segunda-feira, setembro 06, 2010

Nosso Lar

Como sabia que o filme ia estrear, fiz questão de comprar e ler o livro Nosso Lar, de Chico Xavier, até para ter um termo de comparação. A obra é muito interessante e em alguns momentos lembra a ficção-científica do início 20. Há alguns excessos de linguagem, como a abundância de adjetivos: o aposento é confortador, as luzes cariciosas. Mas essa característica, hoje considerada um vício de linguagem, era comum na maioria dos autores antigos. No filme, a linguagem foi modernizada e os excessos tirados do diálogo e do off, o que foi uma escolha extremamemnte acertada.
Para que não conhece a  obra, Nosso Lar narra as experiências do espírito André Luiz após o desencarne, passando primeiro pelo Umbral, onde sofre por oito anos, até implorar por ajuda e ser resgatado e levado para a colônia espiritual Nosso Lar. A grande falta do médico, que o leva ao Umbral, é o ceticismo e o orgulho, que fazem com que ele demore tanto a pedir ajuda.
Uma vez na colônia, ele é iniciado nos misterios da vida espiritual, da cura, da comunicação com os vivos, etc.
A obra tem um certo caráter de "diário de viagem", que torna difícil sua adaptação cinematográfica. Um filme precisa ter uma trama, com conflitos e uma estrutura narrativa que caminha na direção da resolução do conflito. 

Em Nosso Lar, todos são bons demais e não existe uma possível figura de vilão. Da mesma forma, não há um destino que represente o conflito, já que os personagens gozam de livre-arbítrio. Como transportar isso para o cinema sem que o resultado seja duas horas de sono?
O diretor Wagner de Assis optou por focar a narrativa no conflito interno dos personagens, especialmente André Luiz e Eloísa, uma personagem terciária no livro, que aparece rapidamente se lamentando de ter morrido antes de casar e de saber que seu noivo encontrou uma nova esposa. 
André Luiz luta contra a arrogância, o egoismo e o ceticismo (e, no final do filme, contra o ciúme), e Eloísa quer a todo momento voltar para seu noivo. Boa parte da narrativa se sustenta nesse duplo conflito. André será capaz de ultrapassar seus conflitos internos, e, dessa forma, ajuda a moça, fazendo com a que a trama paralela se una à principal num roteiro bem costurado.
Ou seja: o diretor optou por uma inteligente estrutura narrativa, que prende o expectador exatamente pela identificação. Alguns talvez se identifiquem com André, outros com Eloísa.
Se o roteiro é competente e enxuto, a direção é outro ponto forte. Os efeitos especiais são grandiosos (o filme custou 20 milhões de reais, boa parte deles gastos com efeitos), mas usados em favor da narraitva. Não há efeitos apenas pelo efeito, como Hollywood muitas vezes tem feito.
O diretor também trabalha muito bem a imagem, em ótimas cenas sem diálogos, como no reencontro de André Luiz com sua esposa.
Há algumas cenas que chamam atenção dos mais atentos: quando começa a II Guerra Mundial, a colônia espíritual recebe centenas de desencarnados. A maioria deles usando a estrela de Davi (judeus), mas há também pessoas com outros símbolos usados em campos de concentração, o que se relaciona com os ensinamento de Chico Xavier de que o sofrimento liberta. A mesma cena traz um conteúdo de tolerância religiosa que se reflete também na cena da sala do governador, cujas paredes ostentam símbolos das principais religiões terrenas.
Sobre a questão da II Guerra, Chico conta, no livro, que os nazistas, ao morrerem na guerra, fugiam dos que iam resgatá-los, chamando-os de "fantasmas da cruz". Esse ponto, no entanto, não foi explorado pelo filme.
Nosso Lar conta com uma equipe internacional:  o fotógrafo suíço Ueli Steiger (“Dia depois de amanhã”, “Godzilla”, “10.000 a.C”), os canadenses da Intelligent Creatures para os efeitos especiais (“Watchmen”), a diretora de arte brasileira Lia Renha ( “A muralha”, “Hoje é dia de Maria”, “Auto da Compadecida”), e o músico  Philip Glass (“As horas”, “O ilusionista”, “O sonho de Cassandra”).
É um filme que irá agradar tanto os espíritas quanto não espíritas ou simples simpatizantes da doutrina. Mesmo aqueles que foram assisitir Nosso Lar apenas como um filme de ficção científica provavelmente irão gostar.

5 comentários:

Ivan Daniel disse...

Queria ter assistido aqui em Belém, onde estou passando o feriado, aproveitando uma sala de cimena um pouco melhor, mas não tive tempo livre. Vai ser o jeito assistir nas cavernas de cinema de Macapá.

dedozuka disse...

puxa, parece muito bom! E obrigado por fazer uma análise comparando até como livro!

Hugo Vera disse...

Assisti e recomendo.
Vão gostar do filme aqueles que quiserem saber um pouco mais da visão espírita da "vida além da vida", desde que tenham boa vontade em assistir ao filme, deixando preconceitos e ceticismos de lado.
É uma obra simples, sutil, mas que passa uma mensagem positiva, diferente de muitos filmes recentes do cinema nacional.
Vale a pena!

jjmarreiro disse...

Li esta crítica e a do Omelete (pelo Erico Borgo). E percebi o filme de duas maneiras através dos dois textos. Lá no Omelete com um tom de superioridade o texto praticamente valida o filme apenas como uma novidade estética e temática para o cinema nacional, acusando-o de excesso de didatismo, redundancia e proselitismo. O texto de Érico Borgo entitulado "Empenho técnico, retrocesso narrativo" me passou a idéia de um filme chato, tedioso, sem sal e de caráter meramente propagandístico.

Visitando costumeiramente este ambiente do Idéias de Jeca Tatu, acabei por depararme com uma boa surpresa. Outra ótica para o mesmo produto. Desta vez após ler o texto fiquei com curiosidade de ver o filme, pois vi resaltados no texto prós e contras. Nem sei se terei tempo para ver o filme, mas se for ao cinema proximamente este filme encabeçará minha lista de opções.
Obrigado pela dica, Gian!

Gian Danton/Ivan Carlo disse...

JJ,
toda resenha é, apesar da fundamentação, um exercício de subjetividade. O que um resenhista gosta, outro pode não gostar. Vale lembrar que o Omelete elogiou muito Aquária (Sandy&Jr), filme que destestei, só para ficar numa película semelhante, em termos de efeitos especiais.
Numa retrospectiva, dos filmes espíritas que já vi, Nosso Lar me parece o melhor. Bezerra de Menezes, por exemplo, tinha caráter puramente propagandístico e falhas no roteiro. Nosso Lar supera o objetivo puramente doutrinário. É uma boa obra de arte, sendo espírita ou não.