sexta-feira, outubro 26, 2007

Vale a pena ler de novo

Um dos meus textos mais comentados, tendo sido, inclusive, reproduzido em outros blogs e sites:

Música e história


Existem certas músicas que, mais do que qualquer tratado acadêmico, representam e analisam uma determinada época. Abaixo apresento algumas canções que marcaram gerações ou épocas.

Final dos anos 1960

Nessa época, embora se vivesse a ditadura militar, achava-se que os militares voltariam para os quartéis se houvesse pressão social nesse sentido. Era uma época de sonho, de achar que o mundo poderia ser mudado e que o povo unido venceria. Nenhuma canção marcou tanto essa época de esperança e crítica social quanto “Para não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré.




Pra não dizer que não falei das flores
Geraldo Vandré

Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Nas escolas nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão
Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão

Década de 70

A história mostrou que os soldados não estavam tão perdidos assim, tanto que arranjaram um jeito de continuar no poder. Todos sabem o restante do enredo: o AI5 fechou o Congresso, cassou políticos e eliminou os direitos civis. Uma parte da esquerda que acreditava que caminhando e cantando e seguindo a canção conseguiriam mudar a sociedade chegou à conclusão de que as coisas só mudariam através das armas.
Começaram as guerrilhas urbanas e rurais, ambas rapidamente sufocadas pelo Regime Militar. Sem ter o que fazer, os carrascos voltaram sua atenção para qualquer um que discordasse do regime. A tortura chegou aos intelectuais e artistas. A morte do jornalista Herzog é sintomática desse período. Criou-se uma era de terror, em que qualquer um podia ser a próxima vítima dos militares.
No final dos anos 70, embora já houvesse indícios de a democracia voltaria (inclusive com o governo dos EUA pressionando nesse sentido), ainda havia o medo. A música Cartomante, de Ivan Lins e Victor Martins (mas que ficou famosa na voz de Elis Regina) é a melhor representação desse período.


Cartomante
Ivan Lins e Victor Martins

Nos dias de hoje é bom que se proteja
Ofereça a face pra quem quer que seja
Nos dias de hoje esteja tranqüilo
Haja o que houver pense nos seus filhos
Não ande nos bares, esqueça os amigos
Não pare nas praças, não corra perigo
Não fale do medo que temos da vida
Não ponha o dedo na nossa ferida
Nos dias de hoje não lhes dê motivo
Porque na verdade eu te quero vivo
Tenha paciência, Deus está contigo
Deus está conosco até o pescoço
Já está escrito, já está previsto
Por todas as videntes, pelas cartomantes
Tá tudo nas cartas, em todas as estrelas
No jogo dos búzios e nas profecias
Cai o rei de Espadas
Cai o rei de Ouros
Cai o rei de Paus

Anos 80

Já estava escrito. O rei ia cair. Não só um, mas todos, o rei de espadas, de ouros e o rei de paus. O início dos anos 80 trouxe consigo o início da democracia, mas também trouxe uma geração que tinha crescido sob a sombra da Ditadura (que na época era chamada de revolução) e que tinha perdido o vínculo com a geração política do passado.
As revelações sobre as atrocidades nos países comunistas, aliadas à situação de terror interna, criou uma geração que não sabia o que queria, mas sabia o que não queria, a geração Coca-cola.



Geração Coca-Cola
Legião Urbana

Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados dos USA, de 9 às 6.
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola.
Depois de vinte anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser
Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então, vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis.
Como diz a música, esses jovens se sentiam derrubando reis, os mesmos que, na música anterior, iriam cair por força do destino e das cartomantes. Era uma geração criada sob influência dos enlatados, mas que queria cuspir de volta esse lixo em cima dos que mandavam. Era também uma geração que pela primeira vez convivia com a liberdade e queria aproveitá-la. Embora não fosse uma geração comprometida com uma ideologia específica, era política num sentido de revolta contra as injustiças.
Anos 90

Veio Sarney, angariou o entusiasmo e depois a decepção do povo e, então, o Collor. E, com o Collor, uma grave crise social. Nessa época, quase todas as pessoas que eu conhecia estavam desempregadas. Muitas empresas fecharam suas portas. Na área de quadrinhos, praticamente todas as editoras encerraram suas atividades e só sobrou o mercado erótico. Até Maurício de Souza teve que rebolar para continuar no mercado (tanto que as tirinhas da Mônica celebraram a queda de Collor).




Na época, até as pessoas que tinham emprego fixo ficaram subitamente desempregadas, por conta das privatizações. A música Teatro dos Vampiros, do Legião Urbana, é o melhor símbolo desse período negro. Como dizia a música, os bandidos estavam soltos, o povo não. E todo mundo sentia como se tivesse voltado aos tempos da ditadura, retrocedendo pelo menos 10 anos no tempo.


Teatro Dos Vampiros
Legião Urbana

E nestes dias tão estranhos
Fica poeira se escondendo pelos cantos
Este é o nosso mundo: o que é demais nunca é o bastante
E a primeira vez é sempre a última chance.
Ninguém vê onde chegamos:Os assassinos estão livres, nós não estamos
Vamos sair - mas não temos mais dinheiro
Os meus amigos todos estão procurando emprego
Voltamos a viver como há dez anos atrás
E a cada hora que passa
Envelhecemos dez semanas

Qual seria a música de nossa época?

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