sábado, novembro 30, 2024

Bloody Mary

 

 

Bloody Mary é um drink feito com vodca, suco de limão, suco de tomate, molho inglês e pimenta. É também o nome da personagem principal de uma minissérie escrita por Garth Ennis e desenhada por Carlos Ezquerra e publicada pela DC Comics no ano de 1996. Aqui foi publicado pela Abril apenas dois anos depois, em 1998.

A história se passa no ano de 2012. O mundo está em guerra. A comunidade europeia, puxada pela frança e pela Alemanha tornou-se a grande potencia mundial. Quando um neofascista que havia participado de torcidas de futebol violentas chega ao poder, a guerra explode. De um lado, a Europa, do outro a Inglaterra e os EUA. Depois de um início com armas de destruição em massa, os dois lados percebem que não ganhariam nada destruindo o que podia ser conquistado. E os dois lados passaram a investir na infantaria: assassinos cada vez melhores e mais especializados.

Bloody Mary é uma assassina profissional.. 


Nesse meio tempo a Inglaterra cria um esquadrão de elite de assassinos profissionais. Um desses soldados explode o helicóptero em que estavam os outros e foge, tornando-se um mercenário. Do grupo, só se salva uma garota, a Bloody Mary do título.

Anos depois, esse mercenário aparece tentando vender para os dois lados do conflito uma arma que pode criar a infantaria invencível. É quando os dois sobreviventes do esquadrão de assassinos entram em rota de colisão.

... em rota de colisão com um desertor. 

As boas histórias de Garth Ennis são sobre caras durões enfrentando caras durões. E é exatamente o que acontece aqui, com a única diferença de que nesse caso um dos caras durões é uma mulher. Fora isso, é a mesma receita: muita porrada, tiros, escatologia, diálogos afinados. O traço do desenhista espanhol Carlos Ezquerra funciona muito bem na história, com um estilo que se diferencia bastante dos comics e se aproxima muito mais da estética crua da revista 2000AD, com a qual ele colaborou por anos.

Bloody Mary é uma daquelas boas histórias fast food dos anos 90 típicas de Garth Ennis: um gibi para quem quer diversão e ação e não se importa muito com profundidade.

Wolverine antes de se tornar Wolverine

 

O personagem Wolverine representou na Marvel o pior dos quadrinhos dos anos 1990, naquela que ficou conhecida como a Era Image. Houve uma história, por exemplo, que iniciava com três páginas duplas do Dentes de Sabre pulando sobre o carcaju. Seis página de pura enrolação e dentes rangendo. História, nenhuma.  
Mas antes de se tornar um personagem raso envolto em violência sem sentido, maus roteiros e páginas que eram pensadas como pôsteres para serem vendidas para colecionadores, antes disso, o Wolverine teve histórias memoráveis nas mãos de grandes mestres.
Um exemplo disso é a saga que estreou a revista do personagem na editora Abril. Publicada originalmente em 1988, na revista Marvel Comics Presents, a HQ em dez partes tinha roteiro de Chris Claremont, desenhos de John Buscema e arte-final de Klaus Jason.

Wolverine no traço de John Buscema e Klaus Jason.


À primeira vista, a arte de Buscema parece não se encaixar com o traço de Jason, famoso pela dupla com Frank Miller. Mas o arte-finalista dá uma força e um dinamismo para o traço do mestre Buscema que se encaixam perfeitamente no estilo da história, em especial nas splash pages que abrem cada parte da trama.
A história se passa na cidade fictícia de Madripoor, dominada por gangues e pela máfia e tem a ver com uma história anterior dos X-men. Mas é possível ler e gostar sem saber o que aconteceu antes na complicada cronologia mutante. 
A cidade está vivendo uma guerra de gangues. 


A cidade está vivendo uma guerra pelo controle da máfia. De um lado, o chefão O´Donnell e seu campanga Punho de Lâmina. Do outro, um misterioso personagem chamado Tigre. O Wolverine acaba sendo pego no meio dessa disputa e é preso ao se deparar com uma mutante vampira, que suga sua essência vital, deixando-o totalmente à mercê de seus inimigos.
Claremont sempre foi um bom roteirista, mas costuma abusar do tom novelesco, do excesso de texto e da cronologia mirabolante. A história não tem nenhum desses defeitos. Claremont estabelece bem a tipologia de fala do personagem, coloquial e cheia de gírais, que fica explícita na narrativa em off.
Wolverine acaba aprisionado. 


No final, tudo, desenhos, arte-final e texto, tudo se encaixa perfeitamente.  
A Abril ainda fez uma capa em alto relevo, com o personagem pulando na direção do leitor com suas garras em posição. Como diz a capa, edição de colecionador.

Roteiro de quadrinhos: a jornada do horror

 


Nos manuais de roteiro há, normalmente, uma visão sobre a estrutura da história chamada Jornada do herói. Nela, um persogem é retirado de sua zona de conforto e obrigado e enfrentar diversos desafios. No final, vemos sua redenção e sua volta para o mundo normal trazendo algum ensinamento.

Existe um gênero, no entanto, que rompe completamente com essa estrutura: o terror. No terror, o protagonista encontra não a redenção, mas a perdição.

Nesse sentido, o terror é herdeiro direto da tragédia. Aristóteles já tinha descrito a tragédia como um gênero protagonizado por um herói que tem uma falha trágica, a hamartia, que o faz enfrentar seu destino, seus companheiros e até os deuses. No final, essa falha o leva à destruição.

Na tragédia grega, o herói era sempre alguém com grandes poderes, mas maculados pela arrogância, fazendo com que eles se sintam melhores que os deuses.

No terror, a característica do protagonista geralmente se resume à sua falha de caráter, que pode ser não a arrogância, mas a falta de empatia, a ganância ou qualquer outro defeito que se sobrepõe às qualidades. A jornada do herói no terror, portanto, o leva a um caminho não de rendenção de seus defeitos, mas de perdição em decorrência desses mesmos defeitos.

Uma pequena amostra de histórias da EC Comics serve para demonstrar essa característica. 



Em “Papel principal”  três atores tentam entrar em uma peça teatral shakespeariana. Um deles se oferece e é aceito, mas é morto pelo outro. O mesmo ocorre até o terceiro. No final, o ator descobre que está num hospício e seu papel é ser a cabeça que Hamlet segura.

 


Em “Com um pé na cova”  um coveiro explora uma viúva, fazendo um funeral com materiais de terceira, mas vendendo-os com se fossem de luxo. Depois sofre um acidente e fica paralisado. Seu sócio cuida de seu funeral e usa todo o seu espólio numa farsa, um funeral pobre, que é orçado como rico.

 

Nos dois exemplos acima a falha que leva os protagonistas à ruína é a ganância.



Em “No raiar do dia’ um camponês encontra linda garota em casa. Apaixonam-se e transam. Enquanto ela dorme ele ouve que uma louca assassina ronda a região. Temendo que esteja com a assassina dentro de casa, e a coloca para fora e tranca a porta. Nisso aparece a verdadeira louca e mata a garota para ficar com sua roupa.

No exemplo acima, é a covardia que leva o protagonista a ser punido.

Se a covardia leva o protagonista à perdição, imagine o assassinato. Na mesma edição há duas histórias em que a falha moral dos protagonistas é serem assassinos. 

Em “Dia de praia” um rapaz mata a namorada jogando-a da montanha russa. Para se disfarçar, ele vai para a praia, esconde suas roupas e se mistura aos banhistas. Conhece algumas meninas, que, por brincadeira, o puxam para a água. Mas ele não sabe nadar e morre afogado.

Em “O assassino” , um assassino profissional é contratado para apagar um cara por 500 dólares. Ele o persegue pela cidade até encurralá-lo em um local escuro e vazio, sem testemunhas. Quando atira, descobre que está na verdade em um teatro, diante de toda uma plateia. 

Em Phobus o protagonista sucumbe moralmente


Essa estrutura narrativa pode ser observada em várias de minhas histórias produzidas em parceria com Bené Nascimento e publicadas na década de 90 em revistas como Calafrio e Mephisto.

Em Phobus, por exemplo, vemos um personagem que se alimentava do medo das pessoas. Uma vez preso em um hospício, o poder se desprendeu dele e passou a percorrer o mundo matando pessoas e se alimentando de seus medos. No final, o protagonista não morre, mas sucumbe moralmente ao aceitar de volta o poder, o que significa que ele voltará a matar.


Se Carrie fosse uma história de super-herói, terminaria com a redenção da protagonista


Saindo dos quadrinhos e entrando na seara da literatura do terror, um dos clássicos do gênero mais conhecidos é Carrie, a estranha. É a história de uma menina com poderes telecinéticos dominada por uma mãe fanática religiosa que, após ser vítima de uma brincadeira de mau gosto, praticamente destrói uma cidade, matando centenas de pessoas.

Como nas jornadas comuns, a protagonista tem um problema a ser resolvido, ou melhor, dois: a relação com a mãe e aprender a lidar com seus poderes. Numa narrativa super-heroiesca, que segue a jornada do herói, ela alcançaria a redenção ao conseguir controlar os seus poderes ao mesmo tempo em que controla seus problemas psicológicos. Isso aconteceria ao mesmo tempo em que ela se concilia com a mãe. Como é uma narrativa de horror, ela sucumbe ao seu lado mais sombrio, o que a leva à perdição.



O mesmo ocorre em uma história minha em parceria com Bené Nascimento. Aparentemente uma história de super-herói, a Família Titã é, na verdade, uma jornada do horror. O personagem principal, Tribuno, é dominado pelo sentimento de vingança, o que o leva a matar os dois outros heróis e se matar no final.

Nem todas as histórias são sobre heróis que empreendem uma jornada e saem dela renascidos. Algumas são sobre protagonistas que sucumbem durante a jornada, seja física ou moralmente. Se a jornada do herói nos aponta um caminho de evolução espiritual, a jornada do horror nos alerta para o que acontece quando somos dominados por nossas falhas.

Hulk – O terror dos homens sapos

 


Nas primeiras histórias, o Hulk era muito diferente do personagem que todos nós conhecemos. Para começar, na primeira história, o personagem era cinza. Só na segunda edição é que apareceu o verde, mas um verde tímido, muito diferente do golias esmeralda que conhecemos hoje.

Mas o tom das histórias e a personalidade do verdão também eram muito diferentes.

Para começar, havia um clima das histórias de terror da Marvel da década de 50. A segunda edição começa com o Hulk saindo do pântano, como um monstro ameaçador e invadindo uma cidade com um... pedaço de pau! O texto dizia: “Tal qual um monstro selvagem e devastador saído de algum insano mundo abissal, a aterrorizante figura do Hulk emerge repentinamente das lamacentas águas do pântano”. Parecia uma história de terror.

As primeiras histórias tinham clima de terror. 


Só a aparição de Rick Jones impede que o “monstro” destrua a cidade.

Como na época não havia enrolação, tudo acontecia muito rápido. Logo uma raça de homens-sapos resolve invadir a terra e para isso sequestram o maior cientista do planeta... justamente Bruce Banner. Quando anoitece, este se transforma no Hulk e bota o terror na nave (naquela época, Banner se transformava durante as noites).

O golias esmeralda chega a usar uma das armas dos alienígenas contra eles mesmos, enquanto pensa: “Essas armas... perto delas, as nossas parecem estilingues!”. Quem poderia imaginar o Hulk que todos conhecemos usando uma arma e tendo pensamentos como esses? Mas à frente, ele afirma que vai pegar Betty Ross como... refém!

Hulk usando armas e dizendo frases inteligentes? Será que errei de revista? 


A razão disso é que nessa época o personagem era muito baseado na fera do livro O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, sendo muito mais cruel do que embrutecido.

Uma curiosidade: O roteiro era de Stan Lee e os desenhos de Jack Kirby, a dupla de ouro da Marvel, mas a arte-final dessa história contava com três nomes, que dão aspectos completamente diferentes para a arte: Steve Ditko, Dick Ayers, Paul Reinman. Ditko, que tinha um estilo muito pessoal, é perfeitamente reconhecível.

Jornada nas estrelas – Jóia rara

 


Joía rara, episódio da terceira temporada de Jornada nas Estrelas escrito por Joyce Mukat e dirigido por John Erman é um daqueles exemplos de como a série podia alcançar um altíssimo nível narrativo mesmo com recursos mínimos.

Na história, Kirk, McCoy e Spock descem a uma estação de pesquisa para resgatar cientistas de um planeta que será destruído por uma supernova. Eles encontram a estação abandonada. Quando uma tempestade solar faz com que a Enteprise tenha que se afastar do planeta, eles são teleportados por uma inteligência misteriosa para um local onde uma mulher dorme sobre um tablado. Ao tentar se comunicar com ela, descobrem que é muda. Mais: ela cura um ferimento de Kirk, indicando que se trata de uma empata.

O grupo foi raptado por dois alienígenas com cabeças enormes (bem ao estilo das maquiagens dos filmes de ficção científica dos anos 1960) vestindo camisolões prateados. Eles querem um dos três tripulantes da Enterprise como cobaia para uma experiência que pode terminar em morte.

Tirando um outro móvel, todo o cenário é composto de cortinas pretas e o único efeito especial é uma barreira energética colorida e um efeito de teletransporte. Assim, toda a força do episódio se concentra no ótimo roteiro, que explora muito bem os personagens, nas ótimas interpretações e nos truques de direção.

O roteiro, com uma forte mensagem a favor da fraternidade e da compaixão, aproveita muito bem, em seu desfecho, cenas como aquela em que os personagens disputam sobre quem será a cobaia como forma de poupar a vida dos amigos.

Em tempo: nesse episódio, McCoy solta uma das suas famosas pérolas: “Eu sou um médico, não um mecânico!”.

A arte espetacular de Mike Zeck

 


Mike Zeck é um desenhista norte-americano conhecido principalmente por seu trabalho na Marvel Comics. Seu primeiro trabalho de sucesso para a editora foi o Mestre do Kung Fu. Fez também Guerras Secretas e desenhou uma das melhores histórias do Homem-aranha de todos os tempos, A última caçada de Kraven.








sexta-feira, novembro 29, 2024

A porta no muro, de HG Wells

 


A fantasia é um gênero que pode gerar desde história do mais puro escapismo até profundas reflexões filosóficas. Nesse último caso se encaixa a noveleta A porta no muro, escrito em 1906 por HG Wells.

Na trama o narrador ouve a história da boca Lionel Wallace, um importante político britânico.

Quando era apenas uma criança, ele se deparara com uma porta verde num muro, entrou e se deparou com um mundo mágico, um jardim que o assombrou pelo resto da vida: "No momento em que entrou, o sentimento foi de uma felicidade intensa… como só acontece em raros momentos e quando se é jovem e cheio de vida e se pode ficar feliz neste mundo. E tudo era lindo lá…".

Nesse mundo de cores espetaculares, de onças inofensivas, o garoto se sente como se estivesse finalmente em casa: “Havia uma sensação clara de volta para o lar na minha mente, e, quando uma garota alta e loura apareceu no caminho e veio falar comigo, sorrindo, e disse ‘E então?’, me pegou no colo, me beijou, me pôs no chão e me pegou pela mão, não houve surpresa, mas só uma impressão de certeza prazerosa, de ser lembrado de coisas felizes que tinham sido, estranhamente, deixadas de lado".

Até aí o texto não traz nada diferente do que estamos acostumados em outros textos de fantasia. O mais interessante é o que vem depois. Wallace passa o resto da vida procurando a porta verde, mas sempre que a encontra há um compromisso, um encontro com um ministro, uma garota, uma lei a ser aprovada.... E ele nunca entra.

Wells traz uma reflexão sobre o perdemos ao sair da infância e sobre como os compromisso da vida adulta podem nos desviar do que é realmente importante.

O texto foi lançado em 2020 como ebook pela editora wish e está disponível na Amazon.

Artigo sobre a revista Herói

 


Meu artigo A revista Herói e o jornalismo infanto-juvenil apresentado no 42o Congresso Intercom de Ciências da Comunicação já está disponível nos anais do evento. Para acessar, clique aqui.

Argentina 1985

 


Em 1985 um tribunal argentino surpreendeu o mundo ao colocar no banco dos réus os militares que haviam comandado uma ditadura de sete anos, que se acabara dois anos antes. Era algo único, que só poderia ser comparado com o tribunal de Nuremberg. Com uma diferença: no tribunal de Nuremberg os nazistas julgados por crimes de guerra haviam sido plenamente derrotados, enquanto que no chamado Julgamento das juntas militares, os réus ainda continuavam detendo muito poder – a ponto de ameaçar até mesmo o promotor e testemunhas.

O caso era tão assustador que a maioria dos promotores não aceitou ajudar o colega Julio César Strassera, de forma que coube ao iniciante Luis Gabriel Moreno Ocampo e uma equipe de adolescentes reunir em tempo recorde toneladas de provas do mais importante julgamento da história argentina.

É essa história que Santiago Mitre conta em Argentina 1985, filme lançado aqui pela Amazon Prime Video.

O promotor contou com o apoio de equipe jovem. 


Mitre faz mais do que um filme de tribunais. É um triller de suspense, pois nunca sabemos se o julgamento irá de fato até o final ou se alguém da equipe de acusação – ou seus familiares – será morto. Mas é também um drama que encontra seu ponto alto nos depoimentos das testemunhas, incluindo pessoas que eram crianças quando foram sequestradas pelos militares. Nas matérias sobre o filme há declarações dos próprios juízes do caso de que os relatos eram aterradores e é justamente essa sensação de terror que o filme nos passa. Dezenas de milhares de pessoas foram mortas e centenas de milhares presas e torturadas, inclusive pessoas que haviam sido aprisionadas por engano. Toda a mensagem desse filme impactante (talvez o melhor do ano) pode ser resumida na peça de acusação, lida pelo promotor: “Temos a responsabilidade de estabelecer uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória. Não na violência, mas na justiça. Essa é a nossa oportunidade. Talvez seja a última”.

Em tempos sombrios nos quais vivemos, nos quais pessoas se entricheiram na frente dos quartéis pedindo pela retomada de tempos sombrios, em que qualquer pessoa poderia ser presa, tortura e morta por suas opiniões políticas, Argentina 1985 é um filme essencial.

O troll

 


Beto Norberto era um troll. Seu reino era seu computador. Era através da internet que ele aterrorizava dezenas de pessoas. Gostava de pensar em si como alguém invencível, que provocava pânico por onde passava enquanto digitava freneticamente com seus dedos sujos de Doritos. 
Qualquer um poderia ser sua vítima. Especialmente aqueles que se achavam vencedores. Ah, bando de patifes, quando estavam mais seguros de suas conquistas, o grande Beto Norberto aparecia e mostrava o quanto eram pequenos, frágeis e insignificantes, para delírio da imensa legião de fãs, que aplaudiam de pé esse linchamento virtual.
 Quer dizer, legião de fãs era, claro, um exagero. Na verdade eram três fãs e Beto Norberto nunca os vira pessoalmente. Também é verdade que todos eles usavam Nicks estranhos, como “Comeu, morreu” e “O terror de Itanhanheim” e “Suja bundas” e nosso herói não sabia quais eram seus nomes verdadeiros.  Mas eles eram seus amigos, os melhores amigos que um homem como ele poderia ter. 
Eles certamente estariam ao seu lado naquele fatídico dia de 1985 em que acontecera o fato terrível que o colocara nessa situação. 
Todo herói havia passado por uma situação traumática que o levara em direção ao seu grande desafio: Batman perdera os pais, o mundo de Superman havia sido destruído e o Homem-aranha fora picado por uma aranha radioativa (ou geneticamente modificada, maldito Sam Raimi!). 
Ele também havia tido seu grande trauma. 
Beto Norberto estava na terceira série e se apaixonara pela menina mais bonita da escola. Era uma garota loira, de cabelos cacheados, com uma pele de pêssego, olhos azuis e uma infinidade de notas máximas no boletim. Ou seja: era a queridinha dos professores e o alvo dos olhares apaixonados de todos os rapazes da escola. 
O garoto imaginava-se como um cavaleiro andante, percorrendo as planícies com seu cavalo branco indo salvar sua princesa do dragão malvado. E foi assim que ele abriu caminho até ela, resoluto e imponente, heroico até... no horário do recreio. 
O garoto colocou-se aos seus pés, de joelhos, pegou-lhe a mão e pronunciou as palavras. Que palavras eram ele não se lembrava, mas deviam ser palavras lindas, de absoluto furor  romântico. 
A garota ouviu atentamente e até sorriu (e, diante daquele sorriso, Beto Norberto temeu que aparecesse um vilão e a sequestrasse, como o Duende Verde fizera com a Gwen Stacy). 
Quando terminou, seus lábios lindos e carnudos pronunciaram uma única frase: 
- Você já se olhou no espelho? 

Beto Norberto crispava os dedos e fazia pequenos grunhidos de ódio quando se lembrava da cena. Por vezes, tinha ímpetos de destruir o teclado e só não o fazia porque era o único que tinha e, se destruísse o computador, não teria como baixar todos os seriados que assistia. 
Ah, os seriados, ah, os filmes... depois dos gibis eram a felicidade de sua existência. Gostava especialmente daqueles inteligentes, como o filme em que quatro zumbis jogavam poker e quem ganhava comia o cérebro dos demais e depois ia para o banheiro vomitar, pois era um grupo de zumbis que sofria de bulimia. 
Mas, enquanto esperava seus filmes e seriados baixarem, ele percorria fóruns e redes sociais atacando com sua metralhadora de palavras. Como um cão perdigueiro, ele procurava sua vítima. Ele sentia prazer em destruir-lhes os castelos: era um mestre nisso. Lembrava-se como um troféu como criticara o texto de um garoto de 12 anos que acabara de publicar um fanfic muito elogiado. Nosso herói, sem nem mesmo ter lido o texto, mostrou que ele na verdade era um analfabeto que mal sabia digitar seu próprio nome. O guri deve ter saído de perto do computador chorando para se consolar com sua mãe! 
Que glória! 
Os amigos o parabenizaram! Com que maestria ele destruíra o texto do garoto, com que destreza ele transformara sua alegria em pura tristeza e choro. Ah, se existissem mais pessoas assim, diziam os amigos, ah se existissem! 
De fato, a argumentação de Beto Norberto era infalível. E, mesmo que não fosse, havia sempre a saída de mestre: bastava dizer que o trabalho do outro era uma merda. Não há argumentos contra isso!
Mas essa vida  de vitórias virtuais começava a incomodar. Beto Norberto achava que era o momento de passar para um ponto mais radical de sua carreira. Não bastava fazer alguém chorar, ou ofendê-la publicamente. Ele achou que só seria plenamente realizado no dia em que matasse um de seus desafetos.  E já havia um escolhido: o escritor José Augusto, um dos maiores sucessos dos últimos tempos. Nosso herói nunca lera um livro dele (Deus me livre, dizia ele, quero continuar com meu cérebro saudável), mas sabia que eram horríveis, especialmente pelo fato de que o escritor jamais se dignara a responder a suas ofensas, prova máxima de que se tratava de um desqualificado. 
Matá-lo seria um serviço à humanidade. 
Mas como? Beto Norberto sabia que teria que levantar a bunda gorda da cadeira e fazer aquilo que qualquer herói da envergadura dele faria: 
- Mãe, me empresta dinheiro? 
A mãe, que assistia à novela da tarde comendo um saco de salgadinhos que pareciam mais gostosos a cada segundo, levantou os olhos, desconfiada: 
- Emprestar dinheiro?! Quanto você quer? 
- É pouco, mãe, só dois mil reais!  
- Pra que você quer dois  mil reais, seu imprestável?
Vamos, pense rápido, todos os grandes heróis têm raciocínio rápido!  
- É que eu preciso... 
Pense, pense homem! Onde está toda a inteligência que arrebata uma legião de fãs? 
- Eu preciso comprar uma Coca-cola! 
A mãe olhou-o, desconfiada. 
- Uma Coca-cola, por dois mil reais? 
- É uma Coca-cola beeem grande... 
A mãe piscou três vezes, ainda desconfiada. 
- Uma Coca-cola por dois mil reais? 
Beto Norberto soltou seu melhor sorriso: 
- É que vem com um brinde! 
Houve um minuto de silêncio, contado no relógio. 
- Está bem. Pegue a minha bolsa. Era o dinheiro que eu estava economizando para comprar uma máquina de lavar nova... 
Uma máquina de lavar! O que era uma máquina de lavar nova diante da glória de ter um filho assassino? Beto Norberto já se imaginava o crime em todos os jornais. E, mesmo que o pegassem, ainda assim valeria a pena. Pensando bem, talvez fosse até melhor que o pegassem, todo grande escritor já tinha sido preso. Ia ser famoso e escrever suas memórias.  Sucesso, aí vou eu! 
Agora restava escolher a arma. Beto Norberto tinha um conhecido que vendia drogas e  armas, e era o seu fornecedor oficial de jujubas.
Ele encomendou um rifle de alta precisão, com mira telescópica, mas tudo que o traficante tinha por dois mil pilas era uma espingarda velha. Tanto faz, pensou nosso herói. Afinal, ele era um exímio atirador em todos os jogos de computador que conhecia. O que importa é o atirador, e não a arma, não é mesmo? 
Basta procurar um local alto, apontar e atirar. Não tem erro. 
Beto Norberto passou a seguir os passos do escritor, o que não foi um trabalho fácil, com seus 120 quilos. Ele descobriu que José Augusto fazia caminhada de manhã e passava sempre pela mesma praça. Ao lado, havia um prédio abandonado, com saída para uma rua lateral. Era o local perfeito para atirar. 
No dia escolhido, nosso herói se postou na sacada de um dos apartamentos, apontou a espingarda e esperou.

Seu coração bateu mais forte quando o escritor veio correndo.  Ao mesmo tempo, um rapaz veio na direção dele, talvez um fã pedindo um autógrafo. Era agora ou nunca. Beto Norberto atirou e saiu correndo. Foi bamboleando pela escada e pela rua. Chegou em casa esbaforido e ligou a TV, esperando a notícia. Quase desmaiou de emoção quando ouviu o plantão do Jornal Nacional. 
A principal notícia era a de que um dos escritores mais famosos do país havia sofrido uma tentativa de assalto. De alguma forma, o assaltante havia sido morto. 
“Não entendi nada”, disse o escritor. “Ele se aproximou com a arma, anunciou o assalto e depois caiu no chão, morto”. 
Segundo a jornalista, a polícia estava investigando a possibilidade do assaltante ter atirado em si mesmo. 
Beto Norberto desligou a TV, indignado. Só não quebrou o aparelho porque certamente a mãe ia brigar. 
Havia errado o tiro! Pior: matara o homem que talvez fosse matar seu desafeto.  Pior ainda: a polícia e a imprensa haviam ignorado completamente o fato de que o escritor sofrera um atentado! 
Era necessário tomar medidas drásticas! 
Beto Norberto procurou mais uma vez o traficante de jujubas e trocou a espingarda por uma bomba.  Dessa vez ia matar não só o escritor, mas uma grande quantidade de seus fãs, pois gente assim não merece viver. 
Já tinha tudo planejado. Na mesma semana o famoso escritor faria uma noite de autógrafos em uma livraria próxima (o fato de ser próxima foi particularmente tentador, já que Beto Norberto não precisaria correr tanto quanto da outra vez). Basta ir lá, instalar a bomba abaixo da mesa onde ficaria o escritor e assistir pela TV o artefato explodindo. Perfeito!
No dia do lançamento ele foi até a loja mais cedo e ficou lá, esperando os funcionários terminarem os preparativos para a noite de autógrafos. Queria ter certeza de colocar a bomba no lugar certo. De vez em quando olhava no casaco e vislumbrava a bomba e o relógio preso a ela. Faltava pouco para se tornar famoso. 
Quando se sentiu seguro, tirou a bomba do bolso e abaixou-se para prender a bomba. Para isso, era necessário ajustar o relógio e retirar o plástico que cobria o adesivo. Quando fez isso, percebeu que a mão ficara presa à bomba. Talvez fosse uma reação à gordura do Doritos, mas o fato é que nem com os maiores esforços ele conseguia desgrudá-la. 
Pior: o relógio travara e a bomba iria explodir em minutos! 
Beto Norberto levantou-se, sacudindo as mãos e saiu correndo na direção da saída, derrubando clientes e estantes no caminho. Os segundos iam tiquetaqueando em sua mão, enquanto ele corria resfolegando pelos corredores do shopping. Finalmente achou o banheiro e enfiou a mão dentro de uma privada. Achou que isso iria parar o processo, mas estava errado. O relógio era à prova de água! Felizmente o líquido da privada ajudou a desgrudar sua mão. 
Beto Norberto saiu do banheiro sem lavar a mão. Já estava longe quando ouviu um estrondo. 
Na mesma noite uma das matérias falava de um gordo que fizera uma brincadeira explodindo um vaso sanitário no banheiro de um shopping. As imagens de segurança o mostravam saindo do banheiro com as calças molhadas. 
Era o cúmulo da humilhação. Além de não ter conseguido o que queria, Beto Norberto ainda havia sido filmado depois de ter urinado na própria calça! 
Só restava a saída honrada do suicídio. Pelo menos isso ele aprendera com os milhares de mangás que baixara pelo Torrent. Mas todos deveriam saber que o  escritor era o culpado. Ele aparecia no jornal doando dinheiro para instituições de caridade, fazendo visitas a asilos e creches. Todos o idolatravam, mas ninguém sabia a víbora que se escondia por trás daquela fantasia de bom moço. 
Beto Norberto escolheu um prédio abandonado em um local movimentado da cidade e subiu o máximo que pôde (enquanto ele subia, pensava em como era fácil arranjar prédios abandonados naquela cidade). 
Foi até a sacada, começou a gritar que ia se matar e esperou os repórteres. Acontece que nesse mesmo dia, no mesmo horário, estava ocorrendo um incêndio em um prédio na outra parte da cidade e todos os jornalistas estavam lá, fazendo a cobertura. 
Uma das redações de jornais chegou a receber uma ligação de alguém avisando sobre a tentativa de suicídio, mas o editor descartou logo: “Nosso único repórter livre está tentando descobrir onde está o babaca que explodiu o banheiro do shopping!”. 
Dessa forma, como não havia imprensa e como o gordo nunca se decidia a pular, a população foi perdendo o interesse. No final, ficou só uma velhinha. Surda. 
- Meu filho, por que você quer pular? 
- Quero mostrar que esse tal de José Augusto é um cretino. 
- Você não precisa pular daí para mostrar que é um cretino, meu filho. – respondeu a velhinha, desviando o olhar do tricô. 
- Não, Eu não disse nada disso, sua velha idiota. – gritou ele. 
- Também não é preciso pular para mostrar que é idiota. – sugeriu a velhinha. 
Era demais! A gota d´água! Beto Norberto sentiu que tinha chegado a hora de matar uma pessoa. Pouco importava que a velhinha fosse uma desconhecida. Alguma publicidade é melhor do que nenhuma...  ele ia descer lá, agarrar o pescoço da velhinha e apertar até que ela largasse aquele maldito tricô.... e depois ia apertar mais. 
Quando se levantou, alguma coisa estranha aconteceu. O parapeito pareceu escorregadio – ou talvez fosse sua mão, suada com o calor. Ele tentou se segurar, mas os pés também escorregavam. Por fim caiu. 
Acordou no quarto de um hospital com sua mãe ao lado, chorando e enxugando as lágrimas com um lenço sujo. 
- Oh, meu filho, fiquei tão preocupada! Que susto... Não, não fale, meu filho. O médico disse que você não deve falar por um bom tempo. Ele disse também que o fato de você ter subido só até o segundo andar ajudou. Além disso, a gordura ajudou a diminuir o impacto da queda. Ah, eu sabia que o mingau de Mucilon que eu te dava quando era criança um dia ainda salvar a sua vida! Fiquei tão feliz que comprei um presente para o meu garoto predileto... 
Disse isso e pegou um pacote de presente. Como o filho estava com os braços quebrados, ela mesma abriu. 
- Enquanto você estava desacordado, falava o tempo todo em um tal de José Augusto. Fiquei tão curiosa  que resolvi pesquisar e descobri que esse José Augusto é um escritor famoso.  Já que você gosta tanto, comprei toda a obra dele e vou ler todos os livros para você...  até o meu menino ficar bom. 
Beto Norberto queria estar morto. Ou matar alguém.