quarta-feira, agosto 31, 2022

O coração negro em Tomos fantásticos


 

Tomos fantásticos foi uma antologia de fantasia publicada pela editora 9Bravos no ano de 2014.

Como várias outras edições da 9Bravos essa chama atenção pela diagramação e pela belíssima capa, ilustrada por Davi Sales. O texto da contracapa resumia assim o conteúdo do livro: “Tomos fantásticos: fantasia medieval e heroica é uma coletânea de contos e histórias em quadrinhos temáticos. Esse volume traz histórias nas quais heróis enfrentam enormes desafios para alcançarem seus objetivos”.
Eu colaborei com o conto “O coração negro”. Na história, um corajoso cavaleiro precisa roubar uma joia, o coração negro, para salvar a vida de uma linda donzela. Mas nessa história, quase nada é o que parece.

A arte fantástica de Marc Simonetti

 


Marc Simonetti é um dos principais ilustradores da atualidade, em especial graças ao seu trabalho nas capas francesas e brasileiras da série Crônica de Gelo e Fogo. Simonetti ilustrou também livros de  H. P. Lovecraft. 











A fábula da galinha

 

O presidente chamou os deputados, senadores, ministros e os homens mais ricos do país e para mostrar-lhes algo e pediu que lhe trouxessem uma galinha.
Um soldado a segurou e o presidente tirou-lhe todas as penas, uma a uma, reduzindo a galinha uma massa de dor e sangue.
“Como podem ver, eu lhe tirei tudo”, disse o presidente, “inclusive a dignidade. Agora observem o que faço”.
O presidente pegou um saco de farelos e começou fingir que os jogava no chão. A pobre galinha esqueceu a dor e o sofrimento e correu atrás do presidente, suplicando pelas migalhas que ele fingia que lhe oferecia, enquanto dizia: "Está vendo? Se não fosse eu, iam lhe tirar até esses farelos!".
Ministros, deputados, senadores, milionários, todos estavam atônitos com a cena, sem acreditar. “Assim é o povo”, explicou o presidente aos homens mais poderosos do país. “Nós podemos lhe tirar tudo, os direitos trabalhistas, a aposentadoria, posso aumentar o preço dos alimentos, da gasolina e da energia. Enfim, posso lhes tirar tudo, e ainda assim correrão atrás de mim, me amarão e me defenderão contra tudo e contra todos se eu lhes der alguns farelos”.
Ao ouvirem essa grande verdade, aqueles homens se regozijaram, pegaram um helicóptero e foram para uma mansão comemorar com um grande banquete.

Prelúdio à Fundação

 


Fundanção é uma série monumental criada por Isaac Asimov: em um futuro distante os seres humanos se espalharam por milhões de planetas governados por um império. Mas o império está em decadência em breve será esfacelado em milhares de feudos, provocando uma era de trevas, violência e atraso científico que irá durar mil anos. Mas um homem, Hari Seldon, o criador da psico-história (disciplina capaz de prever estatisticamente o futuro da humanidade), tem um plano para diminuir esse tempo: a Fundação.
Essa história deu origem a uma trilogia, escrita na década de 1950. Posteriormente, Asimov escreveu quatro livros no mesmo universo. Prelúdios à Fundação é um deles.
O livro é focado na história de Seldon e como ele decide dar segmento à Psico-história, uma teoria matemática que ele considerava possível, mas impraticável. Ao mesmo tempo, mostra sua fuga pelo planeta Trantor, sede do império, enquanto vários grupos tentam se aproveitar da psico-história para seus próprios fins.
É o livro mais teórico da série, como longos diálogos sobre lógica matemática, história e a possível junção dos dois. Asimov esforça-se para tornar o livro mais palatável – a princípio com a trama de espionagem, mas principalmente com a abordagem antropológica: ao visitar os diversos setores de Trantor, Seldon conhece as diversas culturas ali representadas.
Um dos locais mais interessantes é Mycogen, um bairro cuja população se considera descendente dos habitantes de Aurora, o mundo em que a vida humana teria surgido (segundo eles). Na cultura local, pelos no rosto são considerados indecentes, repulsivos e indecentes. Quando entram na puberdade, tanto homens quanto mulheres são totalmente depilados. Visitantes devem usar toucas que cobrem completamente seus cabelos e faixas que cobrem suas sobrancelhas. Em determinado momento, Seldon é quase linchado em um ônibus quando sua toca se desloca, deixando aparecer parte de seu cabelo.
Asimov mostra assim, através de uma metáfora, como as questões morais podem variar de uma sociedade para outra: como o que é normal em um local pode ser obsceno em outro, como o que é considerado importante em um local pode ser irrelevante em outro.

Só por isso Prelúdio à Fundação já valeria a leitura. Mas estamos falando de Asimov, então temos também uma trama bem elaborada com uma surpreendente virada no final. De negativo apenas a extensão do livro: 450 páginas. Asimov se sai melhor quando é mais conciso.  

A catedral do mar

 


A Igreja de Santa Maria do Mar é uma das principais construções góticas de Barcelona. Iniciada em 1329, ela se destaca por ter sido construída não pela igreja católica, ou pelos nobres, mas pelo próprio povo. Quem não podia contribuir com dinheiro, contribuía com trabalho, como os carregadores, que levavam pedras para a igreja. Essa igreja é o cenário da série espanhola A catedral do mar, lançada aqui pela Netflix.
A história começa com um agricultor que se casa com uma linda camponesa. Quando a festa de casamento parece o auge da felicidade, o senhor feudal aparece e exige o direito de tirar a virgindade de noiva. As núpcias do casal acontecem assim: com a noiva machucada e o o noivo obrigado a isso para diversão do nobre.
Esse início dá o tom da série: é uma trama cujos dramas se sucedem quase initerruptamente. Nesse sentido é um verdadeiro dramalhão mexicano, mas se diferencia desses pelo conteúdo histórico. Ao expor as relações de poder na Idade Média, a série mostra o quanto os pobres e em especial as mulheres pobres eram estigmatizados e abusados pelas classes nobres e até mesmo pela igreja: uma simples acusação de bruxaria poderia levar uma mulher à fogueira da inquisição.
O protagonista da série é o filho desse casal, Arnau, um sobrevivente. Quando finalmente nasce, sua mãe é requisitada para ama de leite do filho do senhor e, sem leite, ele está para morrer de fome. O pai invade o palácio e foge com o filho para Barcelona, um burgo, um local em que servos ganhavam a liberdade após um ano. Mas lá em Barcelona ele se depara com infinitos outros problemas, de relações de trabalho desiguais à fome.
Seu filho acaba conhecendo um garoto, João, cuja mãe foi aprisionada pelo marido. Nessa época, ao desconfiar que a esposa lhe era infiel, o marido tinha o direito de prendê-la num cômodo sem saída, apenas com uma janela para se jogar água e comida.
Os dois, Arnau e João, se tonarão como irmãos e passarão por todas as dificuldades da vida na Idade Média: as guerras, a fome, a peste, que dizimava famílias inteiras. E, durante todo esse tempo, Nossa Senhora do Mar será como uma mãe para eles, consolando-os nos momentos de aflição e ajudando-os a superar os desafios. É curioso que, numa época em que as mulheres eram estigmatizadas como seres demoníacos, tenha se estabelecido um culto tão popular a uma mulher.
Descontando o melodrama excessivo, a catedral do mar é uma boa série para quem gosta de história e uma trama que prende por seu desenvolvimento e seus personagens carismáticos.

Homem-Aranha encontra Kraven, o caçador

 


Kraven, o caçador tornou-se um vilões mais célebres do homem-aranha depois da história A ultima caçada de kraven, de JM De Matteis e Mike Zeck. Mas esse personagem surgiu muito antes. Mais especificamente em The amazing spiderman 15, de 1963.

Na trama, o Camaleão quase é pego pelo Aranha e decide que precisa contratar alguém para eliminá-lo. Se você não sabe quem é o Camaleão, está desculpado. Embora esse fosse um dos principais vilões do aracnídeo nas primeiras histórias, com o tempo ele praticamente desapareceu.

O Camaleão resolve contratar Kraven, que surge em Nova York como celebridade. 


O Camaleão, cujo poder estava relacionado ao disfarce, refletia: “Ele é perigoso demais para mim, e ninguém seria louco para atacá-lo para me ajudar!”. Nesse momento ele lembra de alguém seria louco o bastante: Kraven, o caçador.

Curiosamente, quando o personagem aparece pela primeira vez na história, ele é uma celebridade a ponto de JJ Jameson ter ido pessoalmente ao porto recebê-lo, levando Peter Parker para registrar o momento.

Ditko e Lee aproveitam essa chegada para mostrar as habilidades de Kraven: Jaulas que estavam sendo retiradas no navio desabam, liberando feras selvagens, como cobras e gorilas. Kraven os captura um a um, para delírio da galera. Um acontecimento muito conveniente para o roteirista, eu diria.

Um acidente permite a Kraven mostrar sua habilidades. Isso que chamo de roteirismo. 


Mas a grande fera que o caçador quer capturar é ninguém menos que o Homem-Aranha. Para isso ele coloca na mão e no pé direitos do herói algemas magnéticas, que não só tendem a se aproximar como ainda têm sininhos embutidos que tocam quando ele se mexe.

O herói está em apuros, pois não só as algemas tendem a imobilizá-lo, como ainda alertam o vilão sobre sua posição. Mas as sequências em que o herói está em desvantagem duram pouco. O aranha joga fluído de teia nas algemas anulando os sininhos e a partir daí domina a caçada.

É inevitável pensar no seguinte: como Kraven tivera tecnologia para desenvolver algemas magnéticas, mas não tivera a ideia de fazer algum mecanismo eletrônico de som, ao invés de depender de sininhos que poderiam ser silenciados com teia?

Kraven inventa algemas tecnológicas e coloca sininhos nelas. Sim, sininhos. 


Assim que o aracnídeo consegue prender o caçador em sua teia, aparece a polícia e prende não só ele, como o camaleão: “Eu não fiz nada! É o Kraven que vocês querem! Ele anda caçando seres humanos!”.

De novo fica a pergunta: por que a polícia leva Kraven preso, já que a única prova contra ele era o relato do aranha, que a essa altura já tinha se escondido para tirar fotos? E como o camaleão, que antes parecia um vilão frio, resolve confessar a trama, assim, sem mais nem menos?

Entretanto, a narrativa visual de Ditko e o texto de Lee eram tã divertidos que os leitores tendiam a ignorar essas inconsistências do roteiro.

terça-feira, agosto 30, 2022

Casamento no Quarteto Fantástico

 

 

Em 1965 o quarteto fantástico era a revista mais popular do mercado de quadrinhos americano. Uma das grandes diferenças do título é que eles eram uma família.
Stan Lee e Jack Kirby resolveram marcar isso casando Sue e Red na edição anual do título. Isso em si era uma ideia revolucionária. Na rival DC nada nunca mudava. Clark Kent namorava Lois Lane há anos e nunca nem se mesmo ficavam noivos. Mesmo nos quadrinhos de forma geral essas mudanças era rara. O príncipe valente havia sido um dos poucos heróis de quadrinhos a contrair matrimônio.
O casamento dos heróis foi um dos momentos mais marcantes da história da Marvel.


Um casamento poderia ser um tema monótono nas mãos de quaiquer outros criadores, mas a dupla Lee e Kirby transforma o tema em uma aventura eletrizante, um crossover de vários heróis e vilões.
A grandiosidade da história já era expressa na capa, um amontoado de personagens.  Na história, o Dr Destino cria uma máquina que influencia vilões a atacarem o casamento. O ritmo é alucinante: quando uma ameaça é debelada, surge outra. Lee ainda exagerava no texto e Kirby tornava as sequência grandiosas.
 Uma aventura que marcou época.
Um único porém: a arte final de Vince Colletta, que simplificava em muito o traço de Kirby, muitas vezes até mesmo apagando os cenários.
No Brasil essa história foi publicada pela última vez no volume 4 da coleção de clássicos Marvel Salvat.

Histeria - a história do vibrador

 

 

No século XIX qualquer mulher que tivesse insônia, irritação ou simplesmente rebeldia era diagnosticada como histérica. Acreditava-se que essa doença era provocada por problemas no útero. Uma das maneiras comuns de tratá-la era massagear a vagina da mulher, o que aliviaria o útero, provocando um "paroxismo histérico". Isso era feito por um médico e supunha-se que não havia nenhum prazer envolvido. Mas os médicos acabavam ficando horas com as mãos ocupadas e sofriam com a hoje famosa LER (lesão por esforço repetitivo). Foi nesse contexto que surgiu o vibrador. Inicialmente movido a vapor, ele permitia ao médico conseguir o tal "paroxismo" em minutos. 
Essa é a história por trás do filme Histeria, a história do vibrador, de . A película conta a história do médico Mortimer Granville (Hugh Dancy), inventor do aparelho. A história mistura fatos históricos com uma comédia romântica (Granville apaixona-se pela filha rebelde de seu sócio). 
As cenas mais engraçadas e que chamam mais atenção, claro, são aquelas em que os médicos, com aparente rigor científico, levam suas pacientes ao orgasmo sem nem mesmo desconfiar disso. 
Mas há muito mais: desde uma discussão sobre a situação do povo numa época em que a Inglaterra era um império, mas seus operários viviam na miséria até a questão da luta entre paradigmas. Médico inovador, Granville só vai parar no consultório do médico que seria seu sócio porque nenhum hospital o aceita por causa de sua crença nos germes como causadores de doenças. Na época, a teoria de Pasteur era vista como fantasia pela maioria dos médicos, que se recusava até mesmo a lavar as mãos. 
Histeria, uma história do vibrador, embora não seja uma obra-prima, certamente vai agradar quem gosta de uma boa comédia e, principalmente, por quem se interessa pela história da ciência. 
Anúncio antigo de vibrador. Os médicos recomendavam.

O despertar da Mulher Invisível

 



De todos os personagens do Quarteto Fantástico, a de menor destaque sempre foi a Mulher Invisível. Seus poderes pareciam ser apenas defensivos e muitas vezes ela nem participava de fato das tramas. Alan Moore satirizou isso na minissérie 1963. Uma das revistas era uma paródia do Quarteto e a personagem equivalente à Mulher Invisível em determinado momento varria a sala enquanto os meninos liam e respondiam as cartas. E uma das cartas pedia sua saída do grupo: “ela não bate em ninguém e ninguém pode bater nela”.
Essa situação mudou radicamelmente na ótima fase de John Byrne no título (talvez a melhor depois da saída de Lee e Kirby do quarteto). Na história o Barão Ódio, com a ajuda do Homem-psíquico, incendeia Nova York estimulando o ódio entre a população.
A trama por si já seria relevante nos dias atuais, em que discursos de ódio se disseminam facilmente pela internet. Byrne reflete sobre como o ódio ao diferente parece estar sempre encomberto por uma fina camada de gelo, que pode ser facilmente quebrada. Assim, mutantes, judeus, qualquer um que seja diferente passa a ser caçado pela população.
E, em meio a isso, o Barão consegue dominar Sue Storm, transformando-a em Malícia, uma perigosa vilã e é quando seu poder é totalmente explorado. É como se a doce garota invisível fosse incapaz de perceber a extensão total de seus poderes – capazes de derrotar até mesmo a Mulher Hulk.

O desenho de Byrne, com arte-final de Jerry Ordway e Al Gordon se encaixa perfeitamente no título, seguindo a melhor tradição de Jack Kirby e atualizando-o para a década de 1980: perfeitos nas cenas de ação ou de ficção-científica, com exemplar equilíbrio entre quadros repletos de cenários e quadros minimalistas.
O problema é no roteiro. Byrne aborda aspectos importantes da personagem, como no momento em que o Homem-psíquico explora os medos da Mulher Invisível, mas não os aprofunda.
 Além disso, em determinado ponto os heróis vão atrás do Homem-psíquico e simplesmente esquecem o Barão Ódio, que foi quem de fato manipulou Sue, tirando dela seu pior lado. Byrne esquece do personagem. Além disso, em uma sequência vemos Nova York destruída e sendo literalmente incendiada pelo ódio e na sequência seguinte tudo pareceu resolvido.
Apesar desses problemas, é uma boa história do Quarteto e merece estar em qualquer coleção. 
No Brasil essas histórias saíram nos formatinhos do Abril e recentemente na coleção Os heróis mais poderosos da Marvel, da Salvat.  

Demolidor – Jornada de terror

 


A fase Denny O´Neil – David Mazzuchelli no título do Demolidor é considerada apenas um intervalo entre as duas fases igualmente geniais de Frank Miller no título. Mas essa fase, pouco valorizada, teve suas obras-primas.

Uma delas foi Jornada de terror, publicada em Daredevil 222.

Na história, Glorianna O´Breen, na época namorada do herói cego, está voltando para os EUA quando um terrorista tenta sequestrar o avião. A intervenção da moça faz com que a arma atire e atinja uma maleta que transportava gás do medo. Com todos a bordo tomados pelo pavor, o avião cai num pântano.

Demolidor e Viúva Negra vão atrás dos sobreviventes. 


O Demolidor e a Viúva Negra vão atrás dos sobreviventes. Matt tenta salvar sua namorada e Natasha quer capturar o inventor do gás. Nesse meio tempo, Glorianna e o inventor são aprisionados por uma família dos pântanos. Os bandidos querem casar a moça com um dos irmãos, com problemas mentais. Depois da lua-de-mel, ela será morta, avisam.

O desenho explora as expressões de pavor dos personagens. 


O caminho percorrido pelos heróis é cheio de perigos incluindo armadilhas e cobras. Mas o destaque aqui são os perigos psicológicos. O medo é o maior inimigo. Denny O´Neil consegue explorar muito bem isso no texto e o desenho de Mazzuchelli complementa o roteiro ao mostrar os personagens em closes, os olhos com pupilas dilatadas, a expressão de pavor, o gás em volta, numa névoa de terror.

Ao explorar muito bem esses elementos, a dupla consegue fazer uma história que funciona perfeitamente, da splah page de abertura ao final irônico.  

Novo livro organizado por Gian Danton e Rafael Senra discute a Cultura Pop

 


 

Cultura pop, comunicação e linguagem é uma antologia organizada por Ivan Carlo Andrade de Oliveira (Gian Danton) e Rafael Senra. Divididos em artigos e ensaios, os textos abordam os mais diversos temas dentro do leque da cultura pop.

No âmbito dos quadrinhos, começamos com uma análise da adaptação da história de Conan "A torre do elefante", passando pelo conceito de Gynoid no mangá "Hyper future vision", e até uma interpretação da jornada do herói a partir da saga "Estação das brumas" em Sandman. No campo da música, temos uma abordagem semiótica da capa do álbum "Artpop" da cantora Lady Gaga, e, na interface entre literatura e outras mídias, uma análise de adaptações da obra "The Witcher".

Para completar o livro, os ensaios tratam de representações da Grande Depressão em dois quadrinhos, além das obras de Chris Ware e, para concluir, uma reflexão sobre o papel de Jim Shooter no comando da editora Marvel Comics. 

Para baixar, clique aqui


O carrasco dos gibis

 

No início da década de 50, o psicólogo alemão naturalizado norte-americano Fredrick Werthan publicou uma obra que teve grande influencia sobre o futuro das histórias em quadrinhos. O Livro Sedução de Inocentes acusava os gibis de provocarem preguiça mental e delinqüência juvenil. Para Werthan, as crianças que liam quadrinhos se tornariam marginais e perderiam completamente o gosto pela leitura.
A campanha  de Werthan contra os quadrinhos teve início em 1948, com a publicação do artigo Horror in The Nursey na revista Collier. Como resultado direto do artigo, houve uma queima pública de quadrinhos na cidade de Birghnton, Nova York.
            Depois disso os jornais e revistas começaram a publicar crimes juvenis inspirados por revistas em quadrinhos. As crianças logo aprenderam que uma maneira fácil de se eximir da responsabilidade por seus atos era colocar a culpa nos gibis.
            Foi criada uma comissão no Senado Americano para investigar os supostos efeitos nocivos dos gibis sobre as crianças. Os editores foram chamados para depor, mas o depoimento que causou mais forte impressão foi o do psicólogo inimigo dos gibis. Suas palavras ainda ecoavam na opinião pública quando os senadores aconselharam os editores a criarem um código de censura, antes que alguém o fizesse por eles. As empresas da área entenderam o recado e imediatamente se reuniram para criar o Comics Code – um código que atrasou em mais de 20 anos o desenvolvimento dos quadrinhos na América. As revistas da EC Comics, as mais revolucionárias da época, foram quase que totalmente proibidas. A Mad se salvou apenas por ter mudado de formato, o que a deixou fora do código.
            Entretanto, as pesquisas de Fredrick Werthan, que deram origem ao livro Sedução dos inocentes, tinham erros metodológicos básicos e graves. O primeiro deles é o teste do falseamento. A metodologia científica prevê que um cientista deve criar uma hipótese e testá-la, procurando não provas de que ela está certa, mas provas de que ela está errada. Além disso, o cientista deve estar atento às chamadas variáveis intervenientes, aquelas coisas que não estão sendo estudadas, mas podem interferir nos resultados. Werthan não fez nem uma coisa nem outra. Ao invés de testar sua hipótese, ele procurou apenas provas de que ela estava correta. Ademais, ele ignorou completamente todas as outras variáveis que poderiam estar provocando a delinqüência juvenil. Num caso de um garoto que matou um homem por diversão, por exemplo, ele ignorou completamente o fato de que o garoto tinha diversas armas em casa e era fanático por elas para concentrar-se apenas no fato de que o garoto lia gibis.
Hoje em dia as pesquisas de Werthan são motivo de piada nos meios científicos, mas tiveram grande repercussão, criando um preconceito contra essa mídia que existe até hoje. 

Mestre do Kung Fu: o amargo sabor da imortalidade

 


Quando se fala em grandes desenhistas dos anos 1980, poucas pessoas se lembram de Gene Day. Entretanto, sua fase pelo título do Mestre do Kung Fu é memorável. Ótimo exemplo disso é a história “O amargo sabor da imortalidade”, publicada no número 100 da revista nos EUA.
A história se passa na década de 1930, quando Sir Nayland-Smith ainda era um jovem agente secreto e, com apoio da filha de Fu Manchu, frusta os planos do vilão no Egito.
A história precisava de uma boa dose de boa vontade para ser aceita: o vilão chinês está preparando seus si fans para se tornarem assassinos frios inspirados em Jack, o estripador. Para isso, por alguma razão, ele precisa de múmias egípcias. Assim, ele rouba sarcófagos e os leva para um templo no deserto para expor as múmias aos seus assassinos.
Com a ajuda de Fah Lo Sue, Nayland entra em um dos sarcófagos. Enquanto isso, dois de seus amigos o seguem.
Como disse, é difícil entender a importância das múmias e dos sarcófagos para os planos do vilão, mas a história é tão bem narrada que nos esquecemos desse pequeno problema de verossimilhança.
Para começar, o texto de Doug Moench é irrepreensível. Quando ele encontra a filha do vilão, o texto diz: “Ao chegar à varanda, quase fui entorpecido pela sensualidade solitária da cena, graças ao odor almiscarado que exalava de cada poro dela. Chamas de velas, balançando gentilmente na brisa quente, criavam reflexos dourados a partir das profundesas de seus olhos verdes como jade ”.
A belíssima página de abertura foi modificada pela Abril. 

A arte, embora fosse assinada também por Mike Zeck, era puro Gene Day, a começar pela belíssima ilustração de abertura, com Fu Manchu rodeado por sarcófagos e uma moldura com imagens que remetiam ao Egito. O jogo de luz e sombra dava um ar vintage e noir, totalmente adequado à trama.
Essa história foi publicada no Brasil em Grandes Heróis Marvel 6 e coleção histórico Marvel mestre do kung fug 12. Uma curiosidade é que na versão da Abril, o editor eliminou o título da moldura e foi colocado no seu lugar um desenho que definitivamente não combinava com a moldura egípcia.

Ás inimigo

 


“Joe, eu tenho uma idéia para um novo personagem. Um ás da aviação, rabugento, que tem derrubado mais aviões inimigos que todos os os outros pilotos do seu grupo juntos”. Foi com essas palavras que o escritor Robert Kanigher apresentou o personagem Ás inimigo ao desenhista Joe Kubert.

As histórias desse anti-herói se passavam em plena I Guerra mundial, uma época em que os aviões eram feitos de lona, madeira e cabos e a batalhas aéreas eram focada principalmente nas estratégias. O personagem era um aviador alemão.  

Ao receber o primeiro roteiro, Joe Kubert, empolgado, vasculhou bibliotecas e livrarias em busca de referências visuais: “Eu queria que os leitores aceitassem o Ás inimigo como algo realmente crível, assim como eu havia aceitado a premissa da história”.

O personagem era um solitário, que tinha como único amigo um lobo. 


A primeira HQ do personagem, publicada em Our Army At War  151 mostra que tanto Kubert quanto Kanigher conseguiram o objetivo.

A história inicia com um avião francês em queda livre, o motor expelindo fumaça, enquanto, no canto superior, o ás inimigo aparece em close. O texto diz: “Como um frágil pardal, o avião inimigo sucumbe sob a dupla artilharia de minha espandus... o francês foi um galante oponente. Está me saudando através da fumaça!”.

O objetivo da história nitidamente é apresentar o personagem, tanto que não é há um adversário claro.

Descobrimos, por exemplo, que até o serviçal considera o protagonista um assassino frio, capaz de dormir tranquilamente logo após matar diversos homens. Descobrimos que ele não se sente feliz nem nos braços de uma bela enfermeira, nem na companhia de outros pilotos e nem mesmo quando recebe mais uma condecoração: “Quando recebi a cruz de ouro também me senti sozinho!”.

A série era muito competente ao mostrar as estratégias usadas durante as batalhas aéreas. 


Aparentemente ele tem um único amigo, um lobo encontrado durante uma caçada. “Os outros animais o chamam de máquina assassina também?”, pergunta ele ao lobo.

Algo que chama atenção, além do traço belíssimo e da pesquisa minunciosa de Joe Kubert, é a forma como  Kanigher consegue mostrar perfeitamente as estratégias usadas pelo protagonista para derrubar aviões inimigos. À certa altura, por exemplo, ele está escoltando um zepelin quando este é atacado por três aeronaves. Von Hammer derruba o primeiro e, enquanto o segundo o persegue em volta do zepelin, ele dá a volta e a pega o terceiro desprevenido.

Não por acaso, Ás inimigo é um dos trabalhos mais célebres da dupla Kanigher-Kubert.

No Brasil as histórias desse personagem foram reunidas em um álbum da Opera Graphica.

segunda-feira, agosto 29, 2022

Família Titã: Uma insólita obra-prima

 


Jefferson Nunes 

Em 1990 a dupla Gian e Bené, deu um tempo de suas estórias de terror para contar aquela que é sem duvida a melhor estória de super heróis já produzida em solo brasileiro: A Insólita  Família Titã.
Influenciados pela leitura de Watchmen e principalmente de Miracleman (ambas obras primas de Alan Morre), a dupla resolveu homenagear a Família Marvel da DC Comics através de uma ótica inovadora e totalmente inusitada.
Franco Rosa, Editor da Editora Nova Sampa na época, pediu que a dupla fizesse uma história de 30 páginas um a revista que ele estava lançando e só havia uma semana para realizar todo o trabalho, do roteiro à arte-final.
Assim, Bennett e Gian se reuniram em um cômodo que eles chamavam de estúdio situado na clínica de um tio do desenhista, que estava fechada. Então, eles conversaram sobre as possíveis estórias e surgiu a idéia de fazer uma homenagem à Família Marvel.
A estória foi elaborada naquele momento. À pedido de Franco, ela deveria conter cenas de sexo, entretanto, para os autores, não havia como encaixar sexo na HQ. Então, Bené ficou como responsável para adicionar esse tema. De fato, das 30 páginas, apenas duas contiveram cenas de sexo.
No mesmo dia, Benné fez o rafe da estória e Danton os balões. Em menos de uma semana, o artista desenhou e arte-finalizou a Família Titã. Foi um recorde, afinal, era um trabalho urgente.
O interessante foi que, como tiveram pouco tempo para conversar sobre a HQ, cada um teve uma interpretação diferente sobre ela. Para Gian, o personagem Tribuno era o herói, para Bené, o vilão. Assim, enquanto o desenho mostrava o protagonista em uma cruzada de vingança, o texto intimista justificava suas ações. Isso criou uma dupla possibilidade de interpretação: alguns leitores entenderam o personagem como um sanguinário, outros como um homem bem-intencionado.
Outra característica interessante é que a história se passa, boa parte, numa favela da cidade fictícia de Santa Helena e o herói Tribuno é, na verdade, um deficiente físico.
Embora fosse publicada em revista lacrada com saco plástico, a história fez grande sucesso entre os fãs. Chegou a ter quatro tiragens, vendendo um total de 120 mil exemplares, mais do que a venda do Homem-aranha na época.
A história foi também a responsável pela entrada de Bené no mercado de quadrinhos dos EUA. Ao vê-la, um agente americano se convenceu de que ele seria um ótimo desenhista de super-heróis. Atualmente, Bené assina como Joe Bennett e desenha as histórias da Liga da Justiça.

A história da Família Titã desenrola se durante um período de 15 anos e se passa em Santa Helena, uma cidade fictícia. E em uma favela daquela cidade, viviam César – deficiente físico acometido por leucemia, que fugia da realidade abusando da leitura de livros achados no lixo e que idolatrava a antiga sociedade greco-romana; Paulo e Melissa, garotos amantes. Todos órfãos com, aproximadamente, 14 anos, que viviam de sobras de lixo e catando papel para reciclagem.
César amava Melissa, que amava Paulo. Esse triângulo, de fato, foi a fonte para todos os eventos da trama. César, inadvertidamente, encontrou um artefato alienígena que lhe garantiu toda e qualquer forma de poder. Por ser um trágico humanitário, o jovem deficiente decidiu compartilhar sua descoberta com seus amigos, que fizeram uso do disco e se tornaram os super-heróis Tribuno, Centurião e Vésper.
E durante algum tempo, eles foram os heróis do planeta, salvando as pessoas de ameaças e tragédias. Mas o clímax atinge quando todos passam a confrontar os ideais, resultando em uma tragédia digna da civilização grega.
"Quando Hulk 2 foi lançado, notei o entusiasmo do pessoal, dizendo que havia ficado legal o uso da Favela. Poxa, é isso aí! Na época que eu e Bené produzimos a Família Titã, as pessoas diziam que estória de super-herói não combinava com favela. Então, é necessário a vinda dos gringos para mostrar que isso podia ser feito, sim. Mas, com certeza, nós fomos os pioneiros", disse Danton.

"Sim, tragédia e realismo fazem a cabeça dos leitores de hoje e o engraçado é que nós introduzimos isso há quase 20 anos", completou Bennett.
Danton continua brincando que eles são Stan Lee e Jack Kirby, "dois caras bem diferentes, mas que usam essas diferenças nas estórias".
"Tanto que Franco a publicou várias vezes [Risos]", concluiu o artista.

Fora de catalogo, os exemplares da Familia Titã são  disputadíssima entre os colecionadores de Hqs e e sempre lembrada por vários estudiosos do quadrinhos nacionais como sinônimo de qualidade. Alem disso a dupla Gian e Bene mostrou que e possível sim criar boas estórias de super heróis no Brasil, desde que fuja das imitações baratas e da falta de originalidade que sempre caracterizou e caracteriza o gênero  no nosso pais. Um possível remake da estória vem sendo preparado e devera sair pela editora Quadrix aina este ano.

 Apesar de seu roteirista Gian Danton  afirmar que “Esta não é uma história de super-heróis”, Familia Tita e totalmente antenada com as mudanças  que o gênero estava passando naquela virada de década. O ambiente sombrio, os personagens psicologicamente profundos e o clima de niilismo eram típicos da cahamada “Era Sombria” dos quadrinhos. A dupla despretensiosamente  coloca essa pequena obra prima em pe de igualdade com a revolução  que mestres como Alan Moore, Grant Morrison e Frank Miller  imprimiam nas paginas dos então cansados comics americanos.