segunda-feira, maio 27, 2024

A proposta libertária

 

Dias desses fiz uma postagem sobre o juiz parado na blitz da lei seca que processou a agente de trânsito que disse que ele não era Deus (recentemente a sentença foi confirmada e a agente terá de pagar 5 mil reais de indenização ao juiz). Para meu espanto, alguém viu a postagem e comentou que o tal juiz era um anarquista. Mais: defendeu que a corrupção que vemos hoje é resultado do anarquismo. Chegou a dizer que estávamos rumando para uma ditadura anarquista. Seria mais ou menos como dizer que vegetarianos têm como objetivo fazer as pessoas comerem carne. Expliquei (ou ao menos tentei) a ele o equívoco do uso da expressão só para descobrir que ele era um defensor da “intervenção militar constitucional”. Ao final, deixou uma ameaça: “Quando acontecer a intervenção, saberei onde te encontrar”.

Embora seja interpretado equivocadamente como sinônimo de bagunça, desordem e até de ditadura (razão pela qual muitos preferem a expressão “libertário”), o anarquismo é uma doutrina política heterogênea que engloba os mais variados grupos e filosofias, que vão do socialismo revolucionário ao capitalismo. O anarquismo capitalista, por exemplo, é representado pelo libertarianismo, uma corrente neo-liberal que prega a ideia de estado mínimo e imposto mínimo, com mínima intervenção do estado na vida dos indivíduos e na economia. Outro exemplo é Gandhi, que foi fortemente influenciado pelos ideias anarquista e tornou célebre a estratégia da resistência civil e da não-violência (vale lembrar que Gandhi nunca quis ocupar nenhum cargo público).

Unindo essas diversas correntes, uma ideia básica: a de que o estado será sempre ocupado por pessoas que usaram o poder em benefício próprio e que quanto mais concentrado o poder estiver nas mãos de algumas pessoas, pior será para a sociedade. Em contrapartida, quanto mais distribuído o poder, melhor para todos. Em outras palavras: a ideologia libertária é o oposto do fascismo, seja ele de direita ou esquerda.

Filosoficamente podemos remontar às teorias de Hobbes e Rousseau.

Hobbes argumentava que o homem é o lobo do próprio homem. De forma simplista: o homem é mau. Se não houver alguém fiscalizando-o, impedindo-o de praticar o mal, o homem inevitavelmente irá enveredar pelas maiores barbaridades. Esse pensamento, na época, serviu de desculpa para os regimes absolutistas. Se o homem é mau, justifica-se a existência de um rei todo poderoso para manter a sociedade sob controle e impedir que as pessoas se matem umas às outras. Essa é a premissa básica do fascismo.

Rousseau, ao contrário, dizia que o homem é, originalmente bom. Se ele se torna mau, é porque foi corrompido pela sociedade. Em outras palavras: as próprias estruturas criadas para impedir a maldade humana, na verdade acabavam provocando-a.

Em outras palavras: o poder corrompe e quanto mais poder alguém tiver, mais corrupta essa pessoal será. A ideia básica da proposta libertária é de que o poder é uma droga, que vicia, e o viciado fará de tudo para permanecer no poder. O fascismo é baseado na coersão. Essa coerção pode ser a simples ameaça de violência física ou, o que é muito mais efetivo, a ameaça de não pertencer ao grupo. Relatos de observadores do nazismo dizem que os comícios de Hitler eram pensados para criar um sentimento grandioso de grupo e fazer com que os que não pertenciam a esse grupo se sentissem excluídos e culpados. A “grande Alemanha estava sendo construída” e quem não era nazista estava de fora desse sentimento.

Solomon Asch demonstrou que pessoas poderiam dar respostas nitidamente erradas para não serem rejeitadas pelo grupo. 


Um exemplo dessa conformidade ao grupo foi a experiência levada a cabo pelo psicólogo Solomon Asch na década de 1950. Ele reunia em uma sala oito pessoas, oito das quais eram atores orientados a dar respostas erradas. Em seguida, eram mostrados dois cartões. Um deles mostrava uma linha e, no outro, três linhas de tamanhos diversos, uma das quais era igual ao do outro cartão. O psicólogo perguntava qual era a linha que correspondia ao tamanho do outro cartão. Ao verem todo o grupo darem a resposta errada, mesmo em uma situação tão clara, a maioria das pessoas acompanhava o grupo. Apenas 25% contrariava o grupo e dava respostas certas. Chama-se a esse fenômeno de conformidade social: as pessoas agem de acordo com a maioria para não serem rejeitadas. 


Outro exemplo é a pesquisa de Stanley Milgram. Um ator em uma cabine fazia o papel de um aluno. Na outra cabine, uma pessoa lhe dava choques toda vez que errava. A maioria das pessoas continuou dando choques mesmo quando achava que eles poderiam ser mortais. A razão para isso era a figura de autoridade, o pesquisador, que dava as ordens para que continuassem aplicando choques. Outras experiências mostraram que quanto mais distante essa figura de autoridade estivesse, menor era a chance das pessoas que participavam da pesquisa continuarem dando choque. 

Milgram mostrou que pessoas normais podem até mesmo matar quando estão obedecendo ordens de uma figura superior. A razão para isso? A conformidade social: desobedecer o líder pode representar ser rejeitado pelo grupo.  
A experiência de Milgram mostrou que pessoas normais podem até mesmo matar se receberem ordem para isso. 

O experimento mostrou como a coerção do grupo pode levar as pessoas a fazerem algo nitidamente errado. É impossível ler sobre esses e outros experimentos sem lembrar a ideia de Rousseau, de que o ser humano é corrompido pela sociedade. Quanto maior a concentração de poder dessa sociedade, maior o poder de uma ou algumas poucas pessoas terão sobre o grupo e maior a coerção que exercerão.

Se o fascismo é baseado na coerção, a proposta libertária é baseada na consensualidade. A liberdade individual, inclusive liberdade de pensamento, é um elemento mais relevante que a adesão ao grupo. A pessoa participa do grupo porque quer, não porque foi coagida a isso.

O fascismo é a base ideológica de todas as ditaduras e regimes totalitários. Já a visão libertária deu origem desde o movimento de resistência civil de Gandhi e Martin Luther King às proposta de democracia semi-direta, como na Suécia e Suíça, em que cidadãos comuns podem propor leis e até pedir o impeachment de governantes. Não por acaso, a Suíça era a terra natal de Rousseau.

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