sábado, fevereiro 15, 2025
O que é uma barriga em roteiro?
Em roteiro, barriga significa encheção de linguiça, enrolação. É um termo usado quando o roteirista coloca situações que não contribuem em nada para a trama. Não é à toa que o termo técnico, em inglês, é filler, que significa enrolar.
Eu também chamo de labirinto narrativo, porque faz com que a trama fique rodando em círculos, sem seguir em frente.
Vamos imaginar a seguinte situação: uma moça briga com o namorado e resolve ir para a casa da mãe. Mas ela volta com o namorado. E volta para a casa dele. Mas depois briga de novo e volta para a casa da mãe. Nessa segunda ida à casa da mãe ela descobre uma caixa com segredos importantes sobre o passado da família.
A volta com o namorado foi uma tremenda barriga que só fez esticar a narrativa sem acrescentar nada à trama. O tempo que a moça ficou na casa da mãe a primeira vez e a volta à casa do namorado só fizeram a trama ficar andando em círculos, sem avançar.
Em quadrinhos de super-heróis esse é um erro comum. Provavelmente para colocar mais ação na revista, muitos roteiristas colocam os heróis enfrentando várias vezes o mesmo vilão. Se esses vários enfrentamentos não acrescentam nada à trama, são apenas barrigas.
Outro exemplo: o vilão que é derrotado e, de repente, usa poderes maiores do que havia exibido até então e consegue vencer o herói. Ou o contrário: o herói enfrenta várias vezes o vilão e no final o derrota demonstrando um poder que não havia usado antes. O leitor fica se perguntando: por que ele não usou esse poder antes? Resposta: porque o roteirista precisava encher linguiça! :)
Conan – O vale da morte eterna
O volume 12 da série Conan em cores, lançada pela Abril reúne três histórias de J.M.DeMatteis desenhadas por John Buscema. Essas três histórias, lidas em sequência, ajudam a perceber como o escritor foi, aos poucos, imprimindo um estilo próprio ao título do cimério.
Na primeira história, que dá nome ao volume,
é nítido que ele está imitando Roy Thomas, inclusive trazendo de volta a
prostituta Jenna, da primeira fase de Thomas no título. A história inicia com
Conan percorrendo um vale quando ouve gritos. É um homem tentando matar um ser
andrajoso. “Por favor”, diz a figura antes do golpe final. “Uma única
palavra... mas imbuída de tanto terror que consegue tocar o coração empedernido
do cimério... e fazê-lo agir!”.
Conan salva um ser andrajoso...
Após salvar a figura misteriosa, ele descobre
que se trata de Jenna, mas agora ela está corcunda e sua pele está repleta de
pústulas. Pior: o cimério também foi infectado. A solução para os dois é seguir
para um vale governando por uma figura misteriosa, Myya L´rrasleff. Após um
processo de transformação, as pessoas passam por uma mudança espiritual, o que
faz com que elas subam a montanha em estado de felicidade absoluta.
A doença que acomete Conan e Jenna poderia
ser lepra, mas como essa é uma história de Conan, é um processo provocado por
um ser alienígena que, depois de ser expulso de seu planeta, decidira
transformar os humanos em réplicas dos seus conterrâneos, mas não contava com
os músculos do cimério.
... para depois descobrir que se trata de Jenna.
É uma típica história de Roy Thomas,
inclusive em termos de narrativa.
A segunda história, “A voz de alguém há muito
tempo perdido” é muito mais interessante, até por acrescentar algo a mais à
mitologia de Conan: um avô, Drogin.
O avô de Conan aparece na história.
Aqui temos uma narrativa em primeira pessoa
que já se aproxima muito mais do que conhecemos do estilo de JM DeMatteis:
“Drogin cujo braço era mais forte que aço hyrkaniano. Ele era um ancião quando
nasci. Os homens da vila o respeitavam e temiam mais do que qualquer outro.
Isso me fazia orgulhoso... pois ele era meu avô”. A recordação termina com o
avô de Conan indo para um local deserto para morrer sozinho, mas na história
Conan o encontra remoçado, um homem ainda maior e mais forte que Conan. O
mistério? Uma aliança com um ser ancestral, que, através dessa aliança, vivia
junto as aventuras do avô de Conan.
Há, nessa história, uma sequência de
alucinação de Conan no qual DeMatteis revive algumas das melhores histórias da
fase de Roy Thomas, incluindo o deus-elefante Yag-Kosha, o macaco Thak e até
Belit.
Um delírio rememora algumas das mais importantes histórias do cimério.
Embora siga o padrão das histórias do cimério
de misturar aventura, ação e mistério, há um toque aqui de algo novo e
inesperado, incluindo aí o ótimo texto final: “À medida em que a delicadeza dá
lugar à paixão... Jenna ouve... ou pensa ouvir... Conan sussurrar algo em seu
ouvido... algo breve sobre vida e morte...e a voz de alguém que há muito se
foi”.
A terceira história traz um típico personagem de J.M.DeMatteis...
Na terceira história temos finalmente um
típico roteiro JM DeMatteis, quando um espachim chamado Vonndhar a serviço de
um deus da morte aparece para levar Jenna. Em sua primeira aparição, ele
aparece sobre o galho de uma árvore, “dedos dançam sobre a flauta de osso
polido”.
Tanto seu aspecto quanto seus modos
proporcionam um contraste interessante com a figura do cimério. Ele veste uma
capa vermelha, botas altas também em vermelho e uma roupa amarela. suas frases
são elaboradas, como “Uma idéia esplêndida, bárbaro”; “Já faz muito tempo que
não ouço o clangor do aço”.
É também a história mais humana das três,
mostrando que até mesmo uma figura fantasmagórica a serviço de um deus da morte
pode amar.
sexta-feira, fevereiro 14, 2025
O Namor de John Byrne
Algumas situações são totalmente gratuitas. |
Como resultado, Namor se torna um herói de fato, ajuda o cientista a comprar um conglomerado de empresas e as coloca a serviço da preservação da natureza.
Namor vira um super-herói de fato. |
Roteiro de quadrinhos: o texto como caracterização dos personagens
Os diálogos ajudam a caracterizar os personagens. |
Antes de escrever seja um texto sobre ou uma fala de um personagem, é importante entender quem é ele. O diálogo do personagem é reflexo de sua personalidade, de sua história de vida, do ambiente em que foi criado. Dois exemplos extremos: o Hulk e o Thor têm falas completamente diferentes. A maneira como cada um se expressa nos diz muito sobre eles.
Antes de escrever para o personagem, é importante pensar quem é ele, quais são suas motivações, qual a sua história de vida, quantos anos ele tem, qual a sua profissão, se ele tem algum medo, se tem uma história de vida que poderia ser lembrada nesse momento, se ele tem família, o que ele está sentindo ou pensando.
Quanto mais detalhes tiver sobre o personagem, melhor conseguirá caracterizá-lo através da fala ou do texto. Mesmo para personagens secundários o ideal é ter uma noção de sua personalidade e sua história de vida. Algo inclusive que se pode fazer é colocar ganchos sobre esse histórico nos diálogos.
A série Exploradores do Desconhecido, com roteiro meu e arte de Jean Okada mostra exploradores espaciais, cada um com um poder ou habilidade especial, que acabam indo parar em outra realidade através de um salto quântico. Os personagens não são apresentados como detentores dessas habilidades. Elas são indicadas aos leitores através de pequenos ganchos nos diálogos, pequenos detalhes que irão contribuir para que o leitor, posteriormente aceite os poderes. Ou seja: os diálogos também pode ser elementos importantes no pacto de verossimilhança que se estabelece com o leitor.
Exploradores do Desconhecido: Os diálogos dão pistas sobre as características dos personagens.
Sobre o diálogo como característica da personalidade do personagem, observe esse diálogo do Rei na série a queda de Matt Murdock:
Faça o iate voltar a nova York. Localize todos que tocaram neste envelope... Ou que falaram com quem tocou... e aguarde a ordem para matar.
O texto é todo no imperativo, representando alguém que está acostumado a dar ordens e que não admite contestação. A fala também revela alguém objetivo, prático.
Os diálogos demonstram a nobreza do Surfista Prateado. |
Em contraste, observe esse diálogo do Surfista Prateado, na graphic novel Parábola, com roteiro de Stan Lee e arte de Moebius:
Se desistirmos da luta só porque as chances de vitória são pequenas, onde fica o nosso valor? Que nossa motivação seja sempre o que nos leva em frente, e não as chances de sucesso.
Essa fala nos revela um personagem filosófico, poético, mais preocupado com ideais do que com a praticidade da vida.
Veja agora a fala do Monstro do Pântano na fase escrita por Alan Moore:
Não, Arcane. Esta é a nossa primeira batalha... você e eu... nunca nos encontramos... e também nossa última. Você reclama... o planeta para si... Arcane. Mas sem ter... um décimo do poder da terra.
A primeira coisa que chama atenção são as reticências. Elas dão a ideia de alguém que fala de maneira arrastada, como de fato falaria uma planta tentando se comunicar como humano. Apesar disso, o diálogo demonstra grande auto-confiança. Vale lembrar que nessa fase do personagem ele está descobrindo poderes que não sabia ter, como a capacidade de regenerar o próprio corpo e esse empoderamento do personagem se reflete em sua fala.
Monstro do Pântano: uma planta tentando falar como um humano. |
Aliás, uma forma ideal de escrever diálogos de um personagem é se imaginar sendo ele. Alan Moore conta que andava pela casa como um corcunda quando estava escrevendo as falas de Etrigan no Monstro do Pântano. O resultado foi isso:
A graciosa dama e seu monstro coberto de raízes chegaram para salvar os inocentes de tal crime e do medonho banquete macacal poupar os petizes. Que alma nobre a deles! Que arrojo sublime! E mirem as crianças, com tanto alarido, acordam seus guardiões, raça tão dedicada! Embora ele traia a esposa, e ela o marido, ambos só querem tirar a criança da enrascada.
O diálogo é escrito de forma a mostrar que se trata de alguém diverso dos seres humanos comuns (Etrigan faz parte do grupo de demônio rimadores) e extremamente cínico.
Os vilões, aliás, funcionam melhor quando são bem caracterizados. Ao criar o principal vilão do Capitão Gralha, o Doutor Destruição, imaginei-o como alguém muito letrado, mas enlouquecido. Mas o Doutor não o tipo vilão maluco, desvairado. Ao contrário, é alguém que a todo momento procura mostrar seu refinamento (ele é filho de uma família aristocrática). Devido a um trauma de infância, ele é fascinado pela letra D. Tudo isso se reflete nas falas do personagem:
Débil demagogo, seus desejos defenestraram! Destruirei Curitiba e depois o mundo. E você descansará desolado a dez palmos sem poder desbaratar meus planos descontrolados!
Caligari: a história de uma adaptação
O sucesso do filme Caligari fez com que ele fosse adaptado mais de uma vez para outras mídias. A obra já foi citada diversas vezes em gibis e ganhou uma adaptação em quadrinhos em 1992, pela editora Monster Comics, numa minissérie em três partes assinada por Ian Carney e Michael Hoffman. Em 1999, os roteiristas Randy e Jean-Marc Lofficer e o ilustrador Ted Mckeever juntaram elementos de Batman, Super-homem, Metrópolis e Caligari no especial Nosferatu. Quando Tim Burton lançou o segundo filme do Batman, em 1992, o visual do Pinguim era inspirado em Caligari, visual que depois foi aproveitado no desenhado animado dirigido por Bruce Tim.
Curiosamente, embora os quadrinhos de terror sempre tenham feito muito sucesso no Brasil, em nosso país nunca o filme de Wiene havia sido adaptado para a nona arte.
A idéia para isso surgiu em 1998. Nessa época estava sendo lançada a graphic novel Manticore, em duas partes, com roteiro meu, pela editora Monalisa. O sucesso de crítica (a revista ganhou o HQ Mix, o Angelo Agostini de melhor roteirista e o prêmio da Associação Brasileira de Arte Fantástica) fez crer que a revista teria uma continuidade. A idéia, então, era transformar a Manticore numa revista mix de terror e ficção-científica nos moldes da extinta Kripta. Uma das ideias era fazer histórias sobre mitos urbanos, como O bebê diabo e sobre clássicos de terror, como Caligari.
Uma série de decisões editoriais equivocadas fez com que a revista, apesar do sucesso, não tivesse continuidade, mas algumas dessas histórias seriam de fato produzidas. As duas citadas acima foram lançadas em 2008 pela editora HQM no especial Quadrinhofilia, que reúne trabalhos de José Aguiar.
O processo de adaptação começou com uma análise do filme. Eu e o desenhista assistimos ao Gabinete do Dr. Caligari juntos, fazendo anotações. A ideia era captar as principais características da história, afinal, o segredo de uma adaptação não é ser totalmente fiel à trama, mas ser fiel ao espírito da ideia original. Assim, a deformação dos cenários e a maquiagem exagerada foram os elementos mais facilmente percebidos. Como havia uma limitação de seis páginas, a história precisava ser condensada, mas ainda assim fazer sentido e ser fiel.
Uma das questões discutidas foi com relação ao uso de diálogos e legendas. Como o filme é mudo, o caminho mais fácil seria fazer uma HQ muda. Mas cinema e quadrinhos são mídias completamente diferentes e fazer isso seria um erro. Mesmo em seus primórdios, as HQs não eram mudas, pois não havia limitação técnica ao uso da linguagem falada. Assim, decidiu-se que se teria diálogos e legendas (representando a fala de Alan, em off).
O passo seguinte, após a estruturação de um argumento-sinopse, foi a elaboração de um roteiro. O roteiro das duas primeiras páginas é apresentado abaixo, para dar uma ideia dessa fase da adaptação:
Página 1Q1 – Plano detalhe de folhas secas caídas no chão.
Velho (off): Os espíritos... eles estão em todos os lugares...
Q2 – Plano médio. Francis e o velho estão sentados, lado a lado, conversando.
Velho: Nos amedrontam... eles me afastaram de minha mulher e meus filhos.
Q3 – Os dois estão conversando, mas agora Francis olha para o lado, para Jane, que aparece vestida de branca, quase como um espírito.
Velho: Foi assim que aconteceu, meu rapaz...
Q4 – Jane passa pelos dois, sem notá-los. Quadro mudo.
Q5 – Quadro horizontal. Créditos. Francis e o velho em primeiro plano, vistos de costas, enquanto Jane afasta-se, em último plano.
Velho: Conhece a jovem?
Francis: Aquela é minha noiva, Jane.
Q6 – Alan e o velho conversando, em plano médio.
Francis: A pobre jamais se recuperou do que nos aconteceu...
Q7 – Agora um plano fechado dos dois, conversando. Francis, agora em segundo plano, sendo observado, com olhar perdido, pelo velho.
Francis: Também tenho uma história...
Q8 – plano fechado de Francis, em gesto amplo, expressionista.
Francis: ... ainda mais extraordinária do que a sua...
Q9 – Close de Francis. Destaque para seu olhar melancólico, ampliado pela “maquiagem pesada”.
Francis: Tudo começou com a chegada da feira de variedades à nossa cidade.
Página 2 Nesta página teremos um quadro grande, o 4, ocupando boa parte da página, num tom expressionista.
Q1 – Quadro geral da feira, com Caligari aproximando-se do leitor.
Texto: E com a feira
Q2 – A continuação da mesma cena, mas agora Caligari já está mais próximo de nós.
Texto: veio
Q3 – Agora o quadro é tomado por Caligari.
Texto: O doutor Caligari.
Q4 – Chegamos ao quadro de impacto da página. Caligari espera o escrivão. Como combinamos, a mesa do escrivão é extraordinariamente alta e distorcida, simbolizando, como no filme, o monstro da burocracia. Caligari é visto como pequenino diante desse monstro.
Texto: Antes de instalar sua feira, o doutor foi pedir permissão ao escrivão. Ele foi duramente humilhado. Teve que esperar por horas para ser atendido.
O exemplo serve para demonstrar como foi o processo de adaptação nessa fase de estruturação do roteiro. Bom lembrar que tal roteiro foi construído a partir das conversas entre desenhista e escritor, e reflete essa conversa. Posto isso, passemos a analisar o texto.
A fala de Francis, quebrada, nos três primeiros quadros da página 2, revela influência do quadrinho britânico do final dos anos 1980, em especial de autores como Neil Gaiman (Orquídea Negra) e Alan Moore (Monstro do Pântano).
A narrativa, em off, é intencionalmente coerente e racional, como forma de evitar que o leitor perceba que se trata de um conto de um louco, o que já é evidenciado pelo desenho, sendo uma pista de como a trama irá terminar. Assim, o roteiro procurou preservar o final surpresa.
Se o texto parece uma narrativa fantástica contada por um homem racional, o desenho distorce essa narrativa, demonstrando o real estado das coisas.
A segunda página, já descrita no roteiro acima, apresenta o quadro de impacto de Caligari pequeno, numa perspectiva distorcida, diante da enormidade da burocracia.
A página 3 é dominada pela figura esguia de Cesare. A magreza e altura atípica do personagem orientam a leitura, que ganha foco no rosto fantasmagórico do sonâmbulo. Os personagens normais são eclipsados por essa figura distorcida.
A página 4 é centralizada pela figura de Jane, como se os fatos refletissem dela. Ao fitar a página, o leitor tem seu olhar magnetizado pelo olhar assustado de Jane e sua figura, em sépia azul. A tendência do olhar é correr na direção do último quadro, em que Cesare agarra Jane, sequestrando-a.
Esse caos da diagramação reflete o caos interno dos personagens, suas angústias e inquietações, no que poderia ser considerado um equivalente quadrinístico da técnica expressionista.
Avançando, na página 6 temos a prisão de Caligari. Ele se contorce e grita, lutando com os médicos. Vista em oposição à página seguinte, vemos que ela se reflete no quadro 4 da página 7. Ali é o narrador que é preso e repete a mesma posição de Caligari, como se fossem duas faces da mesma moeda: num lado a racionalidade, no outro a loucura. Como o lado racional é na verdade uma narrativa distorcida, uma falsa racionalidade, esse contraste cria uma inquietação no leitor que nos lembra o conceito de obra aberta, de Umberto Eco, que pretende renovar nossa percepção e nosso modo de compreender as coisas.
Na página 7 há um diálogo, não existente no filme, que pretende destacar exatamente a crítica ideológica do filme, pensada originalmente pelos roteiristas (Janowitz e Carl Mayer). Alan pula sobre Caligari e grita: “Tolos! Não percebem? Ele planeja nosso destino!”.
A fala é uma referência direta à interpretação de Kracauer, segundo o qual Caligari antecipa Hitler e o nazismo. Assim, se por um lado respeitamos a moldura introduzida por Fritz Lang, por outro destacamos a crítica social e política imaginada pelos roteiristas.
Roteiro de quadrinhos: colocando texto nos balões
O primeiro deles é que quadrinho não é literatura. O texto quadrinístico só existe em íntima coesão com a imagem. O roteirista deve pensar visualmente, imaginar como seu texto vai interagir com os desenhos e que tipo de impressão essa junção vai causar.
O segundo aspecto é que o roteirista deve saber quem são os personagens. O ideal é que até mesmo os personagens secundários tenham uma história. Quem são eles? Quais são suas motivações, quais são os seus medos, quais são suas esperanças? Há alguma história de vida que podemos contar sobre esse personagem e que ajudem a mostrar ao leitor quem é essa pessoa?
Essas duas preocupações sempre dominaram minha produção de roteiros. Exemplo disso é a história O farol, publicada pela editora Nova Sampa e, posteriormente, na editora norte-americana Phantagraphics, com o nome de Beach Baby.
Na história um casal está na praia quando vê surgir um farol. Eles entram no local para investigar e acabam se perdendo um do outro. A sequência que apresento abaixo mostra o momento em que o rapaz se perde da namorada, e se vê em local totalmente escuro, sendo dominado pelo medo.
Eu e Joe Bennett trabalhávamos com o marvel way, um método que só funciona se o desenhista for um narrador nato, como é o caso do compadre. Nós discutíamos a história, ele ia para casa, fazia um rafe das páginas e me trazia. Era sempre um desafio escrever o texto, pois ele conseguia contar tudo só com imagens. Isso exigia o máximo do roteirista.
No caso dessa página, o que escrever? O desenho já explicava facilmente a situação: o rapaz estava perdido e entrando em desespero.
Não fazia sentido colocar o rapaz falando sozinho. Embora esse seja um recurso usando em algumas HQs, a verdade é que só malucos falam sozinhos.
Assim, preferi trabalhar os pensamentos do personagem, mas explicitados por um narrador em terceira pessoa, para conseguir o efeito desejado.
Reparem que o texto começa contando um detalhe sobre o personagem, uma pequena história da vida dele, mas segue num crescendo até a conclusão final. O texto do último parágrafo encaixa perfeitamente com a expressão do personagem, conseguindo um efeito tanto de impacto quanto de ironia.
Reproduzo abaixo o texto:
“Fábio”
“Fábio”
“Fábio”
Ele repete o nome para si milhares de vezes.
Uma vez ele conheceu um ocultista, um homem de óculos grosso e estante cheia de livros.
O homem disse que o nome de cada pessoa é um mantra para si mesmo.
Palavras sagradas que, repetidas várias vezes, trazem calma e paz de espírito.
Com Fábio isso não deu muito certo.
Jornada nas estrelas – problemas aos pingos
Um dos aspectos que fizeram a série clássica de Jornada nas estrelas se tornar tão famosa foi o fato de, apesar de episódios com forte discussão filósofica e até política, no geral, havia um tom leve e bem humorado.
Provavelmente o episódio que melhor resume esse espírito é Problemas aos pingos, da segunda temporada.
Na história, a entreprise recebe uma chamada de emergência de uma estação espacial apenas para descobrir que não havia nenhuma emergência: na verdade, os responsáveis pela estação só queriam alguém para cuidar da segurança do quadrotriticale, um grão híbrido de trigo e centeio. Kirk, indignado, coloca alguns homens para a segurança do grão e dá folga para o restante da tripulação.
Os problemas começam com a presença de klingons no local, o que leva a conflitos com os humanos.
Mas a verdadeira ameaça é totalmente inusitada: os pingos, animais fofos e peludos, que ronronam na presença de humanos. Uhura ganha um desses carismáticos animais e o leva para a Enterprise. Acontece que os pingos se reproduzem numa velocidade espantosa. Metade do metabolismo deles é dedicado à reprodução. Essa característica existe porque no seu ambiente natural há muitos predadores, o que equilibra a população. Mas num ambiente sem predadores, como a Enteprise, os pingos se reproduzem a ponto de tomar conta de toda a nave e comer toda a comida disponível.
David Gerrold, o roteirista, conta que a ideia surgiu quando soube dos coelhos na Austrália. Quando foram levados para aquele país, os coelhos não encontraram nenhum predador natural e se reproduziram de forma assustadora, destruindo plantações. Mas ele não queria usar coelhos. Precisava ser um animal que parecesse alienígena, mas, ao mesmo tempo, fossem fáceis de produzir em grande escala. Ao ver um chaveiro com uma bola peluda, Gerrold percebeu que aquela era a melhor solução. Deu tão certo que esse se tornou um dos episódios mais célebres de todas as temporadas de Jornada nas Estrelas. Os bichinhos peludos apareceram inclusive em episódios de outras encarnações e até nos filmes.
Um dos destaques do roteiro era o tom levemente humorístico. Algumas cenas são célebres, como quando Kirk abre uma comporta na qual estava a semente e pingos começam a cair sobre ele. Destaque para a atuação maravilhosa de William Shatner, que tinha um pendão natural para dar um tom bem humorado para seu personagem.
Algo curioso é que, embora adorem humanos e ronronem na presença deles, os pingos odeiam os klingons e dão gritos assustados na presença destes, o que ajuda a desmascarar uma armação para envenar os grãos.
A teoria do Jornalismo
![]() |
O filme A primeira página, de Billy Wilder, trata do sensacionalismo no jornalismo |
Dentre as várias teorias que tentaram responder a essa pergunta, três se destacam: a teoria do espelho, a teoria do gatekeeper e a teoria organizacional.
A teoria do espelho diz que as notícias são como são porque a realidade assim o determina.
Esse ponto de vista surge influenciado pela invenção da fotografia. O jornalista deveria ser como um fotógrafo: simplesmente relatar a realidade da maneira como ela se apresenta, sem qualquer intervenção subjetiva. Essa visão ganhou seu bordão com uma declaração de um correspondente da Associated Press, em 1856: "O meu trabalho é comunicar os fatos: as minhas instruções não permitem qualquer tipo de comentário sobre os fatos, sejam eles quais forem".
Era a idéia-chave da separação entre as opiniões e os fatos. Ou, como diziam os ingleses, "a opinião é livre, mas os fatos são sagrados".
A teoria do espelho surge em um momento de vitória do paradigma positivista, que pretendia expurgar a subjetividade da ciência, criando metodologias totalmente racionais. Essa preocupação positivista se refletiu no jornalismo na forma de contraposição ao jornalismo literário, em que o jornalista era o porta-voz de uma ideologia. Também foi uma reação contra os excessos do chamado jornalismo sensacionalista.
Segundo José Marques de Melo, no final do século XIX o jornalismo norte-americano havia deixado de ser um serviço para tornar-se um negócio altamente lucrativo. A diretriz passou a ser o sensacionalismo e os princípios éticos mais elementares foram esquecidos. Na ânsia de conseguir a atenção dos leitores, muitos jornais passaram até mesmo a criar notícias. A existência do fato, fator essencial do jornalismo, passou a ser irrelevante.
Na teoria do espelho, o bom jornalista é um observador desinteressado, que relata com honestidade e equilíbrio tudo que vê, cauteloso para não emitir opiniões pessoais.
A teoria do espelho é a bússola norteadora dos manuais de redação e das regras de conduta dos jornais. Parte-se do princípio de que seguir as regras do bom jornalismo (escrever a matéria de forma impessoal, ouvir os dois lados da questão) era garantia de se ter um retrato fiel da realidade.
De todas as teorias que se ocuparam da notícia, essa é talvez a mais criticada. Para começo, suas bases são frágeis. A analogia com a fotografia só demonstra a abertura para a subjetividade, pois mesmo a fotografia pode ser veículo de subjetividade. O semiólogo francês Roland Barthes já demonstrou que a fotografia não é só denotação, mas é também conotação. Processos conotativos, como a escolha das fotos (por que determinado jornal coloca a pior foto do candidato X, enquanto outro jornal publica a melhor foto desse mesmo candidato), a pose e os processos de fotomontagem demonstram que a fotografia não é um retrato fiel da realidade.
Ademais, teorias cognitivas demonstram que o ser humano não consegue captar a realidade em toda as suas facetas e a escolha dos fatos que serão memorizados obedece a padrões subjetivos.
Por outro lado, o filão de investigação que concebe as notícias como construção rejeita as notícias como espelho por diversas razões. Em primeiro lugar, argumenta que, num mundo em que tudo gira ao redor dos meios de comunicação de massa, é impossível separar a realidade da realidade que é mostrada pela mídia. A teoria do agenda setting, por exemplo, diz que as pessoas só discutem aquilo que está na mídia. Em segundo lugar, defende a posição de que a própria linguagem não pode funcionar como transmissora direta de significado inerente aos acontecimentos, porque a linguagem neutra é impossível. Embora o fato seja fator fundamental do jornalismo, sem o qual o mesmo não existe, há uma certa subjetividade e essa subjetividade se encontra na escolha dos fatos. Na escolha das notícias.
Duas outras teorias vão tratar desse processo de escolha de notícias.
A teoria do gatekeeper, originalmente surgida no campo da psicologia e adaptada à análise comunicacional por David Manning White no anos 50, dá ênfase à ação pessoal. White acompanhou durante uma semana o processo de escolha de notícias por parte de um jornalista de meia-idade de um jornal médio norte-americano. A cada escolha, o jornalista, denominado Mr. Gates, deveria anotar as razões pelas quais aceitava ou não uma notícia vinda de uma agência.
White concluiu que o processo de seleção é arbitrário e subjetivo. Assim, de acordo com a teoria resultante do estudo, o jornalista é um gatekeeper, um porteiro, que abre e fecha a porta para as notícias. Aquelas que parecem mais interessante para o jornalista são publicadas, as resultantes são esquecidas.
Generalizando, pode-se dizer que todo jornalista, a todo momento, é um gatekeeper, pois, além das escolhas das pautas que mais interessam, cabe também a escolha dos detalhes que serão publicados. Um profissional pode abrir o portão para determinada informação em uma notícia e fechar para outros. Além disso, há profissionais, como os editores, que têm como função abrir ou fechar o portão para os fatos que serão divulgados, configurando verdadeiros gatekeepers.
A teoria gatekeeper foi duramente criticada por apresentar uma explicação puramente psicológica para a questão das escolhas das notícias e esquecer aspectos sociais. O enfoque sobre a ação social seria dado pela teoria organizacional. Criada por Warren Breed, essa teoria insere o jornalista no seu contexto mais imediato: a organização para a qual trabalha.
Breed dá destaque para os constrangimentos organizacionais pelos quais passam os jornalistas e considera que estes obedecem muito mais as normas e a política editorial/política da empresa, do que seus impulsos pessoais na hora da escolha das notícias.
Como exemplo disso, em estudo realizado em Portugal por José Luís Garcia, 90,6% dos jornalistas daquele país revelaram já ter sofrido algum tipo de pressão no exercício de sua profissão. Essas pressões eram de origem externa e interna. Entre as pressões externas, a maioria provinha de grupos interesse político-partidário (85,8%), seguidos por grupos empresariais e governamentais. Essa pressão, entretanto, não é direta. Ao jornalista inexperiente não é informado o que ele deve ou não deve fazer. Ele o aprende aos poucos, através de um sucessão sutil de recompensas e punições. Assim, o jornalista aprende a antever aquilo que se espera dele, a fim de obter recompensas e evitar penalidades.
São raros os jornalistas que se colocam contra a linha política/editorial da empresa. A maioria se conforma com ela em decorrência de vários fatores. Entre eles: as punições e recompensas; o sentimento de estima para com os superiores e o medo de magoá-los; a vontade de crescer profissionalmente (jornalistas que se adequam à linha política/editorial da empresa têm mais chance de chegar a cargos de chefia); o prazer da atividade (os jornalistas, apesar de não perceberem altos salários, estão geralmente satisfeitos com sua atividade e sentem que estão contribuindo de alguma maneira para a melhoria da sociedade).
Um outro tipo de pressão é o tempo. Quanto menor for tempo de escolha do jornalista, quanto mais próximo ele estiver do deadline, maior será a influência da organização sobre ele. O fator tempo, portanto, transcende a ação pessoal do jornalista e pode ser inserido nos constrangimentos organizacionais que assimilam o jornalista à política organizacional.
As teorias organizacional e gatekeeper não pregam uma volta ao sensacionalismo anterior à teoria do espelho, mas demonstram que toda notícia é apenas uma versão dos fatos, e nunca a versão definitiva dos mesmos.
Dylan Dog – Mater Dolorosa
Mater dolorosa é uma graphic novel de Dylan Dog lançada em 2018 pela editora Mythos. Escrita por Roberto Recchioni e ilustrada por Gigi Cavenago, a HQ destrincha parte da história do personagem. Se a outra história escrita Roberto Recchioni, Mater Morbi, era focada em uma nova vilã-amante, em Mater Dolorosa o foco está no embate desta com a mãe de Dylan.
A trama parece se relacionar excessivamente com a anterior, Mater Morbi, e a introdução escrita por Júlio Schneider ajuda pouco nesse sentido, mas ainda assim é possível ler e enteder a trama, embora muitos pontos passem despercebidos dos leitores menos habituais (ou que leram há muito tempo as históris de Dylan, como foi o meu caso).
O desenho de Gigi Cavenago é o grande destaque do álbum. |
O texto é primoroso, mas o grande destaque é a arte de Gigi Cavenago. Só ela já vale a capa dura e o papel couchê. As belíssimas sequências do navio de Mater Morbi são impressionantes. Cavenago consegue unir realismo, expressionismo e surrealismo em um único quadro.