Em 1965 a cidade de Monterey, nos EUA, foi tomada por
centenas de motoqueiros cabeludos, a maioria deles pertencente à gangue Hell´s
Angels. A razão da reunião era reunir fundos para mandar para a casa da mãe o
corpo de um amigo atropelado por um caminhão. O encontrou teve um tom solene
que ganhou o respeito até mesmo da polícia da cidade. Os motoqueiros haviam
sido recebidos com certa hospitalidade, mas essa seria a última vez em que isso
aconteceria. Em 24 horas a gangue estaria no meio de uma denúncia de estupro
que provocaria uma verdadeira paranóia. Em seis meses, todas as pequenas
cidades norte-americanas estariam armadas até os dentes esperando a invasão dos
motoqueiros.
A situação que chocou o país foi o estupro de duas garotas,
de 14 e 15 anos, uma delas grávida. De acordo com os jornais, elas foram
arrancadas dos braços de seus namorados e levadas para as dunas, onde seriam
violentadas diversas vezes. O senador Fred Farr exigiu uma investigação e o
procurador-geral Thomas C. Lynch produziu um relatório a partir de um
questionário enviado a mais de 100 delegacias. A procura por esse relatório foi
tão grande que tiveram que imprimir uma segunda tiragem. O jornal New York Times produziu um extenso e
tempestuoso comentário sobre o relatório. A Time trouxe na capa: “Os mais
selvagens”. A Newsweek contra-atacou com a capa “Os selvagens”.
A maioria da imprensa simplesmente pulou as primeiras partes
do relatório, em que se diziam que os motoqueiros acusados do estupro foram
soltos por falta de provas e se concentraram nos aspectos mais
sensacionalistas. Quase todos se limitaram a repassar as informações fornecidas
pelas fontes oficiais e ninguém se preocupou em ouvir a versão dos motoqueiros.
A revista Time chegou a inventar um caso para dramatizar a notícia.
A missão de entender o outro lado da história coube ao
jornalista Hunter Thompson, que ficaria famoso ao criar o gonzo jornalismo.
Hell´s angels não é uma reportagem gonzo, mas é um belo ensaio para o que viria
a ser o gonzo, inclusive com um dos elementos importantes dessa variação
jornalística: para cobrir o assunto, Thompson passou um ano convivendo com os
motoqueiros e chegou até a comprar uma moto (como resultado acumulou uma grande
quantidade de multas e foi expulso de sua casa).
A crítica à maneira como a imprensa cobriu o caso é um dos
melhores momentos do livro e serviu de base para a prática posterior de
Thompson, na qual ele colocou a ideia de objetividade jornalística de cabeça
para baixo.
Já no primeiro capítulo, o autor pergunta-se o que as
meninas faziam numa praia deserta lotada de motoqueiros e descobre que as
garotas haviam passado a tarde no bar, conversando e bebendo com os motoqueiros
e depois ido para a praia com eles. “Droga, aquelas garotas não foram para lá
cantar uma música”, disse um dos Hells. “Elas estavam afim de agito e queriam
uma sacanagenzinha, mas o problema foi que era muitos caras. No começo estava
legal para elas. Depois foram chegando cada vez mais caras, se empilhando sobre
as dunas”. Nesse ponto, as garotas devem ter se arrependido da aventura, mas
era tarde demais.
A versão de que garotas inocentes haviam sido arrancadas dos
braços de seus namorados e violentadas por bárbaros selvagens logo desmoronou.
Ao mostrar o outro lado da história, Thompson não pretendeu
pintar os motoqueiros como santos. Ao contrário: os Hells Angels são vistos
como foras da lei violentos, ressentidos com a sociedade: “Em um mundo cada vez
mais adaptado aos especialistas, técnicos e máquinas fantásticas e complicadas,
os Hell´s Angels são perdedores óbvios e isso os chateia”.
Um dos princípios básicos da gangue, inscrito no estatuto do
clube, é a crença na retaliação total: “Quando pedem para você não voltar mais
a um bar, você não apenas bate no dono – você volta com o seu exército e
destrói o lugar, quebra a casa inteira e tudo que ela representa. Sem acordo.
Se um homem se meter com você, quebre a cara dele. Se uma mulher não quiser
nada com você, estupre-a”. O próprio Thompson sentiu esse princípio na prática
ao levar uma surra de um grupo de motoqueiros.
Rejeitados pela sociedade e sem ter nada a mais além do
companheirismo, os Hell´s Angels se agarram a isso: “A maioria dos outros são
fora da lei em meio período, ao passo que os Angels cumprem o papel sete dias
por semana: usam o emblema em casa, na rua, e às vezes até no trabalho. Eles
vão de moto comprar um litro de leite no mercadinho do bairro. Um Angel sem o
seu emblema se sente nu e vulnerável, como um cavaleiro sem armadura”.
Esse tudo ou nada se refletia até mesmo no uniforme usado
por eles, pensado para criar o máximo de perigo numa atividade que, por si só,
já é perigosa (dirigir motos grandes). Segundo Thompson, os Angels arriscavam a
sorte até o limite: não usavam capacete, jaquetas ou calças de couro (que
protegem no caso de um tombo). Eles chegavam a usar jaquetas sem manga, para
aumentar o perigo: “Os Angels não querem que ninguém pense que eles estão
diminuindo os riscos”.
A chegada do bando de motoqueiros coloca em pânico os postos
de gasolina e, na maioria das vezes, é mais barato fazer vista grossa e
deixá-los roubar um litro de óleo do que se arriscar a ver o local destruído.
Mas o grupo também sentia um prazer perverso em ser
amigável. O dono de um posto de gasolina entrevistado por Thompson lembra de
uma vez em que um grupo pediu para usar o local para consertar umas motos.
Amedrontado, ele disse que ficassem à vontade e saiu do lugar o mais rápido que
podia. Depois de uma hora, finalmente criou coragem para voltar e descobrir se
o local ainda estava de pé. Ficou estarrecido ao descobrir que o local estava
impecável, mais limpo que antes. Os motoqueiros haviam chegado ao ponto de
varrer o chão e limpar as ferramentas.
Esses dois lados dos Hell´s Angels só poderiam ser
percebidos por alguém que convivesse com eles. A total honestidade de Hunter
Thompson, ao revelar seu método de investigação, e ao mostrar até mesmo suas
limitações e dificuldades (inclusive os vexames) abriram caminho para o gonzo
jornalismo e para uma crítica devastadora do fazer jornalístico. Um conselho: se
você gosta de reportagens e não tem preconceitos, leia Hell´s Angels e depois
Medo e delírio em Las Vegas. Na sequência.
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