Quando recebi o convite para participar mais uma vez do especial do Digestivo Cultural sobre os melhores do ano, acabei me vendo numa situação delicada: não conseguia me lembrar de nada realmente importante. Assim, convoquei uma reunião familiar.
Meu filho Alexandre sugeriu o filme do Superman, de Brian Singer.
De fato, foi um bom filme, com algo importante em um filme de super-heróis: tinha equilíbrio entre momentos introspectivos e cenas de ação. Mas talvez a maior contribuição do Brian Singer tenha sido nos levar a procurar nas locadoras o filme antigo.
Para meu prazer, redescobri que o primeiro filme, dirigido pelo Richard Donner, era de fato uma obra-prima. Tinha tudo que um bom filme de super-heróis deveria ter: ficção-científica (resgatando a origem do gênero), ótimas interpretações (Christopher Reeve era perfeitamente heróico como Super-homem e absolutamente paspalho como Clark Kent); ação; introspecção. E, para meu desprazer, redescobri o quanto Richard Lester estragou a franquia, primeira piorando o segundo filme da série, que já tinha sido iniciado por Donner, e finalmente colocando uma pedra de esquecimento sobre o terceiro filme, talvez a maior bomba de todos os tempos. Dentro do gênero, claro.
Mas era para falar dos melhores de 2006 e nós já estávamos discutindo sobre um filme da década de 1970.
Se no cinema não houve nada tão importante (pelo menos que tenha chegado em Macapá), que tal nos quadrinhos?
Aí lembrei dos lançamentos de quadrinho europeu da editora Panini. Uma obra-prima atrás da outra.
A mais inovadora delas é uma HQ escrita e desenhada por um brasileiro, Leo, que se cansou dos editores brasileiros e foi ser astro na Europa. Trata-se de Aldebaran. A história se passa em um planeta distante da terra, composto quase que só de água, cujos habitantes perderam há dezenas de anos contato com a Terra.
Algo começa a acontecer no mar, que ocupa quase toda a superfície do planeta. Animais gigantes começam a fugir da água preferindo morrer na praia a enfrentar um perigo desconhecido. Em alguns pontos a água se transforma numa espécie de gelatina viva capaz de sugar barcos e navios para o fundo do oceano. Os personagens principais, três jovens sobreviventes de uma vila destruída pelo fenômeno, precisam salvar suas vidas e ao mesmo tempo descobrir o que está acontecendo. Nisso se envolvem com cientistas perseguidos pelo Estado, com religiosos déspotas e com um simpático trambiqueiro.
Adelbaran é uma daquelas histórias que nos intrigam a cada página e nos deixam mais e mais curioso a cada quadrinho. Aquilo que, na linguagem dos roteiristas dos quadrinhos, chamamos de ganchos são sutis, ao contrário do quadrinho norte-americano, que costuma apresentar ganchos explícitos. Em uma seqüência, por exemplo, uma cientista é ferida e torna-se necessário amputar sua mão. Quando ela está fazendo o curativo, podemos observar que seus dedos estão renascendo. O leitor atencioso percebe e logo se indaga que mistério é aquele.
É através desses pequenos mistérios que Adelbaran vai se revelando aos leitores num roteiro que poucas vezes vi nos quadrinhos.
E a história é boa não só pelo roteiro, mas também pelo desenho competente de Leo, que consegue ser acadêmico e, ao mesmo tempo, criativo.
Para melhorar, a Panini lançou a história em um álbum relativamente barato (R$ 22,90, com duas histórias) e com ótima qualidade gráfica.
Entre os lançamentos da Panini também merece destaque Blueberry, de Charlier e Moebius. Não se trata exatamente de um debut nas terras tupiniquins. O famoso tenente já havia sido lançado no Brasil pelas editoras Vecchi e Abril, mas nunca com tanta qualidade editorial.
Charlier foi um dos melhores roteiristas europeus de todos os tempos e Blueberry é sua obra máxima. O personagem é um soldado beberrão e jogador inveterado vivendo aventuras em pleno velho oeste.
O roteirista sabe manejar como ninguém os diálogos, colocando-os a serviço de uma boa história (ao contrário de alguns autores mais recentes, como Brian Michael Bendis, que colocam os bons diálogos a serviço apenas de seus egos inflamados).
Nessa edição de estréia, Blueberry está na mesa de jogo. Passa a história toda assim, enquanto ao redor dele acontecem mil e uma coisas e diversos personagens secundários são explorados pelo roteiro. Uma história que se passa numa mesa de jogo pode parecer um pretexto para evitar uma trama bem elaborada, mas é justamente o oposto que ocorre. Mil e uma tramas desfilam pelas páginas e vão convergir para a tal mesa de jogo.
A Panini fez uma ótima opção editorial publicando a história em lombada quadrada e colorida (a Abril lançou a maior parte das história de Blueberry em preto e branco). O traço de Moebius (que na época assinava Giraud) ganha muito valor com a cor bem aplicada. Cada página é um quadro que pode ser observado e deleitado tanto pela bela cor quanto pelo detalhismo do desenho ou pela bela composição. Moebius é considerado o melhor desenhista da escola franco-belga e Charlier o roteirista mais eclético, rivalizando apenas com Goscinny (de Asterix). A união dos dois só poderia ser um delírio para os neurônios.
Mas será que apenas nos quadrinhos houve boas novidades? Voltamos à reunião familiar.
Então alguém veio com uma lembrança realmente importante. Se o cinema não teve grandes novidades, a televisão trouxe uma obra cujos efeitos irão repercutir por décadas: a série Lost.
Antes de mais nada, Lost mostrou que uma idéia ruim pode se tornar genial e só por isso já valia a pena. Uma série de TV sobre sobreviventes de um acidente aéreo tinha tudo para se tornar a coisa mais chata que a telinha já apresentou (sem falar que a trama acabaria no momento em que eles fossem resgatados), mas a idéia de transformar a ilha em uma miscelâneas de mistérios insolúveis salvou tudo.
Lost quebrou vários paradigmas. Entre eles o de que os flash backs não funcionam na televisão. Outro é de esse meio não suporta uma trama complexa.
Lost uniu bom roteiro com direção competente e atuações convincentes, mas o que realmente prendeu os expectadores na cadeira foram os muitos mistérios que deram origem às mais variadas teorias. Tentar descobrir o que está acontecendo na ilha é um belo exercício para os neurônios e me faz lembrar a época em que estava sendo lançado no Brasil a série em quadrinhos V de Vingança. A cada número aumentava a discussão sobre quem de fato era V. Ainda hoje na comunidade da HQ no Orkut esse assunto dá pano para manga.
O único defeito foi o horário em que a Globo apresentou a atração, em plena madrugada, um horário que parece ter sido escolhido para não dar audiência. Mas por outro lado, isso só mostrou o futuro no qual as televisão aberta já não tem tanto poder. Muita gente preferiu assistir em DVD ou baixar os episódios da internet. Como resultado, muita gente já assistiu até mesmo a segunda tempora, que ainda não foi exibida pela Globo.
Lost mostrou o quanto estavam equivocados os críticos dos meios de comunicação de massa que decretaram que a televisão era o meio mais pobre e que jamais poderia apresentar novidades ou obras de maior fôlego. É uma boa razão para olhar para trás e dizer: 2006 valeu a pena.