terça-feira, março 03, 2020

Leia os primeiros capítulos de Cabanagem, o novo livro de Gian Danton


1
Os barcos deslizavam suavemente pelo igarapé, um após o outro. Da floresta vinham os mais variados sons: pássaros, sapos, grilos.
De tempos em tempos, uma árvore estalava com um barulho metálico. Era o curupira testando quais delas sobreviveriam a uma tempestade, diziam.
A lua aparecia lá no alto, grande, e iluminava os poucos trechos não dominados pela copa das árvores. Havia uma miríade de sons indistinguíveis. Galhos se avolumavam por cima da água. Raízes surgiam da terra e se afundavam no rio, como mãos tentando agarrar algo. De tempos em tempos, um cipó atravessava de um lado a outro entre uma copa de árvore e outra.
Um animal passou rápido atravessando por um deles. Talvez um macaco. Talvez.  
“Vai chover”, pensou Estrondo.
Então algo tocou em seu remo. Algo duro como uma tora de madeira. Mas ao invés de ficar para trás, de ser levado pela correnteza, subiu na direção das outras canoas. Todos pararam de remar e olharam assustados para a forma comprida e escura que se esgueirava pela água ao longo da formação de canoas. Pelo pouco que emergia era uma forma arredondada tão grande que nem mesmo três homens grandes conseguiriam abraçá-la.
A forma seguia sem fazer barulho e demorou mais de dez minutos para passar completamente pela canoa em que Estrondo estava. “Que tamanho tem isso?”, pensou, apavorado.
Quando ultrapassou todos os barcos, afundou.
Os homens estavam agora incapazes de remar. Alguns rezavam. Todos olhavam para a frente, tentando divisar alguma coisa na água. Na floresta, uma onça urrou. Um vagalume surgiu da mata e atravessou o igarapé de um lado a outro, piscando de tempos em tempos. Todo o resto era silêncio.  
Então, quando ninguém esperava, quando parecia que o que quer que fosse tinha ido embora, a água explodiu em um jato e algo emergiu.
Os barcos balançavam com a onda que a coisa provocou.
Os homens se encolheram, apavorados, menos Chico Patuá, que seguia na primeira canoa. Estrondo podia ver agora do que se tratava, mas custava acreditar em seus olhos: uma enorme cabeça de cobra, maior do que o tronco da maior árvore que ele já vira os observava, seus olhos brilhando sob a luz da luz. A forma se aproximou lentamente, sem se desviar, na direção da proa da canoa onde estava Chico, mas ele não se abalou. Continuou lá, impávido, olhando de frente para a coisa.
“Vai nos atacar”, pensou Estrondo. Vai destruir todas as canoas . Não sobrará nada de nós”.
Mas ela não atacava. Permanecia lá, parada, como que hipnotizada. Ou como se estivesse se comunicando com Chico.
Então afundou.

2

O dia raiou.
Depois da aparição da cobra, Chico ordenara que montassem acampamento. Dormiram nas redes penduradas nos galhos das árvores e nem mesmo um único carapanã os perturbou.
Mal acordaram, pegaram os barcos e voltaram para os igarapés. Chico queria chegar logo a uma fazenda onde teriam acolhida e poderiam conseguir comida e abrigo.
Agora, ao contrário da noite, as canoas avançavam rápidas, movidas por mãos experientes nos remos.
Foi pouco mais de uma hora que encontraram.
Toda uma área da margem estava destruída, como se algo grande tivesse se abatido sobre ela. Árvores quebradas, galhos caídos na água, sendo levados pela correnteza. E, em meio aos galhos, corpos.
Estrondo tentou em vão, contá-los. Eram muitos, talvez uns trinta. Mas pareciam muitos mais pelo fato de seus corpos estarem destroçados. Um braço passou por eles, depois uma cabeça e uma perna. O que sobrara das roupas denunciava: eram soldados.
Estavam ali, de tocaia, esperando por eles, suas armas apontadas para a água.
E tinham sido todos mortos. Mortos pela cobra grande.

3
Os passos ecoavam alto pelo palácio do governo. Era um homem enorme. Suas mãos e pernas estavam acorrentadas e dois soldados o escoltavam. Eram homens grandes, mas perto dele pareciam pequenos e raquíticos. Passaram por janelas quebradas, portas sem caixilhos, pisaram em pedras de mármore quebrado. O palácio do governo ainda guardava um pouco de sua imponência anterior depois de tudo pelo qual Belém passara, mas as marcas dos bombardeios ainda estavam bem visíveis.
Finalmente pararam, num salão grande.
Havia um homem ali, de terno, sentado em uma cadeira de espaldar alto. Tinha ar imponente e falavam o português do Rio de Janeiro e não a língua geral. O homem acorrentado os olhava em desafio, sem baixar a cabeça. Ao lado dos dois, um soldado já na casa dos quarenta anos, cabelos grisalhos, atarracado, mas atlético.  Ao contrário dos dois homens de terno e do prisioneiro, tinham a tez amorenada.  Usava uniforme militar, com insígnia de sargento.
- Podem ir. – ordena o homem de terno, com um gesto displicente.
Os dois soldados se entreolharam:
- Senhor, tem certeza? Digo, este homem já matou...
- Vão embora. O sargento Elmano ficará conosco.
Um dos soldados deu de ombros e girou nos calcanhares, saindo da sala. O outro o imitou.
O homem acorrentado deu um passo na direção das cadeiras. Elmano levou a mão à arma, tenso.
- Sabe quem eu sou? – perguntou ele.
O homem de terno pegou uma pasta e abriu, folheando os documentos ali dentro de maneira despreocupada.
- Aqui  diz, Dom Rodrigo, é isso?
- É como me chamam. – respondeu o outro. Sua voz era potente como um trovão.
- Segundo este documento, o senhor... hm... vejamos... matou pelo menos cinco mulheres.
- Eram minhas esposas. – respondeu o outro, como justificativa.
O outro franziu a testa:
- Aparentemente só uma era. Em todo caso, o senhor acabou sendo preso pelos assassinatos... Mas foi libertado quando os baderneiros cabanos invadiram a...
- Eles libertaram todos os detentos como forma de diminuir a resistência oficial. – explicou o sargento.
- Obrigado pela explicação, sargento. - respondeu o homem de terno, olhando com desagrado para Elmano. Mas, vejamos, depois os próprios cabanos o prenderam. Vejamos aqui, segundo relatos, o senhor levou uma moça portuguesa perdida para uma casa abandonada e a matou esganada depois de violentá-la. Não contente com esse episódio, entrou em uma outra casa, agora de uma família simples, e sodomizou uma mulher que ali encontrou, matando-a esganada. E já estava no terceiro crime quando foi finalmente pego pelos cabanos e novamente aprisionado. Isso está correto?
O homem fez um muxoxo:
- Talvez esteja faltando uma ou outra morte ai.
Deu um outro passo à frente.
Elmano voltou a levar a mão à arma. Não saberia dizer se conseguiria atirar antes que o homem gigantesco avançasse contra um dos seus superiores, mas ao menos tentaria.
- E certamente não constam as mortes que ainda virão. – sorriu ele.
- Oh, disso eu tenho certeza. – respondeu o homem de terno. O senhor sente prazer em matar, não é mesmo?
- Cada um tira prazer do que pode. – respondeu o gigante e inclinou-se na direção dos dois. Por que me trouxeram aqui?
- Vamos lhe fazer uma proposta. Mas antes...
O homem de terno fez um gesto para que Elmano se aproximasse.
- Por favor, retire os grilhões desse homem.
O sargento titubeou:
- Senhor, tem certeza?         
- É o que estou mandando. Não se pode negociar com um homem acorrentado.
O gigante sorriu, trincando os dentes:
- Sim, não se pode negociar dessa forma. Não seria correto.
Elmano se aproximou e usou a chave para retirar os grilhões. Depois voltou para sua posição ao lado do homem de terno.
- Então, qual a sua proposta?
- Queremos que nos livre de um inconveniente.
- E o que eu ganho com isso?
- Se fizer isso, terá sua liberdade e sua fazenda de volta. Além disso, posso garantir que esse pode ser um inconveniente que temos em comum.  
- E onde está esse inconveniente?
- Está pelos rios e igarapés, espalhando por lá a semente da sedição.
            - Hm. E terei liberdade para usar os meus métodos?
- Nós o chamamos por causa dos seus métodos. Colocaremos um grupo de soldados sob seu comando. O sargento Elmano irá com você. O senhor está livre por enquanto. Vá e se prepare o mais rápido possível para a viagem. Em breve outra pessoa lhe dará mais detalhes, alguns dos quais, tenho certeza, lhe serão de grande interesse.
Elmano já ia saindo com o gigante, quando o homem de terno o chamou:
- Sargento?
- Sim, senhor.
- Garanta que a missão seja um sucesso. Que os objetivos sejam alcançados. E quando isso acontecer,  mate-o!

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