importantes...

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