Antes de qualquer coisa, A memória Vegetal, de Umberto Eco,
é uma declaração de amor aos livros. O amor pelo objeto feito de papel percorre
todas as quase 300 páginas do volume em textos que vão de definições a listas
de livros raros, passando por contos fantásticos.
Eco começa a obra definindo o título: no começo, existia uma
memória orgânica. Essa memória era composta pelos velhos, que tinham o
conhecimento da tribo e repassavam para as novas gerações: “Talvez, antes, eles
não tivessem utilidade e fossem descartados, quando já não serviam para encontrar
comida. Mas com a linguagem, os velhos se tornaram a memória da espécie:
sentavam-se na caverna, ao redor do fogo e contavam o que havia acontecido antes de os jovens nascerem. Antes de começar
a cultivar essa memória social, o homem nascia sem experiência, não tinha tempo
de fazê-lo e morria. Depois, um jovem de vinte anos era como se tivesse vivido
cinco mil”.
Com a invenção da escrita, surgiu uma memória mineral. O
conhecimento era registrado em tabuinhas de argila ou esculpido na pedra. Era
uma memória que incluía também a questão arquitetônica, já que grande parte do
conhecimento era registrado em monumentos.
Com o tempo, surgiu uma memória vegetal, com o papiro e o
papel. Entre outras revoluções, o livro criou uma memória individual, que
é uma versão pessoal das coisas – e a
leitura se tornou um diálogo com alguém que não está diante de nós e que,
muitas vezes, está morto. O livro aumentou a memória do homem em séculos,
milênios. Segundo Eco, o analfabeto vive apenas uma vida, ao passo que o leitor
vive diversas vidas.
Um dos maiores méritos dos livros foi nos ensinar a duvidar
dos próprios livros, pois eles contradizem-se entre si e aprendemos que são
apenas versões de fatos, e não uma verdade universal. A interpretação ingênua
(está publicado, é verdade) é típica de quem não está acostumado a ler.
Aprender a identificar as boas obras é um mérito dessa
leitura crítica. Se antigamente o problema era encontrar livros, hoje é
selecionar os bons entre os milhares que são lançados anualmente. Nessa monstruosidade
de informação, o leitor muitas vezes se sente perdido. Para Eco, o processo de
escolha é como aquele do namoro. Devemos nos perguntar se o livro que estamos
prestes a tomar nas mãos é daqueles que jogaríamos fora depois de lidos. Jogar
fora um livro depois de lê-lo é como não desejar rever a pessoa com a qual passamos
a noite.
Assim, para um verdadeiro leitor, a relação com o livro deve
ser sempre de amor. Cada nova leitura deve ser como cada nova vez em que o
apaixonado reencontra a amada.
A memória do livro é a memória da humanidade e até mesmo
livros maus, como Os protocolos dos Sábios de Sião, devem ser preservados, como
forma de lembrar de um passado ignóbil. Lembrar que um dia um livro foi escrito
para promover o racismo contra os judeus é evitar que o nazismo aconteça
novamente.
Segundo Eco, devemos salvar não só as baleias, as focas ou
os ursos. Devemos salvar também os livros: “Temam aquele que destrói, censura,
proíbe os livros: ele quer destruir ou censurar nossa memória (...) Começa-se
sempre pelo livro, depois instalam-se as câmaras de gás”.
Como se vê, A memória vegetal é uma carta de amor de um
apaixonado. Como tal, há coisas que só interessam a ele e ao objeto de sua
paixão, como listas de livros. Mas há outros que interessam a todos, pela
universalidade de sentimentos.
Um dos capítulos mais interessantes é “Varia et curiosa”
sobre livros curiosos. Eco cita, por exemplo, análises da loucura de Rousseau
ou de Maomé, livros sobre transplantes de testículos de macacos para homens,
sobre como a masturbação pode provocar cegueira, surdez e demência. Nesse mesmo
capítulo são lembradas as obras que se tornariam sucesso de público e de
crítica, mas que haviam sido recusados por editores ou detonados por alguns
críticos. Moby Dick, por exemplo, foi recusado por um editor com a desculpa de
que não funcionaria no mercado juvenil
por ser longo e antiquado. A revolução dos bichos, de George Orwell foi
recusado nos EUA com a desculpa de que livros com animais não vendiam. Sobre
O diário de Anne Frank, um analista
escreveu: “Essa jovem não parece ter uma percepção especial, ou seja, o
sentimento de como se pode levar esse livro acima de um nível de simples
curiosidade”. Sobre Lolita, escreveram que o editor, ao invés de publicar o
livro, deveria levar o autor a um psicanalista. O livro A máquina do tempo,
clássico da ficção-científica de H. G. Wellsm, foi considerado “pouco
interessante para o leitor comum e não suficientemente aprofundado para o
leitor científico”. A boa terra, de Pearl Buck foi recusado porque,
supostamente, o público norte-americano não estava interessado em nada
referente à China. Um analista considerou que John Le Carré e seu livro O
espião que veio do frio não tinham futuro.
Um crítico escreveu que, felizmente, o livro O morro dos
ventos uivantes, de Emily Bronte, nunca seria popular. Outro escreveu que Walt
Whitman tinha tanta relação com a arte quanto um porco com a matemática.
O livro ainda contém deliciosos contos fantásticos, no
estilo Jorge Luís Borges, como um sobre um mundo em que uma peste dominasse
todos os livros de trapo (que são normalmente mais duradouros), o que coloca de
cabeça para baixo o mercado livros raros.
Em suma: A memória vegetal é leitura apaixonante para os que
são apaixonados por esses objetos de papel. Ou para os que querem se apaixonar.