segunda-feira, setembro 09, 2024

Propostas discordantes no jornalismo

 


Na história do jornalismo percebemos que nem todos leram pela cartilha da objetividade e da pirâmide invertida.

Alguns movimentos e publicações discordavam abertamente do atual modelo de reportagens e apresentavam propostas de mudanças.

Uns se contentaram em mudar a pauta, realizando publicações sobre assuntos pouco enfocados pela imprensa estabelecida. É o caso da imprensa alternativa.

Outros propuseram uma mudança radical até mesmo no jeito de fazer jornalismo. Eu as chamei de "propostas discordantes". Tais propostas colocaram em xeque nossa idéia de imprensa e nos fizeram perguntar o que realmente caracteriza o jornalismo.
Capote, um dos criadores do novo jornalismo


Novo jornalismo

A proposta de aproximar o jornalismo da literatura não é nova. Muitos escritores transformaram reportagens em obras literárias. Exemplo disso é o livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, um verdadeiro marco tanto da imprensa quanto da literatura brasileira.

Mas o grande mentor dessa relação foi o norte-americano Truman Capote. Ele acreditava que a reportagem poderia ser uma arte tão requintada quanto qualquer outra forma de prosa, tais como o ensaio, o conto e a novela.

Para provar sua tese, ele procurou o tipo mais baixo de matéria jornalística: a entrevista com astros.

Os brasileiros sabem o quanto é descartável esse jornalismo praticado por revistas como Contigo, Caras e Quem.

Capote queria transformar esse tipo de matéria em uma arte autêntica, provando que o jornalismo poderia ser um gênero literário.

Para isso ele procurou o ator Marlon Brando, então no auge da fama. Capote passou uma noite com Brando em um apartamento em Kioto, no Japão, onde o astro estava filmando Sayonara, de Joshua Logan.

Os dois conversaram a noite inteira, sem que Capote gravasse ou fizesse anotações. Ele acreditava que esses recursos criam um clima artificial e destrói a naturalidade por parte do entrevistado.

O resultado foi publicado na revista New Yorker em 1956 com o título de "O Duque em seus domínios".

Estava criado o Novo Jornalismo.

O texto mostrava o ator de maneira até então inédita e antecipava até mesmo a gordura de Brando (que chegou a pesar, nos anos seguintes, 120 quilos). O ator admitiu, entre outras coisas, que se sentia ofuscado pelo sucesso: "Um excesso de êxito pode arruinar um homem tão irremediavelmente quanto um excesso de fracasso".

Brando aceitou seu perfil como fidedigno, mas disse que se sentiu traído: "Aquele pequeno canalha passou a metade da noite me contando seus problemas. Achei que o mínimo que poderia fazer era contar-lhe os meus".

Em 1959, ao saber que quatro membros de uma família de fazendeiros haviam sido assassinados brutalmente (eles foram amarrados, amordaçados e receberam tiros na cabeça), Capote rumou para a cidade em que havia acontecido o crime, Garden City, decidido a chegar ao ápice de seu projeto de narrar a realidade como ficção.

Passou cinco anos pesquisando. Entrevistou, perguntou, levantou os menores pormenores do caso, tornou-se amigo dos policiais e até dos criminosos, dois assaltantes de nome Perry Smith e Dick Hickock.

Antes de publicar o relato, ele passou o texto para checadora da revista, Sandy Campbell, que verificou todas as informações. A história foi publicada em capítulos no New Yorker e depois reunida no livro A Sangue Frio, um marco do Novo Jornalismo.


A idéia dessa proposta discordante era dar ao leitor algo mais do que os fatos: a vida subjetiva e emocional dos personagens. Isso fazia com que os autores incluíssem no texto até mesmo o pensamento dos personagens.

Outra técnica do new journalism era a composição: fundir a história de várias pessoas e apresentá-las em uma personagem só, fictício. Além disso, essa corrente defendia o jornalismo investigativo: as histórias deveriam ser exaustivamente pesquisadas e checadas nos mínimos detalhes.

No Brasil o auge do Novo Jornalismo foi a revista Realidade, da editora Abril, que dourou de meados da década de 60 a meados da década 70 e só acabou por causa da censura.



Jornalismo gonzo

O nome mais importante do gonzo jornalismo é o norte-americano Hunter S. Thompson.

Na década de 70 ele foi mandado pela revista Rolling Stone para cobrir uma corrida de motos. Gastou todo o dinheiro que haviam lhe dado com drogas, carros, fez contas em hotéis e saiu sem pagar, arranjou problemas com a polícia e, para piorar, só chegou na corrida de motos quando esta já havia acabado. Ao invés de ser demitido, virou celebridade e acabou criando uma nova forma de fazer jornalismo: o gonzo. O batismo foi feito pelo repórter Bill Cardoso. Ao ver os textos de Hunter, ele comentou: "Não sei o que está fazendo, mas você mudou tudo. Isso está totalmente gonzo".

Hunter continuou produzindo reportagens, sempre sob o lema: "Quando as coisas ficam bizarras, os bizarros viram profissionais".

O gonzo, por suas próprias características, não é uma fórmula que possa ser aplicada a um texto. É muito mais uma atitude diante do mundo e do jornalismo.

É possível, no entanto, perceber algumas características no gonzo jornalismo.

A primeira delas é um ataque radical à teoria da objetividade jornalística.

Para os adeptos do gonzo, o discurso da objetividade quer criar confiança, convencer o leitor de que é isenta, livre de desejos, ideologias, medos e interesses de quem escreve.

Ou seja, a objetividade é um discurso de mascaramento da ideologia que permeia o jornalismo. Não interessa ao gonzo se essa ideologia é neo-liberal ou marxista. O importante é o princípio da objetividade serve para esconder o fato de que nenhuma linguagem é neutra.

O gonzo tira essa máscara e daí surge sua primeira característica formal: os textos são sempre escritos em primeira pessoa. O objetivo não é apenas narrar fatos, mas relatar a experiência de um determinado indivíduo com eles.

O fator de haver um mediador entre a experiência e o leitor é destacada, e não escondida.

O gonzo também quer ir contra a imagem que os jornalistas fazem de si mesmos, de sérios e respeitáveis (exemplo disso é o âncora da Record, Boris Casoy).

Tal imagem contribui para transformar o jornalismo em "discurso autorizado". O jornal é a expressão da verdade, e não de "uma verdade".

Em contraste, os gonzo-jornalistas não pretendem ser nem sérios nem respeitáveis.
Hunter Thompson, o criador o gonzo jornalismo.


A carta de princípios da irmandade Rauol Duke (pseudônimo utilizado por Hunter para evitar problemas com a polícia) nos diz que o repórter "deve se envolver na história e alterar ao máximo os acontecimentos dentro da media do Impossível, de forma a transformá-la não em um mero RELATO do evento, mas sim em uma história ENGRAÇADA e CÁUSTICA".

Entretanto, a ficção pura e simples não serve ao gonzo. Ainda segundo a mesma carta, "o conteúdo dos textos deve ser JORNALÍSTICO, ou seja: um fato precisa estar acontecendo necessariamente".

Para fazer jornalismo gonzo não é necessário procurar fatos bizarros. Aliás, o ideal é abordar fatos normais, banais, sob ponto de vista bizarro e pessoal.

Exemplos de jornalismo gonzo estão se tornando cada vez mais freqüentes na imprensa brasileira. Arthur Veríssimo, da revista Trip, foi o primeiro a celebrizar esse estilo no Brasil. Em uma de suas matérias mais antológicas, ele passou um dia como animador de festas infantis.

A revista Zero, recentemente lançada pelas editora Pool e Lester, também traz características gonzo.

O número de estréia trouxe uma matéria sobre as deusas-vivas do Nepal. O título e subtítulo deixam claro o distanciamento que a procura manter do jornalismo convencional: "É DURO SER DEUSA - No Nepal, o dom divino já nasce com data de expiração. Luiz Cesar Pimentel passou uma tarde na casa de uma ex-deusa viva e mostra a realidade casca-grossa das divindades locais".

O texto é em primeira pessoa e não esconde o ponto de vista do repórter:

Por mais que eu tenha me esforçado no parágrafo anterior para dar a real dimensão da discrepância de uma deusa dormir em um sofá-cama e possuir um vira-lata (que parece uma mistura de poodle com nada) como campainha, a cena para quem passa um período no país não é tão assombroso assim. No Nepal, todas as situações têm uma forte tendência ou a não funcionar ou a funcionar de um jeito totalmente estapafúrdio. E, como você deve imaginar, dá tudo certo no final. Ou quase.

Até mesmo a grande imprensa tem se rendido à bizarrice do jornalismo gonzo, embora de maneira mais comportada.

É na, até pouco tempo sisuda, revista Superinteressante que encontramos um exemplo típico de jornalismo gonzo.

Na matéria "Puro Rock'n'roll", publicada na Superinteressante, número 8, ano 15 de agosto de 2001, o repórter Dagomir Marquezi se disfarçou de saxofonista do grupo Jota Quest e participou de show em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo. Como uma típica matéria gonzo, o jornalista também é personagem e o texto é em primeira pessoa:

Não bastava tocar: um trio de metais que se preze também dança. Lembrava-me dos muitos shows de James Brown que assistira. "Um passo para a direita, junta os pés. Um passo para a esquerda, junta os pés". Eu operava a coreografia e meus colegas de metais não se agüentavam de vontade de rir da minha picaretagem artística. O baixista PJ e o tecladista Márcio Buzelin, entre risadas disfarçadas, também faziam sinais de que estava me saindo bem.

Lobato contra modernistas: a guerra que não existiu

  Uma das histórias mais contadas nos cursos de letras e em grande parte dos livros de literatura é a guerra que teria sido travada entre Monteiro Lobato e os autores modernistas. Lobato é mostrado como retrógrado, ultrapassado e inimigo de posições revolucionárias. Sua produção literária de contos é vista como pobre, de um regionalismo de pouco calibre. O criador do Jeca Tatu é tido, no máximo, como um escritor infantil importante. Mas essa guerra com os modernista teria realmente existido? Essa é a pergunta que muitos intelectuais têm feito e a resposta parece não ser tão óbvia quanto foi durante muito tempo.


A exposição Anita Mafalti

A suposta guerra entre Monteiro Lobato e os modernista teria começado em 1917, com a publicação, no jornal O Estado de São Paulo, de uma crítica de Lobato à exposição de Anita Mafalti. Esse texto, intitulado Paranóia ou mistificação, foi incluído posteriormente no livro Idéias de Jeca tatu.
Lobato começou elogiando Anita: ¨Essa artista possue um talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida em má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se, de qualquer daqueles quadrinhos, como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva¨, mas acrescenta que, seduzida por teorias modernas, ela deixou sua arte descambar para um novo tipo de caricatura.
Lobato aproveita também para cutucar os que se dizem encantados com esse novo tipo de arte, pois esses descobrem na tela intenções inacessíveis ao vulgo e conclui, ironicamente: o público é uma besta e eles um grupo genial de iniciados.
O escritor reservou especial atenção a uma tela do cubista americano Bolynson, um carvão representando uma figura em movimento, que foi colocado na exposição como exemplo do caminho segundo por Mafalti. ¨Aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram, isto sim, um pedaço de carvão em movimento¨.
Essa crítica, publicada em 1917, ecoou por muitos anos fazendo, inclusive que muitos ainda acreditem que Lobato havia criticado a Semana de Arte Moderna, um evento ocorrido cinco anos depois. Também por conta desse texto, muitos tentaram desqualificá-lo como crítico e renegar suas idéias sobre arte e cultura.
Na verdade, Lobato não direcionava sua crítica à inovação, mas ao estrangeirismo. Nacionalista radical, o escritor não admitia que se fosse procurar nas vanguardas européias um norte para a arte brasileira. Para ele, isso impediria a criação de um ideal estético nacional, colocando-nos sempre como macacos imitadores dos povos colonialistas.
Outro fator importante é a personalidade independente de Lobato (resumida na frase de Shakespeare, que ele adorava citar: ¨isto acima de tudo: sê fiel a ti mesmo¨) que não admitia reduzir a arte às regras de uma escola artística.
Por fim, Lobato procurava sempre atingir, com sua literatura, um público o mais amplo possível, numa proposta de democratização das artes. O oposto disso seriam as obras herméticas e aristocráticas, que Lobato enxergava no quadro de Bolynson.

A semana de arte moderna 


No livro Furacão no Botocúndia, Carnem Lúcia de Azevedo, Márcia Camargos e Vladmir Sachetta argumentam que o preconceito contra Lobato, motivado pelo episódio Mafalti foi a única razão pela qual Lobato ficou fora da Semana de Arte Moderna, já que Lobato seria o líder natural deles. Afinal, no campo das idéias sociais, políticas e econômicas, ele foi o praticante mais sistemático da agenda modernista. Mas nas artes, os modernistas foram bater às portas de Graça Aranha, que pouco tinha a ver com o movimento.
Lobato fez graça com a situação: ¨Se eu tivesse participado da Semana, talvez me tivessem contaminado com a inteligência nela manifestada. Preferi ficar na minha burrice¨, escreveu ele, dispondo-se a participar de uma segunda Semana, aumentada, na qual ficaria com o cargo de papa, logo abaixo do Papão Oswald de Andrade.
Aliás, a relação entre Lobato e Oswald sempre foi das mais amistosas. Ambos tinham espírito independente e um grande senso de humor. Oswald chamava Lobato de ¨O Gandhi do modernismo¨ e dizia que o autor do Jeca só não participou da Semana por causa do nacionalismo: ¨sua luta significava a repulsa ao estrangeirismo afobado de Graça Aranha, às decadências lustrais da Europa podre, ao esnobismo social que abria seus salões à Semana¨.
Lobato jamais perdeu contato com os modernistas, muitos dos quais eram publicados por sua editora. Além disso, ele se correspondia regularmente com nomes como Di Cavalcanti, Graça Aranha, Oswald e Mario de Andrade e Sérgio Millet.
Coerente com sua opinião de que Anita era uma grande artista, Lobato chamou-a para ilustrar a capa dos livros ¨O Homem e a morte¨, de Menotti Del Picchia e ¨Os condenados¨, de Oswald de Andrade, ambos lançados por ele. O livro ¨Idéias de Jeca Tatu¨ teve como capa O Homem Amarelo, quadro de Anita Mafalti.
Além disso, Lobato nunca escreveu contra a Semana. Na verdade, o que parece ter acontecido foi um episódio de ciúmes, por conta de um artigo no qual Lobato creditava a Semana à Oswald de Andrade.

A morte de Lobato
No artigo ¨Nosso dualismo¨, publicado no em e reunido no livro ¨Na Antevéspera¨, Lobato diz que ¨O futurismo apareceu em São Paulo como fruto da displicência dum rapaz rico e arejado de cérebro: Oswald de Andade¨. Segundo Lobato, Oswald era um turista integral que, por sua visão cosmopolita tinha capacidade de perceber a cristalização mental da inteligência brasileira. Para tirar o país desse marasmo, ele teria recorrido ao processo da atrapalhação e exemplifica com o caso da peninha. Um sujeito propõe a outro uma advinhação: ¨Qual é o bicho que tem quatro pernas, come ratos, mia, passeia pelos telhados e tem uma peninha na ponta da cauda?¨. Como ninguém adivinhasse, ele explicou: ¨É o gato!¨. ¨Mas e a peninha?¨. ¨Está aí só para atrapalhar¨. O processo de atrapalhação teria dado uma sacudida na cultura brasileira, mas, segundo Lobato, a coisa teria dado errado quando outros autores resolveram transformar esse processo num dogma: ¨Oswald sempre repeliu os sectários e sempre refugiu de transformar sua colher de mexer, hoje colher de pau-brasil, em paradigma, em maracá sagrado. E passa a vida a criar cismas dentro do grupo, a renegar sumos pontífices¨.
Mário de Andrade responde com o texto ¨Post-scriptum Pachola¨no qual chega a anunciar a morte de Monteiro Lobato, que ele recebia com o coração sangrando e os olhos mojados de lágrimas. É de se perguntar se em seu texto não havia um tanto de ciúmes, por Lobato ter creditado a Semana a Oswald e não a ele.
O autor do Jeca, entretanto, não fez caso. Em carta ao jornalista Flávio Campos, Lobato diz que Mário, por seu talento, tem direito a tudo, ¨até de meter o pau em você e em mim. Eu tenho levado pancadinhas dele. Certa feita matou-me e enterrou-me. Em vez de revidar, conformei-me, e sem mudar minha opinião sobre ele. Mário é grande. Tem o direito de nos matar à moda dele¨.
Lobato sempre esteve mais alinhado com os ideais modernos do que com a tradição. Seu movimento pelo petróleo brasileiro e pela industrialização está mais próximo do futurismo do que da tradição intelectual brasileira, que se prendia aos bons tempos do café . Sua obra infantil é moderna ao extremo, inclusive em termos de linguagem, ao aproximar a literatura da fala coloquial. Suas várias editoras sempre foram inovadoras e tiveram papel importante na divulgação dos autores modernistas. Até mesmo no campo social Lobato se revelava revolucionário, defendendo, por exemplo, que os jovens fizessem uma espécie de ¨estágio¨, morando com seus futuros conjugues antes de casarem.
Mesmo Mário de Andrade, provavelmente o maior responsável pela disseminação da idéia de que Lobato era inimigo dos modernistas, mesmo ele admitiu o alinhamento desse autor com os ideiais daquele movimento: ¨Quanto a dizer que éramos, os de São Paulo, uns antinacionalistas europeizados, creio ser falta de sutileza crítica. É esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente em São Paulo e imediatamente antes, pela Revista do Brasil, é esquecer todo o movimento editorial de Monteiro Lobato¨.

O que fazemos nas sombras

 


Filme neozelandês de 2016, O que fazemos nas sombras é um ótimo exemplo do gênero mocumentário (documentário falso). Na história, uma equipe de documentaristas, devidamente protegidos por crucifixos, acompanha o cotidiano de quatro vampiros centenários moradores de um castelo.
Além disso, como dividem o mesmo local, os personagens enfrentam problemas de convivência, como por exemplo, decidir quem lava a louça – ou
A excêntrica lista de personagens, que conhecemos logo na primeira cena, dá o toque de humor da história: o engomadinho Viago, o revoltado Deacon, o “sensual” Vladslav e Petyr, que não fala uma única palavra durante todo o filme. As referências aí são óbvias: Viago, por exemplo, é uma versão anedótica dos vampiros do livro Entrevista com vampiro, Vladslav é uma referência direta ao Drácula de Coppola e Petyr é Nosferato, clássico do cinema expressionista alemão.
A dinâmica entre esses quatro (e os outros personagens que vão aparecendo depois) é perfeita. Logo no começo do filme, por exemplo, o engomadinho Viago faz uma reunião para discutir sobre as tarefas da casa e acusa Deacon de não lavar a louça há cinco anos. O humor surge exatamente disso: de vampiros, seres sobrenaturais, tendo que lidar com questões cotidianas, como a limpeza da casa, louça para lavar, contas para pagar, serviçais que insistem em ser transformados em vampiro, a sujeira resultante de quando um deles acerta uma artéria principal de uma vítima etc.
A graça da coisa  está exatamente nisso: em imaginar como seria a vida real de vampiros em uma sociedade morderna. Um exemplo: como não têm reflexo, os vampiros são incapazes de perceber se suas roupas são adequadas ou não à nossa época. Também não podem entrar em uma boate, já que vampiros só podem entrar em um local se forem convidados.
A produção é tosca, com efeitos especiais óbvios para os dias de hoje, mas isso, ao invés de atrapalhar, ajuda, contribuindo para o clima de humor da história.
O que fazemos nas sombras fez tanto sucesso que já se fala em fazer uma série da Fox dirigida por Taika Watiti (Thor: Ragnarok), um dos diretores do longa. Resta saber se conseguirão manter o mesmo ritmo sem que pareça uma piada esticada.

Dias de um futuro esquecido

 

A capa do número 141 se tornou uma das imagens mais famosas e imitadas dos comics.

Depois da saga da Fênix, parecia que os X-men nunca mais alcançariam o mesmo nível de qualidade ou apresentariam uma saga tão importante quanto. Veio uma história chamada Elegia, que era apenas um resumo de toda a saga dos mutantes e uma saga em duas partes com Wendigo. Nada muito empolgante.

Então John Byrne e Chris Claremont nos trouxeram Dias de um futuro esquecido. Publicada em apenas dois números (The Uncanny X-men 141 e 142), essa história era tão revolucionária do ponto de vista de concepção e se tornou imediatamente um clássico.

Na trama, a morte de um senador cria um imenso sentimento anti-mutantes que leva um candidato radical a conquistar a presidência dos EUA. Para implementar sua plataforma segregacionista e dar uma solução final ao problema mutante, ele reaviva os sentinelas, que, na ânsia de eliminar a ameaça mutante, mata a maior parte dos super-heróis e vilões. Os poucos que sobrevivem são confinados em campos de concentração e obrigados a usarem colares que inibem seus poderes. E agora os sentinelas querem continuar seu plano de eliminação indo para outros países, o que pode provocar uma guerra atômica que irá acabar com a humanidade. É uma visão extramemente sombria do futuro.

A história mostra um futuro distópico. 


A história inicia no ano de 2013, com Kate Pride se encontrando com Wolverine (que faz parte da resistência canadense) e recebendo dele um equipamento que irá desativar os colares. O plano é usar uma telepata para fazer a consciência de Kate voltar para o início dos anos 80 e salvar o senador, evitando que esse futuro distópico se realize.

A trama segue em paralelo: de um lado Kate Pride tentando convencer os X-men a ajudá-la a salvar o senador de um ataque da Irmandade mutante (e depois a batalha que se segue) e os mutantes do futuro tentando um plano B para acabar com os sentinelas e no processo sendo mortos um a um.

O mais assustador é que, embora os x-men consigam impedir a morte do senador, a história não mostra o futuro, deixando em aberto se ele foi mesmo alterado ou não.

Uma curiosidade é que o filme O Exterminador do futuro, que tem premissa muito parecida, é de 1984, três anos depois – o que levou muitos leitores a se perguntarem se os quadrinhos não teriam influenciado o filme.

A página da discórdia. 


Em tempo: essa história foi a pá de cal na relação entre John Byrne e Chris Claremont, que já apresentavam discordâncias criativas há muito tempo. Em determinado trecho do futuro, Wolverine abria a porta do edifício Baxter e entrava. Para dar destaque à personagem Ororo, de quem gostava mais, Claremont mandou Terry Austin redesenhar o quadro – que ficou no mínimo estranho, pois o Wolverine aparece pegando na maçaneta da porta anteriormente e depois aparece na frente dos outros.


 Para se vingar, Byrne fez uma capa em que Wolverine aparece em primeiro plano, sendo morto por um sentinela com uma rajada, num desenho extremamente detalhado. E, na mesma imagem, aparece a Tempestade morta na mão do robô. Mas enquanto o carcaju mereceu todo o capricho do mestre, a heroína parece um boneco.  

O traço fascinante de Wilson McCoy

 

Wilson McCoy é um desenhista norta-americano mais conhecido pelo seu trabalho em O Fantasma.

Nascido em 1902, ele vinha de uma família pobre cuja situação financeira piorou quando o patriarca morreu. McCoy começou a trabalhar em uma farmácia. Quando estava no ensino médio, conseguiu emprego como mensageiro em uma agência de publicidade. Como seu sonho era se tornar artista, ele treinava o desenho nas horas vagas, até que começou a conseguir alguns trabalhos de ilustração publicitária.

Já na década de 1940 ele dividiu estúdio com Ray Moore, o primeiro desenhista do Fantasma e passou a colaborar com ele no desenho da tira. Quando Moore foi convocado para lutar na II Guerra Mundial, McCoy assumiu a tira, sem assinar. Moore voltou da guerra com um ferimento que o impedia de continuar desenhando, o que fez com que o sócio se tornasse o desenhista regular do herói.

McCoy desenhou O Fantasma por todo final da década de 1940, por toda a década de 1950. Com a sua morte, em 1961, Sy Barry assumiu a tira.

McCoy começou seu trabalho no Fantasma imitando o traço noir de Ray Moore, mas logo revelou seu traço estilizado quase caricato, mas charmoso. Por ter desenhado um dos personagens mais queridos dos quadrinhos durante mais de uma década, ele angariou muitos fãs.  












domingo, setembro 08, 2024

O pianista

 


Quem assistiu ao filme O Pianista deve ter ficado intrigado com o oficial nazista que salva Wladislaw Szpilman, escondendo-o no sótão de uma casa e lhe levando comida. O nome desse oficial era Wilm Hosenfeld e cartas suas recentemente publicadas revelam que ele não só salvou o pianista, como outras pessoas, pois discordava do genocídio praticado pelos alemães.
Hosenfeld era um veterano da Primeira guerra Mundial, na qual lutou muito jovem. Como outros alemães, sentia-se ressentido com o Tratado de Versalhes e achou uma resposta para suas ansiedades no partido nazista. Alistou-se em 1939, tendo participado da invasão da Polônia, mas seu entusiasmo com o nazismo terminou no dia em que viu uma criança ser executada por ter roubado um pouco de feno.
Sua revolta era expressa em cartas à mulher. Em uma delas dizia: "Envergonho-me de fazer parte dos culpados por uma tragédia tão grande, sem poder auxiliar as vítimas" . Em outra afirmava: “Pode um alemão ainda mostrar-se ao mundo? É para isso que nossos soldados morrem na frente de batalha? A história não conhece nada igual. Talvez os arcaicos tenham praticado o canibalismo. Mas nós que conduzimos a cruzada contra o bolchevismo, como podemos abater homens, mulheres e crianças em pleno século XX? Seremos normais? A culpa é tão grande que nos faz afundar no chão de vergonha.Será que o demônio adotou forma de gente?”. 
Como forma de resistência, começou a esconder fugitivos, a fornecer comida e documentos falsos. Salvou tantos quanto pôde. Mesmo as cartas enviadas à família já seriam suficientes para condená-lo à morte, mas mesmo assim ele continuou praticando o bem até ser preso pelos russos.  Apesar dos apelos de muitas pessoas que tiveram sua vida salva por ele, Stalin não abrandou sua pena, condenando-o a 25 anos de trabalhos forçados, praticamente uma condenação à morte na União Soviética stalinista. Ele morreu em 1952, num campo de prisioneiros, aos 57. 

Sua vida demonstra que, mesmo para os que estavam diretamente envolvidos com o regime, havia como fazer algo para evitar o massacre de pessoas. 

Superman e a Legião dos Super-heróis

 


O roteirista Geoff Johns e o desenhista Gary Frank foram responsáveis por uma das fases mais interessantes do Homem-de-aço em época recente. Foram histórias que se tornaram imediatamente clássicas. E o melhor dessa fase foi o encontro do Superman com a Legião dos Super-heróis.
Na história, Superman recebe um pedido de socorro e uma cápsula do tempo enviadas por brainiac 5. Ao viajar para o século 31, o herói descobre que a Terra se tornou uma distopia. Membros rejeitados pela Legião se uniram, formando a nova Liga da Justiça, e transformaram o planeta numa ditadura xenofóbica. Mas a ida do Homem de aço para o futuro pode ter sido um erro: o sol se tornou vermelho, tirando boa parte de seus poderes. Se o herói morrer no futuro, o que pode acontecer com a realidade?

Geoff Johns usa como fio motor da história o fato de grande parte da Legião ser formada por extraterrestres e cria uma metáfora política. Assim, a nova Liga introduz uma cruzada contra extraterrestres, aprisionando-os ou simplesmente levando-os ao exílio. Mas há um problema aí: no futuro a figura do Superman é simplesmente idolatrada pela população. Como adequar isso a essa campanha? Inventando que o Homem de aço não veio de Kripton, mas nasceu na Terra e lutou a vida inteira contra alienígenas, incluindo Ajax, o caçador de Marte. Ou seja: criam uma campanha xenofóbica a partir de uma fake News.
O prelúdio da história é genial: um casal vê seu planeta ser destruído e envia seu único filho ao planeta Terra. Aqui a nave é encontrada por um casal de lavradores, que simplesmente mata o bebê. Essa sequência, além de ecoar a própria origem do super-homem, também mostra o quanto a realidade foi alterada a partir do boato criado pelos vilões.
Outra grande sacada foi a percepção de que os membros rejeitados da Legião o foram não apenas por não dominarem seus poderes, mas por terem problemas de caráter, como tendências psicóticas. Aliás, o trecho que mostra a nova Liga detalha isso: são obcecados por poder, depravados, têm ódio por terem sido rejeitados.
Geoff Johns maneja muito bem tanto esses momentos barra-pesada quanto os momentos idílicos, como os flash backs que mostram o primeiro encontro do Superboy com a Legião. Aliás, ele é um dos roteiristas que melhor entenderam o Homem de aço e o que ele representa.
Já o desenho de Gary Frank é simplesmente encantador. Ele caracteriza o Superman exatamente como Christopher Reeve no antológico filme da década de 1980, o que, por si só já agrada aos fãs. O mesmo vale para sua representação da Legião: é soberba, especialmente nas cenas em aparecem muitos personagens.

Desespero, de Stephen King

 

Acabei de ler Desespero, de Stephen King. Não é o melhor do mestre, mas King, mesmo que quando é ruim, é muito melhor que a maioria dos escritores comerciais.
A trajetória desse autor é interessante: na década de 1970 ele escreveu alguns romances bons, como O IluminadoZona Morta e Carrie. Essa fase terror teve seu auge no livro Cemitério, que provavelmente é o livro mais apavorante já escrito. Mas o auge mesmo foi no início dos anos 1990, com o livro Corredor da Morte, hoje chamado de À espera de um milagre por causa do filme, um belo livro cujos elementos fantásticos só servem para destacar a humanidade dos personagens.
Dali em diante, ele parece estar pendendo mais e mais para a fantasia e perdeu muito do charme que tinha antes. Seu enredos se tornaram fantasiosos demais, no meu entender. O que poderia ser uma história de violência doméstica com toques de terror, em Insônia, vira uma batalha campal entre o bem e o mau.
Desespero segue essa linha mais fantasiosa, em que o fantástico toma mais espaço que a caracterização dos personagens (o que dificulta ao leitor criar empatia com os mesmos). Mas ainda assim é um livro gostoso de ler. Impossível de parar de ler parece ser um adjetivo que foi grudado na testa de King e esse livro não foge à regra.
Desespero é uma pequena cidade mineira nos EUA. Quando um casal passa por um placa onde há um gato morto pregado, esse é apenas o prenúncio que virá. Eles são em seguida parados por um policial imenso, que mata o homem e prende a mulher. Para quem começa a ler, parece apenas uma história de psicopata, mas depois se percebe que há muito mais coisas em jogo, com entidades ancestrais e malignas envolvidas. A narrativa vai retornando no tempo e contando a história de todas as outras pessoas que estão presas com Mary. Entres eles a família Carver, cujo garoto David é o personagem mais consistente de todo o livro, embora seja também o mais fantástico. David encontrou Deus ao rezar para um colega que sofreu um acidente, e esse encontro vai ser fundamental na trama.

Desespero não é só um livro de terror, é também uma obra sobre crença e descrença, sobre como as pessoas deixaram de acreditar em algo maior e o vazio que isso deixou em suas vidas.

Mesmo quando escreve algo puramente comercial, King ainda tem algo a dizer.

Hulk no divã

 


Colocar Bruce Banner, o Hulk e o Hulk cinza numa sessão de psicoterapia. Essa ideia maluca e revolucionária saiu da cabeça de Peter David e poderia ter se transformado num tremendo fiasco, mas se tornou num grande momento do personagem graças ao bom trabalho do roteirista.

A história, publicada em The incredible Hulk 376 e 377 começa com Bruce Banner simplesmente entrando em pane enquanto dentro de sua cabeça o Hulk verde e o Hulk cinza brigam. No mundo real, isso se reflete numa transformação bizarra, um ser que é uma mistura dos três.

Quando a situação se acalma e Banner é levado para um hospital, Doc Sanson, o herói psicólogo, hipnotiza Banner e começa uma sessão de psicoterapia para entender o que realmente está acontecendo dentro da mente do cientista e suas contrapartes monstruosas.

O eixo da história é uma sessão de terapia com Banner e os hulks. 


Aí Peter David aproveita um gancho deixado pelo roteirista anterior, Bill Mantlo (que, segundo alguns, teria roubado a ideia do desenhista Barry Smith). Nessa visão, quando era criança, Bruce Banner sofreu abusos por parte do pai e, em consequência disso, desenvolveu múltiplas personalidades. O problema é que a radiação gama transformou essas personalidades em monstros reais: o Hulk e o Hulk cinza. Essas contrapartes já existiam em sua mente, mas não eram exterioriorizadas. Diante dos traumas, o pequeno Banner se fechou em si mesmo, incapaz de revelar emoções. Assim, o Hulk cinza é a sua contraparte extrovertida, mulherenga, grosseira. Já o Hulk verde é o ódio explosivo que ele sente dentro de si – o que explica porque, com quanto mais raiva o personagem fica, mais forte ele se torna.

O interessante aí é que Peter David e o desenhista Dale Keown acharam uma forma visualmente interessante para mostrar esses conflitos internos. Os conflitos de personalidade são mostrados como lutas entre os hulks. O pai é mostrado como um monstro gigante com uma fileira de dentes assustadores.

Quem diria que uma sessão no divã poderia se tornar uma tremenda história de super-herois.

Fundo do baú - Os Quatro Fantásticos

 


Os Quatro Fantásticos (Fantastic Four, no original) foi um desenho animado produzido pela Hanna-Barbera Productions em 1967.  O desenho tinha visual do famoso desenhista Alex Toth. No Brasil o grupo já era conhecido como Quarteto Fantástico, mas o tradutor ignorou os quadrinhos e apelidou o grupo como 4 fantásticos. Na década seguinte, a editora RGE, para tentar aproveitar o sucesso do desenho e nomeou a revista dos personagens com o nome de Quatro fantásticos. Quando os direitos passaram para a editora Abril, os personagens voltaram a formar um Quarteto.
Essa série de 1967 é famosa por ser muito fiel aos quadrinhos de Jack Kirby e Stan Lee. Foram 20 episódios que se tornaram clássicos.
Dez anos depois o canal CBS lançou um novo desenho do quarteto, mas agora sem o Tocha Humana, que foi substituído pelo odiado robô Herbie. As razões para isso parecem ser duas: 1) havia planos para um seriado solo do Tocha humana; 2) os executivos tinham medo que as crianças resolvessem colocar fogo no corpo para imitar o personagem. Durou apenas uma temporada, lembrada com tristeza pelos fãs.

Construindo um estilo

Sandman foi um dos quadrinhos que mais me influenciaram no início de carreira. 

Na prática da escrita não existem gênios que surgem do nada, com um estilo próprio e revolucionário. Todo grande escritor é fruto de suas leituras. Todo grande escritor se assenta sobre os ombros dos que vieram antes dele. Só para citar um exemplo mais famoso: O nome da Rosa, de Umberto Eco é o resultado de uma série de influências, entre elas, principalmente Conan Doyle (o nome do protagonista, Guilherme de Barskerville, é uma referência direta a um dos romances de Sherlock Holmes) e Jorge Luís Borges (o nome do vilão, Jorge, é uma homenagem direta ao escritor argetino).

Na verdade, o estilo de um escritor é o resultado de suas influências literárias em conjunto com sua experiência de vida. Essa sopa, bem temperada, dá origem às grandes obras.
Isso não significa copiar um autor, mas absorver um pouco de vários e digerir essas influências misturando-as com suas próprias experiências pessoais. Com um autor você pode aprender narrativa, com outro diálogo, com outro a forma de lidar com as elipses quadrinísticas, com outro a estrutura da trama... cada um tem algo a nos ensinar.
Quando comecei a escrever quadrinhos durante algum tempo tive uma produção prolixa, já que a editora Nova Sampa, para a qual eu trabalhava, comprava praticamente tudo que eu escrevia. Isso me permitiu fazer um exercício que recomendo a todos novos autores: fazia histórias imitando o estilo deste ou daquele roteirista. Em uma HQ seguia o modo de escrever de Neil Gaiman, em outro, o de Grant Morrison e em outro, o de Alan Moore (só para citar os que mais me influenciaram). Para fazer isso eu precisava estudar o estilo de cada um para fazer a “história homenagem”.
Acabei gostando da brincadeira e produzi um fanzine literário, Ideias de Jeca-tatu em que, a cada número publicava a biografia de um escritor e um conto-homenagem no estilo dele. Foram homenageados Monteiro Lobato, Machado de Assis, Edgar Allan Poe, entre outros. Com cada um eu aprendia algo, fosse o humor lobatiano, o clima poético de Poe, o sarcasmo sutil de Machado.
Ao final, meu próprio estilo foi se definindo. Um estilo que não era uma imitação de nenhum desses escritores ou roteiristas, mas uma mistura de todos eles, uma sopa antropofágica da qual emergiu minha própria maneira de escrever e bolar tramas. 

Demolidor – Desmascarado

 


No número 163 da revista do Demolidor, o herói enfrentou o Hulk e ficou gravemente ferido. O número 164 mostraria a convalescência do personagem. Seria uma edição morna, desinteressante, mas o talento de Roger McKenzie e Frank Miller transformou essa hq numa das mais memoráveis do personagem, lembrada com carinho pelos leitores que a leram em superaventuras Marvel 3.

A história começa com vários heróis, como os Vingadores, fazendo uma visita ao enfermo no hospital. É quando um homem irrompe no quarto, apesar dos protestos dos enfermeiros. É o repórter Ben Urich, que pede para falar em particular com o Demolidor.

Aqui temos uma daquelas sequências geniais de Miller.

Da negação à confissão. 


O repórter diz que quer ajuda com uma história, a história de um garoto cego que superou suas deficiências para se tornar um advogado famoso e um herói, um homem sem medo.

O Demolidor nega imeditamente a relação, mas Ben coloca diante dele uma foto: “Se você não é matt murdock nem é cego, descreva essa foto para mim”.

Então vemos seis quadros verticais em tanto as falas quanto os gestos do personagem vão mudando. “Ora, bem, deixe de brincadeiras. É claro que não sou matt murdock! Além do mais, eu não tenho que provar nada para você. Isso tudo é um absurdo! Isso tudo é... verdade!”

A edição reconta a origem do personagem. 


Texto e imagem se unem numa sequência que funciona perfeitamente e mostra como o herói muda da negação inicial à confissão.

Essa trama é usada como desculpa para recontar a história do surgimento do Demolidor, que se tornou cego num acidente de trânsito e se transformou em herói para vingar seu pai boxeador assassinado pela máfia após se recusar a perder uma luta.

A estratégia não era novidade. A Marvel tinha como prática de tempos em tempos fazer uma edição apresentando os personagens para novos leitores. A novidade aí está na forma como isso foi feito.

Miller presta uma homenagem... 


Provavelmente a sequência de maior destaque dessa história seja de quando o Demolidor, em sua primeira aparição, persegue o mafioso responsável pela morte de seu pai. Miller presta uma homenagem a um dos seus ídolos, Bernie Krigstein, que, na década de 1950 publicou na DC comics a antológica história Raça superior, na qual um nazista é perseguido por um judeu sobrevivente de campo de concentração no metrô de Nova York.

... ao ídolo Krigstein. 


Miller não só coloca a sequência no metrô, mas imita, quase quadro a quadro uma das cenas da história de Krgstein, colocando outros elementos, como uma a representação gráfica dos batimentos cardíacos do mafioso, que reflete os sentidos do Demolidor.

Não se trata de cópia, mas de um mestre homenageando outro mestre.