Quando eu tinha uns 12 anos ainda se usava encerar
a casa e depois espalhar um monte de jornais pelo chão. Eu nunca entendi direito porque era
necessário fazer isso, mas o fato é que se fazia... e eu era encarregado de
encerar, lustrar e espalhar os jornais. Numa dessas ocasiões vi algo que me
interessou num dos jornais espalhados pelo chão e já meio sujos de cera
vermelha. Era uma artigo sobre histórias em quadrinhos, mais especificamente
sobre O Fantasma. Fiquei lá acocorado, lendo e relendo a matéria. Não tinha a
noção de que os gibis, tão desprezados, pudessem ser assunto de um artigo em
jornal, quanto mais de um livro. Para mim foi algo revelador. Tempos depois eu
assumi aquela mesma coluna no jornal.
A descoberta de que se podia escrever de forma
séria sobre HQ foi fundamental para que eu procurasse livros sobre o assunto. A
relação abaixo é um relato de uma busca que se iniciou naquele dia, acocorado
sobre o chão encerado de vermelho e apresenta não todos os livros sobre o
assunto, ou os mais importantes, mas os que mais me marcaram.
A primeira obra que li sobre o assunto foi O que é
história em quadrinhos, de Sônia Luyten, da coleção Primeiros Passos
(Brasiliense), emprestado da Biblioteca Pública. Para um livro sobre quadrinhos, era muito mal
ilustrado, mas mesmo assim foi através dele que conheci alguns clássicos das
HQs, como Litle Nemo, Tarzan e Pogo.
Além disso, o texto fluido da Sônia
ajudava muito. É o primeiro livro que indico para quem quer está começando a pesquisar
sobre o tema.
Já na faculdade, descobri, também na Biblioteca,
Shazan! (Perspectiva), uma coletânea organizada por Álvaro de Moya. Esse livro
reúne artigos na maior parte do grupo que organizou a Primeira Exposição
Internacional de Histórias em Quadrinhos (em 1951), além de Jô Soares e Naumim
Aizen, filho de Adolfo Aizen, dono da editora Ebal, a maior da época.
É um volume pesado, de mais 300 páginas, mas com
linguagem gostosa e repleto de ilustrações. Os temas abordados vão da pedagogia
à política. Destaque para o artigo “Era uma vez um menino amarelo”, de Álvaro
de Moya, que serve de introdução ao volume, e “Os dilemas do Fantasma e do
Capitão América”, de Jô Soares, em que ele analisa a situação do Fantasma numa
época em que a África lutava contra o colonialismo e do Capitão América numa
época em que os EUA perdiam a guerra do Vietnã. Um texto curto e divertido, mas
que faz profunda análise sociológica dos super-heróis.
Enfim, Shazan! É livro para ler diversas vezes, a
cada vez com um enfoque diferente.
Um dia, quando visita Belém, um amigo me emprestou
As incríveis aventuras de Kavalier e Clay (Record), de Michael Chabon.
Chabon pesquisou a história da origem dos
quadrinhos para fazer não um livro documental, mas um romance, e acabou construindo
um amplo relato dos heróis que levantaram a indústria dos comics, muitas vezes
sem ter qualquer retorno, mesmo financeiro, por isso.
Kavalier e Clay são dois jovens judeus fanáticos
por ficção científica que se juntam para criar um personagem para aproveitar a
onda de sucesso do Super-homem. Criam então o Escapista, um herói capaz de
escapar de qualquer situação, da mesma forma que Kavalier havia escapado da Europa
sob dominação nazista.
O que é fascinante em Chabon é como ele monta sua
trama, mostrando como os acontecimentos particulares e sociais interferem na
produção e, portanto, fazem com que o Escapista seja uma obra autoral, mesmo
estando dentro de uma indústria.
É natural, por exemplo, que os vilões das primeiras
histórias sejam nazistas. Quando Kavalier conhece uma garota e se apaixona, o
romance é introduzido na história. Quando os dois primos vão assistir ao filme
Cidadão Kane, a HQ ganha ares de experimentação e proximidade da linguagem do
cinema.
Kavalier e Clay são a personificação de figuras
reais, que fizeram a história em quadrinhos: Jack Kirby, o criador do capitão
América, Jerry Siegel e Joe Shuster, criadores do Superman, e Will Eisner,
criador do Spirit. Chabon uniu suas histórias em uma só trama.
Além disso, o romance tem uma estrutura espiralada
que obriga o leitor a ficar atento. A história começa lá no futuro e volta para
o passado remoto, depois vai retornando ao futuro, para depois retroceder de
novo.
Ao contrário do que muitos esperariam de um romance
baseado em quadrinhos, As Incríveis aventuras de Kavalier e Clay é um livro
denso e profundo, que prima pela contextualização histórica e análise
psicológica de seus personagens, mostrando toda a complexidade por trás dos
comics de super-heróis. Sua qualidade é atestada pelo prêmio Pulitzer de 2001
na categoria de melhor romance.
Para entender melhor o livro de Chabon, vale ter na
estante Homens do Amanhã (Conrad), de Gerard Jones. Jones é roteirista de
quadrinhos, tendo escrito, entre outros personagens, a Liga da Justiça, mas nos
últimos anos tem se dedicado a pesquisar a origem dos quadrinhos de
super-heróis.
Homens do Amanhã é focado em Jerry Siegel e Joe
Shuster, os criadores do Super-homem, mas dá uma ampla panorâmica do surgimento
desse tipo de diversão e de seus criadores. Jones mistura história, biografia
de autores e análise de histórias. Ou seja, é um livro completo para quem quer
entender esses heróis que usam a cueca sobre a roupa (inclusive isso é
explicado no livro: os super eram baseados nos homens musculosos que se
apresentavam em circos e que usavam short e malha).
O subtítulo da obra deixa claro o objeto de estudo:
“geeks, gangsteres e o nascimento dos gibis”. Os primeiros autores de
super-heróis eram rapazes despreparados para o mundo, fãs de ficção-científica,
facilmente manipulados e explorados pelas empresas para as quais trabalhavam.
Eram também judeus, já que os norte-americanos achavam indigno se envolver com
esse tipo de lixo cultural. Aparentemente, boa parte do preconceito contra os
gibis está relacionado ao preconceito racial: algo feito por judeus não deve
ser boa coisa.
No entanto, Jones mostra que os autores colocavam
suas angústias e sonhos nos quadrinhos, fazendo muitas vezes uma obra autoral.
O que Homens do amanhã é para os quadrinhos
norte-americanos, A Guerra dos gibis (Cia das Letras), de Gonçalo Júnior, é
para os quadrinhos nacionais.
Gonçalo acompanhou a trajetória de Adolfo Aizen,
dono da editora Ebal, do início modesto como jornalista até a criação da maior
editora da América Latina, culiminando na melancólica decadência da Ebal.
Como a Ebal focava quase toda a sua produção na
área de quadrinhos, A Guerra dos Gibis acaba traçando um vasto panorama da nona
arte no nosso país.
O
livro se destaca especialmente por mostrar que a perseguição aos quadrinhos
adquiriu no Brasil traços políticos por conta das brigas entre Roberto Marinho com
seus inimigos. Como Marinho fez sua fortuna publicando gibis, a maneira mais
fácil de atacá-lo era batendo nos quadrinhos.
A narrativa de Gonçalo Júnior é gostosa e o livro
se lê de uma topada. O autor revela uma afeição por Adolfo Aizen que acaba
sendo compartilhada pelo leitor.