quinta-feira, setembro 30, 2021

A morte do Capitão Marvel

 


Em 1982 a Marvel inaugurou sua linha de graphic novels com uma das histórias mais pungentes e emocionantes já produzidas nos comics americanos: a morte do Capitão Marvel.
A história tinha relação direta com a experiência de seu autor, Jim Starlim. O pai de Starlim tinha morrido de câncer e o quadrinista tentava lidar com a dor da situação. Produzir essa história foi uma forma de terapia para ele e talvez por isso, por refletir algo muito íntimo do autor, a história se tornou tão forte.
Na HQ o capitão Marvel, que enfrentou os maiores vilões do universo e venceu todos agora está morrendo de câncer. Sua fisiologia alienígena faz com que mesmo os maiores cientistas da terra não consigam achar uma cura.
O que Jim Starlin consegue fazer com esse plot é impressionante. A história tem de tudo: ação, conflitos psicológicos, drama e muita, muita emoção. É uma história grandiosa como merecia o personagem.
A narrativa começa com o personagem gravando uma autobiografia. O conflito já aparece ali, na primeira página quando o personagem diz que espera que ela seja útil para aqueles que deixará após a sua morte. Segue-se uma verdadeira sinopse de anos de história do personagem. Vale lembrar que, embora fosse o personagem que carregava no nome a marca da editora, o capitão Marvel era pouco explorado e nem de longe estava no primeiro escalão. Foi a entrada de Jim starlin no título que o alçou a um dos mais queridos dos leitores. A gravação é interrompida por Eros, que convoca o herói para uma missão: resgatar Thanos, o vilão transformado em pedra e levá-lo para Titã. Lá eles se deparam com vários seguidores de Thanos, que mesmo depois da sua morte continuam ali, esperando sua volta. É starlin retornando a um dos seus temas prediletos: o fanatismo, que leva pessoas a seguirem cegamente líderes. E, claro, a situação é desculpa para muita ação, no melhor estilo starlim, o cara que conseguia ser filosófico mesmo no meio de muita porrada.
Vários heróis comparecem para prestar sua homenagem ao Capitão Marvel. 

Depois disso, o herói revela que está com a doença. Começa uma peregrinação pela cura e depois, quando a morte se revela inevitável, o herói começa a receber a visita de amigos e até inimigos para prestar homenagens.
Até Thanos ressurge da morte numa batalha repleta de simbologias psicológicas.
A morte do Capitão Marvel é o ponto alto da trajetória de um personagem que trouxe profundas questões psicológicas e filosóficas para os quadrinhos de super-heróis. E é justo que essa última história fosse sobre o significado da morte.
Essa história foi publicada no terceiro número da coleção graphic novel, da abril e relançada recentemente pela Panini.

Blade Runner 2049: um filme perturbador

 

(contém spoiler - leia por sua conta e risco)

Blade Runner foi um clássico absoluto da década de 1980. Um fracasso comercial que se tornou um dos filmes mais cultuados de todos os tempos. Uma continuação parecia uma heresia para um filme cujo charme estava justamente no final em aberto (em especial na versão do diretor). Além disso, o trailer dava a entender que se tratava de um filme de ação bem no estilo dos filmes atuais. Ou seja: parecia uma heresia dupla.
No entanto, Blade Runner 2049 consegue ser fiel ao espírito do filme original e acrescentar algo à história sem desmanchar a mítica.
Na história, um caçador de androides, K (ou Joe) também ele um replicante, descobre que existe uma criança nascida de um ser artificial, A trana gira em torno da investigação a respeito dessa criança.
O roteiro aprofunda o dia-a-dia do protagonista, algo que era um ponto forte do livro de Philip K. Dick, mas ficou esquecido no filme da década de 1980.
K sofre com preconceito, é apaixonado por um programa de computador e em determinado momento começa a achar que ele é a criança especial nascida de uma androide. Como no primeiro filme, o replicante se revela mais humano que os humanos.
Colabora com isso a direção, que remete diretamente ao filme original e a trilha sonora inspirada e apreensiva (de Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch), que ajuda a nos manter no estado de incômodo que o filme se propõe.
Blade Runner 2049 é um filme perturbador, profundo, que discute questões da humanidade à nossa noção de realidade e nossas lembranças.
Entretanto, não existe uma única razão para que o filme seja em 3D. Nitidamente, nenhuma cena foi feita para aproveitar as possibilidades do recurso e colocaram em 3D apenas por razões comerciais.

A divulgação científica nos quadrinhos

 

Defendida em 1996, minha dissertação de mestrado A divulgação científica nos quadrinhos - análise do caso Watchmen foi um dos primeiros trabalhos acadêmicos a analisar a relação entre HQs e ciência no Brasil. Tornou-se referência obrigatória inclusive sobre uso de gibis em sala de aula. Para ler, clique aqui.

Conan – A libertação de Thugra Khotan



Algo que diferencia Conan da maioria das histórias de fantasia (e até mesmo de espada e magia) é que as histórias de Robert E. Howard tinham muito de terror, herdado de Lovecraft.  O terror criava o elemento  que equilibrava o erotismo latente das histórias, replicando os princípios de Eros e Thanatos. Soma-se a isso um protagonista que mais se aproximava de um anti-herói e temos a fórmula do que fez conan um personagem tão famoso na literatura e nos quadrinhos.

A libertação de Thugra Khotan, com roteiro de Roy Thomas e desenhos de John Buscema e Alfredo Alcala (e publicado originalmente em Savage Sword of Conan 2) apresenta todos esses elementos.

Na história, um ladrão invade um antigo templo para roubar tesouros e, no processo, liberta um feiticeiro que estava preso ali há séculos. A splash page inicial, com o ladrão aproximando-se do templo, é um dos melhores exemplos de como a dupla Buscema – Alcala era inspirada. A arte destaca o quanto o local é soturno, repleto de sombras  que parecem espreitar o personagem. O texto diz: “Lá está Shevatas, o ladrão... o único resquício de vida entre os colossais monumentos de desolação e decadência”.

A princesa atormentada por pesadelos. 


A história pula para o pequeno reino de Khoraja, onde a bela princesa Yasmela é atormentada em sonhos pelo espectro de Natohk: “Em breve, como uma avalhanche, eu passarei sobre as territórios dos meus antigos inimigos! Os soberanos daquelas terras fornecerão os crânios que serão usados como cálices... mas você... você será a minha Rainha, princesa... você aprenderá as formas de prazer há muito esquecidas...”.  as imagens mostram a princesa atormentada a ponto de parecer uma mendiga, os cabelos desgrenhados, a expressão assustada.

Aconselhada por uma criada, a rainha procura a estátua do deus Mitra, que dá um conselho estranho para a princesa: sair na rua, de madrugada, e convidar o primeiro homem que encontrar para se tornar o general de seu exército.

Claro que o homem que ela encontra é... Conan, que até então vinha trabalhando como mercenário para o exército do país. 

A dupla Buscema-Alcala consegue ilustrar até aquilo que seria difícil de descrever.


É conan que irá salvar o reino e a princesa, libertando o mundo da maldição do feiticeiro. A história, tirada diretamente de um conto de Howard, é um exemplo de como a equipe da revista estava em sintonia, conseguindo resultados igualmente assustadores e empolgantes – não por acaso essa história se tornou um clássico. Entre as sequências memoráveis, há uma em que a montaria do feiticeiro muda de forma. Buscema e Alcala consegue transformar em imagens algo que não poderia ser descrito.

No Brasil essa história foi publicada pela primeira vez em A espada selvagem de Conan 3.

Gian Danton é entrevistado em livro sobre processos criativos nos quadrinhos

 


Trabalhar com cultura nunca foi tarefa fácil. Além de toda a dificuldade financeira e do descrédito e desconfiança que a profissão possui no país, o artista começa enfrentando as próprias dúvidas. O que pretendo contar é realmente interessante? Diz algo? Alguém teria algum interesse sincero no que quero dizer? E como dizer? Por onde começar? Como prosseguir? Este é o caminho certo?


Seguem aí as dificuldades de realização. Dificilmente uma obra de arte se faz sozinha. A cultura pede, exige trabalho coletivo. Um cineasta precisa de uma gama de outros artistas para levar um filme à tela. Um roteirista de quadrinhos precisa de um desenhista para passar sua história ao papel. E os dois precisam de um editor para tornar a HQ em algo real.

Filme pronto, gibi impresso. E agora? Como chego ao público? Como converso com ele? Onde distribuo minha obra?

Procurando respostas, Marcelo Engster realizou entre 2016 e 2020 diversas entrevistas com abnegados e corajosos artistas falando sobre seus processos criativos para o finado blog Quadrinhólatra.  Agora essas conversas estão reunidas no livro Processos Criativos nos Quadrinhos.

Quadrinistas entrevistados:
Alice Pereira    
Ana Recalde    
Augusto Paim    
Bier    
Cris Camargo    
Daniel Esteves    
Edgar Franco    
Edgar Vasques    
Fábio Zimbres    
Gian Danton    
Gustavo Machado    
Iaranaika    
Iotti    
Jun Sugiyama    
Louzada    
Mabel Lopes    
Marcatti        
Marcel Ibaldo    
Marcelo D’salete    
Orlandeli    
Ota Assunção    
Raphael Fernandes    
Roberta Cirne    
Rogê Antônio    
Zé Wellington    

O livro está disponível na Amazon e é gratuito com o Kindle Unlimited. Para ler, cliquei aqui

quarta-feira, setembro 29, 2021

O mistério dos incas

 


Uma grande quantidade de pessoas conhece tudo sobre a história da Europa ou dos EUA, mas desconhece completamente a histórias dos povos que nos deram origem. Para os que se ressentem dessa falha, uma boa pedida é o livro O Império Inca, lançado recentemente pela Time Life Livros e pela Abril Coleções.

A civilização Inca sempre intrigou os estudiosos. Afinal, o povo andino conseguiu criar um dos impérios mais importantes e extensos do mundo sem conhecer a roda. Os incas formaram uma das sociedades mais complexas e bem estruturadas de todos os tempos, com uma hierarquia rígida e um sistema social em que nenhum integrante do império jamais passava fome, mesmo nos períodos de seca, terremotos ou outras catástrofes naturais.

O exército era muito bem estruturado, com guerreiros que pareciam não sentir medo.

E no entanto, todo esse império foi vencido por menos de duzentos homens comandados por um analfabeto.

Para compreender a derrocada dos Incas é importante conhecer as circunstâncias políticas da época em que Francisco Pizarro (um filho ilegítimo sem nenhum estudo que fora para a América em busca de fortuna) chegou aos Andes.

No período em que os primeiros europeus começaram a saquear a América, os Incas eram governados por um grande guerreiro chamado Huayna Capac. Pouco tempo depois ele morreu, provavelmente vítima da varíola, uma doença trazida pelos espanhóis.

Junto com o Sapa Inca (que era como se chamavam os governantes desse povo) morreu seu sucessor e dois irmãos começaram a lutar pelo trono. Huascar (gentil colibri) foi eleito pelos nobres em Cuzco, mas o exército, acampado em Quito, preferia Atahualpa.

Embora Anahualpa reconhecesse o irmão como o novo Sapa Inca, Huascar desencadeou a crise exigindo a presença de seu irmão em Quito. Desencadeou-se uma sangrenta guerra, que Huascar foi derrotado e aprisionado.

Quando Pizarro chegou no Peru, o grande Império estava, assim, debilitado por guerras e pela varíola.

O espanhol acampou com seus poucos homens na praça principal de Cuzco. Os guerreiros que os esperavam eram tantos que uma testemunha da época escreveu que os espanhóis ficaram apavorados.

Pizarro convidou o Sapa Inca a visitá-lo. O Imperador, achando que apenas um punhado de homens não poderia inspirar um perigo real, deixou seu exército fora da cidade e compareceu apenas com sua guarda pessoal, que na verdade tinha cerca de cinco mil homens. Mas, embora fossem muitos, eles vinham sem armas, mais numa atitude cerimonial do que guerreira.

Encontraram a praça vazia, a não ser por um padre com um missal em uma mão e a cruz em outra. É que o Rei da Espanha havia dado ordens de só derramar sangue dos povos conquistados depois de ter dado a eles a chance de se converter ao cristianismo. Claro que tudo era apenas uma pantomima para justificar o massacre que se seguiria.

Os incas adoravam o sol, Inchi, e, evidentemente, a lenga-lenga do padre não logrou convencê-lo. "Tu dizes que seu deus foi levado à morte, porém o meu está sempre vivo", disse Atahualpa, mostrando o sol que se punha. Disse isso e jogou ao chão a cruz que havia recebido.

O padre dominicano se voltou para Pizarro e deu a deixa para o ataque: "Acabem com eles! Eu concedo absolvição a todos!". O que se seguiu não estava nem nos mais negros sonhos do Sapa Inca. Canhões começaram a retumbar, matando dezenas de indígenas. Os soldados atacaram a multidão apavorada, aos gritos de "Santiago!", o santo protetor dos combates. Os incas nem mesmo reagiram, tamanha foi a surpresa. O máximo que fizeram foi tentar proteger o imperador, levantando a liteira que o carregava. Como resultado tiveram suas mãos cortadas. Atahualpa só foi poupado porque Pizarro havia prometido a pena de morte para quem o molestasse. Com o Imperador aprisionado, os espanhóis iniciaram o saque do Império.

O objetivo dos espanhóis não era colonizar as novas terras, mas tirar delas todas as suas riquezas e destruir todos os traços do poderoso e organizado povo que vivia naquele lugar. Não só todo o ouro inca foi mandando para a Espanha, mas também todos os monumentos foram destruídos e a até as múmias dos antigos Sapa Incas foram encontradas e queimadas.

A população local reduziu de sete milhões para 500 mil, tantos foram os que pereceram, vítimas de doenças ou dos trabalhos forçados.

Como resultado, pouca coisa sobrou sobre esse povo que está na base de nossa origem. Hoje um brasileiro comum sabe mais sobre a Grécia antiga que sobre o Império Inca.

O livro da editora Abril é uma boa oportunidade de compreender um pouco melhor essa fantástica civilização em uma edição ricamente ilustrada, com figuras em marca d'água impressas em dourado e texto envolvente. São 168 páginas de uma agradável história da América do sul.

Se considerarmos a qualidade gráfica (encadernação em capa dura, impressão em policromia e papel cochê), o preço é uma barbada: apenas 38 reais. Só para comparar, a maioria dos livros da série O Senhor dos Anéis, embora sejam em preto e branco e papel normal, custam muito mais do que isso.

O volume faz parte de uma coleção que inclui também os títulos Egito - a Terra dos Faraós; O Esplendor dos Maias; Roma - Ecos da Glória Iimperial; Os Vikings - Intrépidos Navegantes do Norte; Astecas - Reinado de Sangue e Esplendor e Os Reinos Soterrados da China.

A incrível arte dinâmica de Leinil Francis Yu

 


Leinil Francis Yu é um artista filipino de quadrinhos cujo estilo ele mesmo define como dinâmico pseudo-realista. Ele começou sua carreira nos comics trabalhando para a Wildstorm e depois fez trabalhos para a Marvel e DC.  










 

Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime

 


Em 2012 um assassinato chocou o país e chamou atenção de toda a imprensa. Marcos Matsunaga, um dos donos da empresa alimentícia Yoki desapareceu enquanto a família negociava a venda da empresa Yoki para uma multinacional. No começo suspeitou-se de sequestro, mas as investigações mudaram de rumo quando o corpo do empresário foi encontrado, desmembrado, numa mata. A partir daí, a esposa se tornou a principal suspeita.

Presa, Elize Matsunaga confessou o crime. Segundo Elize, Marcos havia sido morto durante uma discussão do casal após ela descobrir que ele tinha uma amante.  

Seu julgamento gerou um enorme interesse na mídia e no público e detalhes sobre a vida do casal foram aparecendo. Descobriu-se, por exemplo, que Elize era uma prostituta de luxo e que Marcos era frequentador assíduo de sites de prostituição, a ponto de ter um perfil fake no qual comentava os encontros e dava nota para as meninas. 

Em 2019 a diretora Eliza Capai conseguiu entrevistar Elize durante uma saída da prisão e assim surgiu o documentário Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime.

O documentário tem sido criticado por pesar a mão a favor de Elize, destacando o machismo e o sensacionalismo por trás do caso (de fato, casos semelhantes em que o assassino é um homem não ganharam tanta repercussão). Esse aspecto é percebido principalmente no terceiro capítulo, que nitidamente tem o objetivo de humanizar Elize.

O documentário é válido principalmente por revelar os meandros da investigação criminal e as estratégias da promotoria e da defesa (à certa altura o advogado de defesa chega a comemorar o sucesso de determinadas estratégias).

Independente de qualquer outra questão, o doc deixa mais perguntas do que respostas. Elize seria uma psicopata? Marcos também seria um psicopata? Os dois pareciam ter uma relação de cumplicidade inusitada. Tinham um verdadeiro arsenal em casa, com os mais variados tipos de armas. A diversão predileta do casal era caçar – e uma grande quantidade de cabeças de animais empalhadas são uma constante no documetário.

E tinham uma cobra. Uma cena, gravada por Elize, tendo Marcos ao lado, parece reveladora. Um ratinho branco é colocado no viveiro da cobra e o casal comenta enquanto a cobra se prepara para atacar. Ambos parecem extremamente frios e se divertem com a situação de desespero do rato. À certa altura, Elize se revolta com o fato do roedor ter se mijado de medo. De todo o documentário, talvez seja esse o trecho que melhor revele quem eram Marcos e Elize Matsunaga.

Em tempo: o documentário está disponível na Netflix.

Decadence, a HQ manifesto da dupla Gian-Bené

 


Decadence foi produzida para ser uma espécie de manifesto do novo tipo de horror que a dupla Gian Danton - Joe Bennett estava introduzindo no Brasil. Depois de uma rejeição inicial de alguns editores, o sucesso das primeiras histórias da dupla fez com que surgissem pedidos de novas histórias - e aí surgiu a ideia de fazer uma HQ que confrontasse o horror antigo, datado e o novo (não é à toa que o título da história é Decadence). Os dois quebraram a cabeça durante dias para tentar transformar isso numa trama, mas no final, a ideia acabou vindo num sonho de Gian Danton, que acabou sonhando até mesmo com a diagramação da história, logo transformada num rafe, seguido à risca por Joe Bennett. Decadence foi publicada na revisa Mephisto, terror negro. 

O Imortal Hulk

 


Nos últimos anos nós temos visto muitas situações nos quadrinhos em que um desenhista era a estrela. Em outras, o roteirista era a estrela. Mas uma boa história em quadrinhos é uma sintonia perfeita entre texto e imagem, entre desenhista e roteirista. Algo que foi alcançado muito poucas vezes: Stan Lee e Jack Kirby, Gerry Conway e Garcia-Lopez. E é exatamente essa sintonia que faz de Imortal Hulk (cujo primeiro álbum foi recentemente lançado pela Panini) uma obra tão importante.
Essa nova fase do Hulk é escrita pelo britânico Al Ewing e ilustrada pelo paraense Joe Bennett (ou Bené Nascimento, para os íntimos) e é impressionante a sintonia entre os dois: o roteiro funciona porque o desenho funciona e o desenho funciona porque o roteiro funciona.
Na trama, Bruce Banner descobre que não pode morrer, pois o corpo do Hulk sempre irá se restaurar.
A trama começa com um assalto a um posto de gasolina, uma sequência cinematográfica com planos que muitas vezes contam a história sem necessitar de palavras – e Ewing foi inteligente o suficiente para perceber que essas sequências muitas vezes não precisavam de uma única palavra.
Toda essa sequência tem apenas um texto-legenda, emblemático, essencial para entender toda a história e que será repetido e resignificado ao longo da trama: “Há sempre duas pessoas no espelho. Há aquela que você vê. E tem aquela outra. A que você não quer ver”. O trecho é de uma genialidade semiótica, pois pode se referir ao garoto que está assaltando o posto de gasolina, a Bruce Banner, ao Sasquatch e até mesmo à repórter que investiga a história.

Al Ewing usa muito bem todo o background psicológico já estabelecido por outros roteiristas, em especial Bill Mantlo – segundo o qual o Hulk já estava ali, no menino Bruce Banner, em resposta aos abusos do pai e apenas aflorou no contato com a radiação gama. Isso dá ao personagem uma profundidade insuspeita nesses tempos de ação desenfreada.
E, enquanto Ewing cuida da alma do monstro, Joe Bennett cuida dos punhos. Suas sequências de ação são magistrais. Além disso, o seu Hulk tem tudo para se tornar o Hulk definitivo: embora nitidamente inspirado na fase de Jack Kirby no personagem, ele aqui se torna muito mais brutal, uma brutalidade que explode nas splash pages.

Há alguns senões. A parte três, por exemplo, é ilustrada por vários desenhistas de acordo com o relato de cada uma das testemunhas. Mas Joe Bennett tem o traço eclético o suficiente para ter feito todas as sequências sem perder a unidade, como acabou acontecendo. Outro senão é a cor de Paul Mounts, escura demais, o que muitas veze esconde detalhes do desenho.
A série foi indicada ao prêmio Einser e no Brasil já esgotou a primeira tiragem. E não é sem razão: Imortal Hulk é um dos trabalhos mais interessantes já surgidos nos últimos anos nos quadrinhos.  

terça-feira, setembro 28, 2021

Uma breve história do quadrinho paraense

 Em 2015, foi lançado o documentário “VHQ – Uma breve história do quadrinho paraense”, um registro realizado por Vince Souza pelo Café, Cinema e Quadrinhos. Quatro anos mais tarde o documentário ganhou um complemento em outra mídia. Já atualizado, o livro mostra um recorte da trajetória dos quadrinhos paraenses até os dias de atuais.

“Mesmo depois do lançamento do documentário eu continuei a pesquisa”, comenta Vince Souza. 

O autor Vince Souza lança seu livro ao lado do roteirista Gian Danton.
 

A ideia do livro surgiu ainda em 2015, em um evento de quadrinhos. E foi sugerido por Gian Danton, um dos fundadores do coletivo de quadrinhos Ponto de Fuga do inicio dos anos 90. No final de fevereiro de 2019, o documentário VHQ completou 4 anos, então o animador Cássio Tavernad fez o convite para lançar o livro baseado na obra audiovisual. Leia mais

A guerra dos gibis

 

A campanha do Dr. Fredric Werthan contra os quadrinhos teve um grande impacto no Brasil por causa de uma questão política.
     Segundo Gonçalo Júnior, autor do livro A Guerra dos Gibis, embora existissem iniciativas isoladas desde a década de 30, quando os quadrinhos de aventura chegaram ao Brasil, a campanha contra os quadrinhos só tomou fôlego na década de 40, graças a uma briga entre Roberto Marinho, do Jornal O Globo, e Orlando Dantas, do Diário de Notícias. Dantas estava ganhando mercado ao promover concursos em que os leitores do jornal concorriam a prêmios em dinheiro. Preocupado com a concorrência, Marinho usou sua influência junto ao governo Vargas para fazer com que fossem proibidos os prêmios em dinheiro.
            Dantas, agora sem o principal atrativo de seu jornal, passou a atacar Marinho pelo que considerou o seu ponto fraco: o fato de seu concorrente ser um dos principais editores de histórias em quadrinhos do Brasil (sua publicação Gibi acabou virando sinônimo de quadrinhos). Dantas, ex-repórter de Assis Chateaubrind, sabia que a melhor forma de um jornal sair de uma situação financeira difícil era comprar briga com um concorrente de peso. O Diário de Notícias passou a acusar os gibis de provocarem preguiça mental, inculcarem valores estrangeiros nos jovens e incentivarem a violência. Na verdade, Dantas não tinha nada contra quadrinhos, e, aliás, tinha sido um dos pioneiros a publicar tiras de jornais no Brasil (o humorístico Popeye), mas ele logo descobriu que a melhor forma de chamar atenção para si e alfinetar o rival era fazer acusações aos gibis.
Passou a ser moda falar mal dos gibis. Até mesmo quem nunca tinha lido uma revista se apressava a dar sua opinião. A jornalista Ivone Jean, do Correio da Manhã, por exemplo, escreveu um artigo no qual pedia reconhecimento público por ter roubado um gibi do consultório de um pediatra, impedindo assim, que as crianças tivessem contato com a leitura. Além de se vangloriar do crime, a jornalista admitia que sua birra se devia ao fato dela não compreender o código quadrinístico: “Não sei ler histórias em quadrinhos! Aprendi a ler da esquerda para a direita e linha após linha. As legendas atrapalhadas que ilustram os desenhos são impressas em caracteres estranhos e dançam em todos os sentidos”.
            Mas a campanha contra os gibis teria seu momento mais grave a partir de 1953. Dessa vez, além de Dantas, Roberto Marinho teria contra si Samuel Wainer, do jornal Última Hora. Assim como acontecera com o Diário de Notícias uma década antes, o diário de Wainer estava tomando leitores de O Globo, graças a inovações editoriais. Marinho concentrou sua artilharia no concorrente e descobriu que Wainer não era brasileiro, pois chegara ao Brasil com dois anos de idade. Na época a legislação proibia estrangeiros de terem veículos de comunicação no Brasil.
            Wainer vingou-se empreendendo uma dura campanha contra as histórias em quadrinhos que durou anos. Para isso foi destacado o repórter Pedro Morel. Este percebeu que a estratégia de maior impacto era acusar os gibis de serem responsáveis pela criminalidade infantil. Citando as pesquisas de Fredric Whertan, Morel defendeu que as histórias em quadrinhos ensinavam as crianças como cometerem crimes.
            Para provar o que dizia, Morel foi ao Reformatório de menores Saul de Gusmão atrás do maior criminoso juvenil da época, um tal de Lilico, apelidado de “Terror do subúrbio”. Para sua decepção, encontrou o rapaz jogando futebol, e não lendo gibis. Mas nem por isso achou que seria o futebol o responsável pelos crimes de Lilico. Os responsáveis deviam ser os gibis.
            Apesar da total falta de embasamento e de serem resultados de uma briga de mercado, as denúncias deram resultado. Nas portas das igrejas eram distribuindo panfletos orientando pais a não deixarem seus filhos lerem quadrinhos. Em alguns locais os professores tiravam cinco minutos diários de suas aulas para falarem dos riscos da leitura dos gibis.
            Um dos resultados dessa campanha se vê nos testes escolares. Desacostumados a ler, os estudantes são incapazes de interpretar os textos mais simples. Nos países em que a leitura dos gibis foi estimulada a realidade é outra.

Valerian, o filme

 

Gostei de Valerian. O filme tem inegáveis problemas de roteiro (como o envolvimento romântico forçado dos personagens, com Valerian pedindo Laureline em casamento logo nos primeiros minutos), mas nada que realmente comprometa a história ou a verossimilhança do roteiro. 
A série Valerian se destaca pelos protagonistas carismáticos, mas principalmente por ter sido uma das melhores histórias em quadrinhos que desenvolveram o "sense o wonder". 
O roteirista Christin sempre foi um mestre do olhar antropológico futurista: em mostrar raças, situações, culturas e costumes extraterrestres e isso está bem preservado no filme de Luc Bresson.
O mercado que só existe em outra dimensão, a estação espacial que é ponto de centenas de raças, o pequeno mascote capaz de reproduzir tudo o que come, os mais variados tipos de seres com seus costumes estranhos para nós, tudo isso está ali, assim como o humor característico dos quadrinhos. Valerian é uma ótima diversão.

Pérolas do vestibular

 


Volta às aulas é tempo de lembrar que nem sempre ensino é sinônimo de instrução. Prova disso são os recentes acontecimentos envolvendo analfabetos que conseguiram passar em vestibulares (incluindo um que ficou como nono colocado no processo seletivo da Estácio de Sá para o curso de Direito) demonstraram a importância da redação em qualquer processo seletivo.
Apesar do caráter subjetivo, é a redação que serve de crivo, selecionando os candidatos que realmente têm condições de fazer um curso superior. 
Eu fui corretor de redações durante anos numa faculdade particular. Durante esse tempo eu coletei diversos exemplos de pérolas.  Algumas delas são apenas engraçadas, mas outras se aproximam muito do analfabetismo e, se não fosse a obrigatoriedade da redação, seus autores poderiam ser selecionados. 

A grafia está exatamente como no original. 

Eis as pérolas: 

"Em que nível chegamos? Num oltidor da ipocrisía, sabia-se há pouco tempo que o homem era a única espécie racista, nos enganamos, pois existem animais que bem treinados chegam ao ponto cume do racismo"

"Desde a Grécia o esporte é arriscado; ao perderem os jogos os competidores eram jogados aos leões"

"A sua reação foi o que todos esperavam, calei a boca e sair. Mais com a ajuda o meu irmão, que, falou a ele para procurar os seus direitos como um cidadã. Eles foram a uma defensoria pública e fizeram uma dênuncia, onde ele é um cidadã como complidor os seus direitos"

"Senhor ministro, tendo em vista sua grande altitude em censurar programas de televisões, devendo ter tido pelo almenos o respeito por nos o povo"

"As cenas exaustas como sexo, beijo na boca, violência e brigas é de fato vulnerável, mais a proibição de se apresentar na televisão no meu vê não deveria ser proibido, pois é com elas no dias futuros, serão nosso governantes pela formação e conhecimento"

"Isto já vem dos nossos avós pré-história onde vencer significava ter comida para sobreviver e perder significava ser almoço de algum animal. Ele tinha que correr mais rápido para não ser refeição. A natureza se encarregava de fazer a seleção natural dos mais velozes"

"O esporte está sendo uma maneira de socorro para muitos atletas"

"A vontade de vencer é bruscada de maneira ofegante pelos atletas"

"A TV vem explicitando cenas de alta periculosidade em termos de censura"

"Venho através desta manifestar a minha idignação pelo que vem acontecendo nessas redes de informação através da livre censura da televisa"

"Os programa de TV viraram abusos da moral infantil"

"Cabe ao senhor tomar uma altitude censata"

"As emissoras de televisão exageram com todas as liberdades de censura que posso perceber"

"O lugar de melhor poste faz a pessoa se achar diferente"

"E quando vinhesse aquelas perguntas de atormenta as nossas cabeças"

"E uma negação tem gente opondo violência, na cabeça infantil apesa dessa norma errada jamais poderia ser um alvo para os menores de 14 anos e por isso se demonstra um mundo cruel de revoltas"

"família sem laços a muitas por ai exemplo a minha família o meu pai quando chjega da rua em cãs chá chega esculhambando com todo mundo e fagabundo que ninguém quer saber de trabalhar que todo mundo que fica deitado dormindo que so ele trabalha que todo mundo fai ficar burro e que todo mundo fai buchar carroça isto não se fala nem para um animau mais um fou mostrar para ele que não é que ele fala e por isso que eu fou estudar e trabalhar para ele parar de ficar falando que todo mundo e isto e aquilo"

"Concordo plenamente a favor da campanha tomada contra a censura aos programas de televisão brasileira"

"O esporte é uma arte aspirada por muitos em todo o mundo, e tem como finalidade maior a vitória, mas sem deixar de lado a disputa"

"Venho por meio desta argumentar a minha indignidade sobre a censura na mídia"

"As competições tornaram-se casos de disputa para saber quem é o melhor"

"Às vezes essa disputa se transforma em uma guerra, onde as conseqüências são catastróficas, que muitas vezes leva a morte de alguém, quando não morre fica grave, aí e que vamos Pará para pensar nas conseqüências" 

A era de ouro da DC

Em 2010 a DC Comics completou 75 anos. Para comemorar, a Panini lançou no Brasil uma coleção em quatro volumes, cada um reunindo histórias de um período: Era de Ouro, Era de Prata, Era de Bronze, Era Moderna.

O volume Era de Ouro reunia as primeiras histórias de alguns dos personagens mais populares da editora, a começar, claro, pelo Super-homem, o personagem que não só criou a DC como fundou todo um novo gênero nos quadrinhos.
A história que abre o volume é a primeira do Homem de aço, cuja capa se tornou célebre com o herói batendo um carro contra uma pedra enquanto malfeitores fogem apavorados. Essa história havia sido recusada por vários editores – e dá para perceber facilmente as razões. A trama é mal-engendrada, com pulos narrativos estranhos.
Depois de uma pequena introdução, na qual Jerry Siegel, o roteirista, estabelece a verossimilhança da história comparando o personagem às formigas que carregam várias vezes seu peso ou o gafanhoto capaz de dar saltos enormes, a história começa no meio. O Super-homem salta no ar com uma moça nos braços. Ela é a verdadeira culpada de um crime e o herói precisa convencer o governador a perdoar uma moça que será executada em seu lugar. Depois a história pula para outra trama e para outra, sem muita conexão.
A sequência do carro, apesar de famosa, é bizarra. Bandidos sequestram Lois Lane. O Super-homem pega o carro em que estão e o sacode, fazendo os bandidos caírem – o problema é que pela lógica, também a jornalista cairia do carro. Siegel, um garoto na época, estava nos seus primeiros passos como roteiristas e o que acaba se destacando é a arte de Joe Shuster. Seu desenho elegante certamente foi fundamental para o sucesso do personagem.
Flash ganha poderes após fumar no laboratório de química. 


O volume traz também a origem do Flash, escrita por Gardner Fox e desenhada por Harry Lampert. Fox também escreve a história da Sociedade da Justiça. Seu texto estava muito longe do que viria a ser na era de prata, quando ele ajudaria a revolucionar os heróis DC. O roteirista parecia estar convencido de que escrevia exclusivamente para crianças – o que fica óbvio na história da Sociedade da Justiça, mas também pode ser percebida na origem do Flash.
Lendo essas histórias há coisas que parecem estranhas. Flash, por exemplo, se transforma no herói graças a um acidente provocado pelo fato dele estar fumando no laboratório de química! O interesse romântico do personagem, Joan, parece uma patricinha convencida, que se interessa pelo herói apenas quando ele usa suas habilidades recém-adquiridas para ganhar o campeonato de futebol americano. Além disso, o uniforme do Flash surge do nada, no meio da HQ.
As duas melhores HQs do volume são as dedicadas ao Capitão Marvel e à Mulher Maravilha.
O desenho de CC Beck chamava atenção pela elegância. 


O desenho de CC Beck no Capitão Marvel é simplesmente lindo. Com poucos traços, mas eficiente e com sequências que remetem diretamente à art decó, como no quadro em que aparece o metrô. O uniforme do personagem é igualmente bonito. Além disso, o roteiro de Bill Parker já nos apresenta um personagem acabado, e não em construção. Sua origem é bem estabelecida, assim como o clima das histórias, voltado para a magia – em oposição ao Super-homem, que era calcado na pseudo-ciência.
As histórias da Mulher Maravilha tinham uma qualidade muito acima do restante.


A melhor história do volume é a origem da Mulher Maravilha, escrita por Charles Moulton com desenhos de H. G. Peter.
Peter já era um desenhista de experiência quando embarcou no mundo dos quadrinhos e isso é facilmente perceptível pela forma competente como ele cria visualmente a Ilha Paraíso. Seu desenho tem um apelo vintage que o faz interessante até os dias atuais.
Mas o destaque vai mesmo para o texto de Moulton (pseudônimo do psicólogo William Marston). Marston tem pleno domínio da narrativa e cria sua própria versão da mitologia grega, atualizando-a e adequando à personagem.  Até mesmo quando os quadrinhos são substituídos por texto corrido acompanhado de ilustrações, a história não perde o encanto, tal a qualidade do texto.