quarta-feira, setembro 03, 2014

Uma norma para acabar com os quadrinhos nacionais

No dia 13 de março de 2014 o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente aprovou, de forma unânime, a resolução nº 163 que considera abusiva toda e qualquer publicidade e comunicação mercadológica dirigidas às crianças. 

A resolução é apoiada por muitos como uma forma de proteger as crianças contra os abusos, mas, se for colocada na prática, vai ter resultados muito mais amplos. 

Legislações restritivas à publicidade infantil existem em outros países do mundo. Na Suécia, por exemplo, estão proibidos os comerciais na TV aberta. Países como Chile e Peru proíbem anúncios de determinados alimentos e bebidas. Na Grécia, anúncios de brinquedos só podem ser anunciados na TV aberta em horário adulto. No Irã, bonecos dos Simpsons e da Barbie não podem ser comercializados ou anunciados. Mas esse é o primeiro caso de proibição total e absoluta de qualquer tipo de comunicação comercial voltada ao público infantil. 

A resolução considera abusiva "a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço". Estão proibidos linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; representação de criança; pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; personagens ou apresentadores infantis; desenho animado ou de animação; bonecos ou similares; promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.

A resolução define a 'comunicação mercadológica' como toda e qualquer atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, para a divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas realizada, dentre outros meios e lugares, em eventos, espaços públicos, páginas de internet, canais televisivos, em qualquer horário, por meio de qualquer suporte ou mídia, no interior de creches e das instituições escolares da educação infantil e fundamental, inclusive em seus uniformes escolares ou materiais didáticos, seja de produtos ou serviços relacionados à infância ou relacionados ao público adolescente e adulto.

Ou seja: a legislação, na prática, proíbe qualquer comunicação voltada às crianças. O maior prejudicado com a norma é, claro, Maurício de Sousa. Muitos têm comemorado o fato de que ele não pode mais colocar seus personagens em produtos infantis, como pacotes de maçãs. 

Mas a legislação é tão ampla que afeta quase toda a produção nacional destinada às crianças. As revistas em quadrinhos infantis, por exemplo, dificilmente se sustentam sem publicidade. Produzir um gibi infantil é um processo caro que quase nunca se paga apenas com as vendas de revistas (até porque essas vendas se reduzem a cada ano). Da mesma forma, os desenhos animados só são exibidos por causa da publicidade. Não por acaso, as TVs abertas estão tirando desenhos animados de sua programação. Há de se perguntar como ficarão os canais infantis da TV por assinatura, até porque eles não poderão mais ser anunciados e também não poderão mais exibir publicidade. 

Na prática, a resolução joga uma pá de cal no mercado de desenhos animados infantis, que vinha apresentando um crescimento invejável, com personagens como Peixonauta e Turma da Mônica, e coloca em situação difícil as revistas infantis nacionais, já que não é permitida nem mesmo a publicidade das próprias publicações. Ou seja: a revista do Cebolinha não pode mais anunciar o conteúdo da revista do Cascão. Pior ainda para autores que queiram lançar gibis com personagens novos, que não poderão ser divulgados. Nem mesmo a distribuição de brindes para as crianças são mais permitidos. Na prática, Maurício de Sousa ainda está em uma situação melhor do que outros quadrinistas que queiram lançar outras publicações infantis. Nunca mais veremos o lançamento de outros gibis. 

Mas essa é uma visão otimista. A legislação é tão ampla que, na prática, pode proibir até mesmo as capas dos gibis infantis. Veja-se: a legislação considera "'comunicação mercadológica' como toda e qualquer atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, para a divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas realizada, dentre outros meios e lugares, em eventos, espaços públicos, páginas de internet, canais televisivos".

Todo manual de marketing explica que um dos elementos essenciais da comunicação mercadológica é o merchandising, ou apelo no ponto de venda. No caso das bancas de revista, o apelo comercial é feito através das capas das revistas. Ou seja, sob qualquer aspecto, a capa de um gibi é uma comunicação mercadológica. Se a norma realmente for seguida, os editores de revistas infantis terão que se adaptar, uma vez que não poderão mais exibir personagens nas capas de suas revistas. Uma solução talvez seja vender as revistas lacradas, com tarjas escondendo os personagens da mesma forma como hoje se faz com as revistas pornográficas. Num mercado em que gibis vendem cada vez menos, a resolução pode ser a pá de cal no mercado de quadrinhos nacionais. 

Lendo a legislação lembrei do amigo desenhista Antonio Eder, que, mesmo depois de adulto, ainda tinha o álbum de figurinhas do Palhaço Zequinha, lançado pelo governo do Paraná no final dos anos 1970. O álbum era gratuito e as figurinhas eram trocadas por notas fiscais. Um incentivo para que a população exigisse notas fiscais que fez a alegria de muitas crianças curitibanas. Pela nova legislação, a iniciativa seria ilegal, uma vez que a norma proíbe a "promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis". 
Engana-se quem acha que o problema se restringe apenas aos quadrinhos infantis. Como maioria das pessoas acha que todo gibi é para crianças, toda a produção nacional pode ser afetada. Um exemplo: quando lancei o meu livro "Grafipar, a editora que saiu do eixo", perguntei porque o livro era vendido lacrado e com uma tarja avisando que se tratava de um livro para adultos. No meu entender, o livro era obviamente para adultos, até pela referência no subtítulo à produção erótica. "Tente explicar isso a um juiz", respondeu um editor. "Se tem desenho na capa e é quadrinhos, um pai pode achar que é para criança e nos processar. Já aconteceu com outros livros semelhantes". Ou seja: provavelmente para os "especialistas" do conselho, todo quadrinho é para criança e se encaixa na norma, até porque uma das definições para isso é o uso de cores chamativas. 

No pior dos cenários, até mesmo as coleções de miniaturas de personagens de quadrinhos (como os da Marvel e DC, que temos visto nas bancas) ficam comprometidas. Explica-se: a legislação atual já proíbe vender em banca de revista algo que não seja revista. Assim, quando se pretende lançar algo do gênero, coloca-se uma revista junto, e diz-se que o boneco é brinde para quem comprou a revista. Como agora brindes são proibidos e como a maioria das pessoas vê quadrinhos como coisa exclusivamente de crianças... 
Uma legislação que coíba abusos na publicidade infantil seria bem vinda. Mas a proibição total, com uma lei tão ampla que pode afetar até as capas dos gibis nacionais interessaria a quem? Em tempo, as citações entre aspas foram retiradas diretamente do site do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente.

Texto originalmente publicado no Digestivo Cultural

quinta-feira, agosto 21, 2014

O UIVO DA GÓRGONA



Edgar encostou-se à parede do mercado, entre os sacos de salgados e os refrigerantes, e segurou a respiração. Em seus braços, a menina o olhava, aterrorizada e ameaçava chorar (oh, Deus, faça com que ela não chore, pensou ele. Não agora).
- Estão passando. – anunciou Jonas.
Ele podia ouvi-los. Podia ouvir seus pés arrastando pelo chão de asfalto, os gruninhos terríveis que soltavam, um ou outro rosnar.  Era como uma maré de ódio, fedor e algazarra se aproximando assustadoramente da praia.
Era irônico que para ele tivesse começado tudo com silêncio.
Apesar do quarto com isolamento acústico, que mantinha todo o barulho lá fora, tinha sido uma noite terrível, repleta de pesadelos. Em seu sonho havia uma música (não, não era uma música, um barulho, apenas um barulho) muito, muito alta. E, diante dele, seguia uma procissão de loucos, como flashes sem sentido. Uma mulher grávida rasgava o próprio ventre, retirava o feto e o comia. Homens agrediam-se uns aos outros, que agrediam outros e outros e outros e outros, até que sobrasse apenas uma luta insana.
Quando acordou, percebeu que a cama estava molhada de suor. O ar condicionado não estava funcionando.
Sem energia, pensou ele, enquanto ia ao banheiro lavar o rosto.
De fato, só percebeu que havia algo errado quando saiu do quarto. Ficou por instante parado, no meio da sala, tentando descobrir o que havia de estranho, o que havia de errado. Então percebeu: o silêncio. Não havia barulhos lá fora.
(Estamos sem energia, pensou ele, é apenas isso, mas uma parte dele dizia que não era só isso)
Não havia barulho algum. Nem mesmo um rádio, a vizinha gritando com o filho, nada.
No quintal, a mesma coisa: apenas o silêncio. Um pássaro aproximou-se, pousou no muro, olhou para ele, e foi embora, sem emitir qualquer barulho.
Ao sair na rua, espantou-se ao descobrir que não havia ninguém ali. Olhou no relógio: oito horas. Nesse horário a rua costumava estar movimentada. Mães que retornando depois de levar seus filhos no colégio, vendedores, vizinhas fofocando. Mas não, não havia nada ali. Nenhum barulho, nenhuma pessoa. Como se toda a vida humana da terra tivesse desaparecido de um momento para o outro.
Duas ou três casas depois que ouviu o primeiro som, dentro de uma casa de muro alto e portão fechado. Vidro quebrado. Parecia uma vidraça sendo estilhaçada. O som foi acompanhado de um urro de dor e depois de outro barulho de vidro. Quem estaria fazendo aquilo? Alguém deixara cair uma placa de vidro e se machucara no processo? Mas porque o som continuara?
Edgar aproximou-se, mas o portão não permitia ver nada lá dentro. Assim, avançou e dobrou a esquina. Estava apenas de short e camiseta e não tinha a mínima ideia de porque estava fazendo aquilo, andando na rua, sem destino aparente, mas algo dentro dele lhe dizia que algo estava muito, muito errado.
(algo está acontecendo, algo terrível)
Estava se aproximando do mercado quando viu um grupo de pessoas se aproximando ao longe. Deviam ser umas vinte ou trinta e andavam lentamente, lado a lado uma com a outra.
Foi quando algo pegou em seu ombro.

Esse é o primeiro capítulo de meu novo romance, O uivo da Górgona. Se você gostou, vá para o blog do livro. Vou publicar uma média de dois capítulos por dia.

segunda-feira, julho 28, 2014

Como a publicidade manipula você


Na recente polêmica sobre publicidade infantil existe uma espécie de mantra: a publicidade infantil é manipuladora. Toda publicidade é manipuladora. Bom exemplo é o vídeo abaixo, de uma propaganda do banco Itaú para convencer os clientes a optarem por receberem apenas o extrato digital.
Aparentemente é um vídeo bem bacana. A pessoa assiste e pensa: que legal, vou ajudar o meio ambiente! E tem um bebê muito fofo rindo!
A campanha, até onde eu pesquisei, foi um sucesso, com muitos clientes optando por só receberem o extrato via e-mail.
Mas vamos esquecer o bebê lindo rindo. O que realmente há por trás dessa campanha? A preocupação do Itaú com o meio ambiente? Dificilmente. Eles apenas perceberam que a onda ecológica lhes trazia uma grande oportunidade. Primeiro por associar sua marca a uma campanha aparentemente ecológica. Mas, principalmente, porque isso economizaria uma fortuna ao banco, que não precisaria mais gastar com impressão e correio. É famosa a história da empresa de aviação que economizou milhões tirando uma única azeitona de cada refeição. Imagina qual foi a economia do Itaú.
Se optasse por receber o extrato por e-mail, o cliente deveria receber um desconto nas taxas de serviços, afinal, é um serviços que está deixando de ser prestado. Mas o cliente nem pensa nisso. Afinal, ele está hipnotizado pelo bebê fofo rindo.
Ou seja: a expectador foi manipulado para dar ainda mais lucro a um banco que já fatura por ano o equivalente ao PIB de alguns países. O negócio dos bancos é tão rentável e abusivo que, se você for comprar um carro, eles farão de tudo para que você não compre à vista: é que se você comprar parcelado o que eles irão ganhar com juros e taxas é mais do que eles estão ganhando com o carro. Não é à toa que várias empresas que fabricam carros estão criando seus próprios bancos.


Antologia Terra da magia


Já está disponível o e-book Terra da Magia, organizado por mim e que conta com uma grande equipe de autores. São contos que misturam a mitologia clássica da fantasia com a realidade e a cultura brasileira.
Para baixar, clique aqui.

quinta-feira, julho 24, 2014

Vamos proibir a publicidade de bancos e financeiras?



Uma das entidades que mais trabalha contra a publicidade dirigida às crianças, como se isso fosse crime, é a Alana, que tem como presidente a esposa de um dos maiores banqueiros do pais, o casal Ana Lúcia e Alfredo Egydio Arruda Villela Filho, ele dirigente do Itaú e dono de uma fortuna pessoal de mais de 1,4 bilhão de reais, segundo a Forbes.
Se a publicidade para crianças é nociva, o que podemos dizer da publicidade dos bancos e das instituições financeiras, com o juros de assaltantes que cobram dos brasileiros – estes cada vez mais endividados. Não seria adequado proibir também a publicidade financeira? Ou os adultos não são estimulados a obter e usar cartões de créditos, cheques especiais e empréstimos, consignados ou não?
Não é abusivo? Leia mais

Em tempo: este é o perfil da ONG Alana, que está financiando a campanha contra os quadrinhos e a animação nacional. 

Manifesto a favor da publicidade para crianças (e contra a publicidade para bancos)

O Conanda decreta assim que a publicidade infantil fere o que está previsto na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código de Defesa do Consumidor. As organizações que reúnem órgãos de imprensa e agências de publicidade, naturalmente, são contra. Defendem que a resolução não tem força de lei coisíssima nenhuma. Que só o Congresso pode legislar sobre o assunto. Imbróglio armado.
Aconteça o que acontecer, já é uma grande vitória do Instituto Alana. Essa organização faz pressão para proibir a publicidade infantil há anos. Até financiou documentários sobre o tema, como “Criança, a Alma do Negócio”, visto por mais de um milhão de pessoas na internet; e “Muito Além do Peso”, sobre obesidade. Voltamos ao Alana daqui a pouco. Muita gente boa aplaude a resolução 163. Vários cretinos a criticam. Vou meter a colher – você lê, e decide se sou cretino ou gente boa. Leia mais

Sabe a última do quadrinho infantil? MORREU!

header post publicicade
Vamos festejar nosso governo. E nosso Estado que não é nação.
Caras, esse é um texto sério sobre um assunto igualmente sério. Se você só está a fim agora de se divertir ou algo para passar o tempo enquanto não chega a hora de ir embora do trabalho não o critico, também curto isso, e até por isso sugiro que passe batido por esse texto.
Não sei se vocês sabem mas existem dentro da máquina pública instâncias chamadas “Conselhos”, formadas por agentes públicos e representantes da sociedade civil. Tais Conselhos têm poder regulatório e agem formulando políticas públicas, o que, em tese, daria maior poder popular na implementação dessas políticas, dentro do objetivo maior de ampliação do que seria uma “democracia direta e mais participativa”. 
 Então, na instância federal um desses Conselhos é o Conanda – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – subordinada à Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Leia mais

O fim dos desenhos animados na TV brasileira


Uma norma para acabar com os quadrinhos nacionais

No dia 13 de março de 2014 o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente aprovou, de forma unânime, a resolução n. 163 que considera abusiva toda e qualquer publicidade e comunicação mercadológica dirigidas às crianças. 

A resolução é apoiada por muitos como uma forma de proteger as crianças contra os abusos, mas, se for colocada na prática, vai ter resultados muito mais amplos. 

Legislações restritivas à publicidade infantil existem em outros países do mundo. Na Suécia, por exemplo, estão proibidos os comerciais na TV aberta. Países como Chile e Peru proíbem anúncios de determinados alimentos e bebidas. Na Grécia, anúncios de brinquedos só podem ser anunciados na TV aberta em horário adulto. No Irã, bonecos dos Simpsons e da Barbie não podem ser comercializados ou anunciados. Mas esse é o primeiro caso de proibição total e absoluta de qualquer tipo de comunicação comercial voltada ao público infantil. 

A resolução considera abusiva "a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço". Estão proibidos linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; representação de criança; pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; personagens ou apresentadores infantis; desenho animado ou de animação; bonecos ou similares; promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.

A resolução define a 'comunicação mercadológica' como toda e qualquer atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, para a divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas realizada, dentre outros meios e lugares, em eventos, espaços públicos, páginas de internet, canais televisivos, em qualquer horário, por meio de qualquer suporte ou mídia, no interior de creches e das instituições escolares da educação infantil e fundamental, inclusive em seus uniformes escolares ou materiais didáticos, seja de produtos ou serviços relacionados à infância ou relacionados ao público adolescente e adulto.

Ou seja: a legislação, na prática, proíbe qualquer comunicação voltada às crianças. O maior prejudicado com a norma é, claro, Maurício de Sousa. Muitos têm comemorado o fato de que ele não pode mais colocar seus personagens em produtos infantis, como pacotes de maçãs. 

Mas a legislação é tão ampla que afeta quase toda a produção nacional destinada às crianças. Leia mais

domingo, julho 20, 2014

Fake art e a pet humana


No mundo de hoje, as separações entre as coisas vão cada vez mais se esvaziando. A arte se mistura com a vida, a diversão com a informação, a realidade com a informação. Assim, torna-se cada dia mais difícil distinguir o falso (fake) do real, até porque, o que é falso hoje pode ser nada mais do que a antecipação de um acontecimento futuro, em especial quando se trata do desenvolvimento da ciência. 

Sintoma desse estado das coisas são os diversos perfis fakes (estima-se que 27% dos perfis das redes sociais sejam fakes) e os hoaxes, notícias falsas que se espalham pela internet. 

Os artistas reagem a essa realidade gerando trabalhos questionadores, críticos, que colocam em cheque tanto a nossa noção de realidade quanto a forma como as mensagens têm sido transmitidas e retransmitidas, sem nenhum filtro crítico. Tais trabalhos questionam a credibilidade e a abundância de informações no ciberespaço, levantando questões morais e éticas.

Exemplo disso é a obra do escutor iuguslavo Darko Maver. Sua obra, conhecida em outros países a partir do final dos anos 1990, denunciava a tortura exercida pelo regime comunista, com corpos mutilados e fetos mal-formados. O regime havia destruído a maior parte de suas esculturas e sobrara apenas fotos delas, disponibilizadas através da rede. Sua obra era tão subversiva que Maver foi preso e condenado à morte por "antipatriotismo". Sua morte provocou uma forte reação no mundo artístico. Ele chegou a ser homenageado na 48ª Bienal de Veneza. 

Pouco depois do evento, veio a revelação: a história era falsa, criada pelos integrantes do grupo 0100101110101101.ORG - codinome de Eva e Franco Mattes. Todos os documentos e imagens haviam sido forjados. 

Outro exemplo: em 1999, o artista Alexei Shulgin criou um site falso que ofertava drives genitais capazes de proporcionar relações sexuais a distância. O site tinha abas para pedidos, perguntas mais frequentes e especificações técnicas. Segundo o artista e pesquisador Fábio Nunes (também conhecido como Fábio Fon), "É exatamente esse ato de assumir características de um equivalente não-artístico - sites de comércio eletrônico - que dá verossimilhança à proposta, tornando possível acreditar que tais dispositivos realmente estivessem à venda".

Outro exemplo é concurso falso de web arte criado pela ciberfeminista Cornelia Sollfrank em 1997. Todos os participantes eram perfis fakes com perfis e obras criadas pelo computador através de uma algorítimo. Embora dois terços dos inscritos fossem mulheres, os três primeiros ganhadores eram homens. A obra, denominada Female Extension, discute o machismo em concurso artísticos. 

Fábio Fon chama essas obras de fake art. Segundo ele, ao atuar no mundo do improvável e "tomar de assalto uma audiência crédula e questionar diretamente nosso poder individual de discernir entre o 'verdadeiro' e o 'falso', estas ações podem ser muito mais eficazes quando se trata de aproximar uma discussão crítica". 

O tema é tão relevante que já existe até mesmo um museu, na Alemanha, dedicado apenas à fake art. A maioria de seu acervo é de falsificações de quadros, mas há também o Diário de Hitler, realizado por Konrad Kujau.

Eu também me aventurei pelo campo da fake art. Com parte da disciplina Arte e Tecnologia do doutorado em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG), eu e o artista José Loures criamos uma história falsa baseada no universo pós-humano criado por Edgar Franco. Franco, no álbum Biocyberdrama propõe um mundo em que três grupos: humanos resistentes, tecnogenéticos e extropianos. Os tecnogenéticos são fruto da hibridação entre humanos, animais e vegetais, permitidos pelo avanço da engenharia genética. Os extropianos são pessoas que transmitiram sua consciência para corpos robóticos, vivendo, assim, eternamente. Os resistentes são pessoas que resistem às mudanças extropianas e tecnogenéticas. Reproduzem-se sexualmente e imitam o modo de vida dos antepassados. Leia mais

sexta-feira, julho 18, 2014

Ebook sobre Teorias da Comunicação


O livro Teorias da comunicação: correntes de pensamento e metodologia de ensino reúne artigos de diversos professores do Brasil. É provavelmente uma das melhores obras sobre o assunto já publicadas em nosso país. Eu colaboro com dois artigos, um sobre a teoria hipodérmica e outro sobre a cibernética e a teoria do caos. O ebook pode ser baixado gratuitamente no site do Congresso Intercom:http://www.portcom.intercom.org.br/ebooks/detalheEbook.php?id=55845

quarta-feira, julho 16, 2014

‘Quarteto Fantástico’ não será baseado nos quadrinhos

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A atriz Kate Mara (‘American Horror Story’) falou pela primeira vez sobre o reboot de ‘Quarteto Fantástico‘. Ela, que interpreta Susan “Sue” Storm, mais conhecida como a Mulher Invisível, revelou que o longa não será baseado nos quadrinhos.
“Eu nunca fui fã de quadrinhos, eu nunca li um. Eu ia ler para fazer este filme, mas o diretor disse que não era necessário. Bem, na verdade ele nos disse que não devemos ler os quadrinhos porque o enredo não será baseado em nenhuma história já publicado. Então optei por seguir as suas instruções. A única verdade é que eu sou fã de filmes de quadrinhos, por isso é muito emocionante fazer parte deste”, afirmou. Leia mais

A cultura visual e a emancipação do receptor

Durante décadas, todos os estudos sobre os produtos culturais sempre partiam do princípio de que havia uma única interpretação a respeito sobre eles. A teoria hipodérmica, por exemplo, não só acreditava nessa perspectiva, como ainda dava aos emissores poder absoluto sobre a audiência. Influenciada por essa ótica, a maioria dos estudos se voltava para quem emitia a mensagem ou para o poder de convencimento dos meios de comunicação. Até mesmo pesquisas mais recentes, como as do campo da semiótica, partiam, em grande parte, da premissa de que havia uma interpretação pronta, singular, e que cabia a uma autoridade (o semiólogo) destrinchá-la. 

Num outro polo, a história da arte, que também se interessava por esses produtos, via a arte como carregada de significados prontos, geralmente atrelados ao seu contexto histórico, que cabia analisar e aprender. 

Numa corrente mais política, analisava-se os produtos da indústria cultural a fim de revelar suas estratégias de dominação e "ensinar a tomar consciência" (tomar consciência significava ter a interpretação desejada por aqueles que pretendiam denunciar a ideologia nos meios de comunicação). Livros como Para ler o Pato Donald e Para uma leitura crítica dos jornais são exemplos dessa vertente condutivista. 

Hoje, uma das correntes mais recentes de estudos da imagem é a que se chama de cultura visual. Ela se interessa menos pelos produtores e muito mais pelo que as pessoas fazem com esses produtos (chamados de artefatos culturais), sendo o significado livre para diversas interpretações. Não há, segundo a cultura visual, uma instância autorizada para dizer que esta ou aquela leitura é a correta. As estratégias de emancipação do receptor são muito mais no sentido de ajudá-lo a se apropriar dos artefatos culturais - ou criar a seus próprios - do que de "conscientizá-lo" dentro de uma determinada leitura. 

Percebo esse posicionamento muito próximo ao que eu sempre entendi a respeito do assunto, desde que era criança. Fã de seriados e desenhos animados, eu nunca via na tela o que estava passando, estava sempre completando o roteiro na minha cabeça, preenchendo as brechas, enxergando dilemas éticos onde eles não eram visíveis, profundidade onde ela era apenas insinuada. Alguns dos episódios que mais me marcaram eu só vi uma cena, ou uma sequência, e completei o resto na minha cabeça (e mais tarde transformei em contos ou histórias em quadrinhos).

Alguns exemplos: 

No seriado Terra de gigantes, eu sempre imaginei que talvez os protagonistas não tivessem sido transportados para um planeta de gigantes, mas antes tivessem sido reduzidos durante a tempestade elétrica e estavam na verdade na Terra. Assistindo o seriado já adulto, descobri que essa perspectiva não existia na série. O roteiro deixava bem claro que eles haviam sido transportados para outra realidade. Até hoje acho minha leitura infantil mais interessante, inclusive do ponto de vista filosófico e científico, pois joga com questões, por exemplo, da teoria da relatividade. 
No seriado Fuga do século 23, eu sempre visualizei um dilema: os heróis estão fugindo de uma cidade governada por um computador, mas têm como colega de jornada um andróide. Assistindo novamente o seriado, descobri que os roteiristas nunca exploraram essa ironia que, no meu olhar, era um dos elementos mais interessantes da série. 
No seriado Viagem ao fundo do mar, o episódio que mais me marcou foi aquele em que eles chegam em Washington e a cidade está devastada. Por alguma razão, nunca consegui assisti o restante, mas completei o roteiro em minha mente e o usei posteriormente, quando escrevi a fanfic O portal das probabilidades, baseado no universo da série alemã Perry Rhodan.
Eu, desde muito criança, sempre fui muito anti-americano. Não me pergunte porque, eu simplesmente não simpatizava com a terra de Tio Sam. No entanto, paradoxalmente, meu super-herói predileto sempre foi o Capitão América. Quando criança, eu nunca associei o herói com o país, apesar do nome e do uniforme baseado na bandeira norte-americana. Na verdade quando, já adolescente, alguém me disse que o Capitão representava os EUA, para mim foi uma surpresa. Para mim ele sempre foi um símbolo de superação (era um garoto frágil, incapaz de lutar na guerra, que se habilita a uma experiência científica e se torna um super-soldado) e da luta contra o autoritarismo. Anos depois conheci a tese de Gerard Jones, publicada no livro Homens do Amanhã, de que o Capitão na verdade é um mito judaico, do frágil judeu, perseguido pelo nazismo, que se torna forte e dá a volta por cima. O filme recente veio ao encontro da minha visão infantil: nele, o Capitão se volta contra seu próprio país ao perceber que o discurso de segurança nacional está levando a um novo tipo de fascismo. 

Assim, cada um de nós vai completando, resignificando, apropriando dos artefatos culturais que chegam até nós. Quando alguém manda algo para o mundo, seja um quadro, um filme, um seriado, uma história em quadrinhos, ela deixa de pertencer a ele e passa a pertencer a quem recebe esse conteúdo.


Texto originalmente publicado no Digestivo Cultural.