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sábado, agosto 30, 2025

A margem negra

 

 

Em 1989 eu era estudante de comunicação na Universidade Federal do Pará e procurava material para um trabalho sobre história em quadrinhos. Iríamos apresentar um seminário sobre meios de comunicação e o professor responsabilizara meu grupo para falar sobre HQs. Isso seria impensável em qualquer época que não fosse o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990. Antigamente por conta do enorme preconceito e atualmente porque os quadrinhos se tornaram um nicho, com baixas tiragens e vendas segmentadas. Mas na época todo mundo lia quadrinhos. Séries como V de Vingança eram lidas mensalmente e comentadas nos corredores da universidade da mesma forma como hoje se discute séries de grande impacto, como Guerra dos Tronos.

Todo mundo estava falando de quadrinhos, mas precisávamos de algo diferente para a apresentação. Foi quando alguém me disse que no bloco de Artes, ao lado do nosso, havia um rapaz, Bené Nascimento, que trabalhava profissionalmente como desenhista, publicando em editoras de São Paulo. Um paraense fazendo quadrinhos era a novidade das novidades na época e fiz questão de entrevistá-lo. A entrevista, que deveria durar meia-hora, durou a tarde inteira (e os dois perdendo aula, claro) e, no final, um convite de Bené: que tal fazer um fanzine de quadrinhos? Assim surgiu "Crash!", o primeiro fanzine paraense dedicado exclusivamente aos quadrinhos.

Estávamos na produção do segundo número quando Bené chegou com os originais de uma belíssima história, toda arte-finalizada com pincel. Desenhada no estilo Hall Foster (autor do Príncipe Valente) a HQ mostrava um cavaleiro medieval livrando uma floresta de um demônio.

- Gostou? - perguntou Bené.

- Claro.

- Quer colocar o texto?

Aceitei na hora. "Floresta Negra" foi o primeiro roteiro que escrevi, um caminho bastante curioso, já que não era de fato um roteiro. Foi também o primeiro roteiro publicado, na saudosa revista Calafrio.

A partir dali surgiu uma parceria que se estenderia por vários anos e mexeria com o jeito como se fazia quadrinhos de terror no Brasil.

O quadrinho de terror ganhou grande força no Brasil na década de 1960, quando os gibis da editora EC Comics foram proibidos nos EUA. As revistas que publicavam essas histórias tinham grande público aqui e não havia mais material inédito. A solução foi recorrer aos quadrinistas brasileiros e assim surgiu a era de ouro do terror nacional.

Mas a estrutura narrativa daquela época se tornou uma espécie de camisa de força para os artistas. Tirando alguns quadrinistas mais renomados mais renomados, como Mozart Couto, a maioria seguia os cânones do terror década de 60 que tinha inclusive algumas histórias básicas, como da pessoa má que apronta todas as malvadezas possíveis durante toda a HQ e no final os mortos voltam para se vingar. 


O quadrinho que fazíamos era bem diferente disso. Influenciados por séries como Sandman, Monstro do Pântano e Hellblazer (John Constantine) e autores como Alan Moore e Neil Gaiman, fazíamos um terror pesado. Bené caprichava nas vísceras e, da parte do roteiro, os personagens eram sempre perseguidos por traumas e pavores. Ou seja: era uma mistura de terror trash com horror psicológico. Em uma das histórias, por exemplo (uma adaptação do conto "O nariz", de Gógol), um personagem capaz de despertar os maiores medos das pessoas próximas entra num hospício e ocasiona um surto de pavores secretos.

Essa abordagem visceral inicialmente não agradou os editores da época. A história "Puritano", por exemplo, está até hoje inédita: foi recusada por todos os editores da época, talvez por envolver questões religiosas. Uma das histórias, "Noir", só foi publicada porque a assistente de edição levou o original para o dono da editora e insistiu que saísse na revista. 


Mas com o tempo fomos ganhando público. Uma editora chegou até mesmo a encomendar uma revista com histórias nossas e de quadrinistas que tinham um estilo semelhante. Levamos semanas para conseguir reunir o material para fazer uma boneca (para que não é do meio editorial, boneca é uma prévia de como irá ficar a revista). Não aconteceu por causa da incapacidade de Bené de dizer não: um primo o visitou e pediu a boneca emprestada, levou para casa e... perdeu no ônibus!

A maioria das revistas nas quais publicávamos eram vendidas ensacadas, o que nos criava um problema. Não havia o costume atual de indicar na capa as histórias e os autores, de modo que nunca sabíamos se a revista tinha história nossa ou não. Assim, tivemos a ideia de colocar uma margem negra nas páginas. Isso permitia pudéssemos perceber se havia histórias nossas sem nem mesmo abrir o volume. Inadvertidamente isso se tornou uma estratégia de marketing: os fãs da dupla passaram a também procurar as margens negras nas revistas. 

domingo, junho 08, 2025

As melhores capas de Conan

 


Uma das características das publicações de Conan no Brasil, em especial a revista em preto e branco A espada selvagem de Conan, eram as ótimas capas. Tão boas que se torna difícil escolher as melhores. Mas fiz uma seleção de algumas que considero que são essenciais. Espero que gostem.











sábado, janeiro 18, 2025

Os X-men e o fim da infância

 


Mitos sobre o fim da infância existem há muito tempo e descrevem o processo pelo qual passa um garoto do início da puberdade até a idade adulta. Eles, de certa forma, indicam o caminho para que esse processo ocorra de maneira normal e sem grandes choques.


Vejam, por exemplo, o mito do cavaleiro. Todos nós já ouvimos histórias sobre um cavaleiro andante que, tendo nascido de maneira obscura e humilde, abandona o lar em busca de aventura. Ele enfrenta perigos, mata dragões e, finalmente, é recompensado por sua bravura com um trono e uma bela princesa.
A explicação do mito é dada por Anthony Stoor, no livro As idéias de Jung:

"Todos nós começamos a vida como crianças impotentes. Todos temos de nos emancipar dos pais e outros adultos, e enfrentar independentemente a vida e seus desafios. Se não conseguirmos, nunca atingiremos uma posição no mundo (trono) nem alcançaremos suficiente maturidade sexual para conquistar uma companheira (a bela princesa). Pelo contrário, seremos destruídos pelo dragão; e todos conhecemos, uma família pelo menos, em que o filho foi destruído pela mãe-dragão, de quem não conseguiu emancipar-se". (embora a maioria das análises desse mito seja sobre meninos, é possível que ele possa ser usado também para explicar o processo de amadurecimento das meninas).



Da mesma forma, os mitos modernos encontrados nos quadrinhos e nos desenhos animados falam sobre o mesmo processo psicológico.

Um dos meus mitos prediletos é o dos X-men. A equipe é toda formada de jovens (e quando os membros da primeira geração ficaram adultos, os roteiristas providenciaram uma nova geração, chamada de Os Novos X-men).
Todos eles abandonam suas famílias para fazerem parte dos X-men. Isso fica muito visível no caso da Kity Pride. Quem leu a saga da Fênix percebeu o quanto o processo de separação dos pais foi traumático para a menina. Mas ela sobreviveu e tornou-se uma heroina.

Nenhum herói vira herói debaixo da barra da saia da mãe.

Mas, claro, muitos ficam na dúvida. A vida de criança é cheia de alegrias e livre de responsabilidades e perigos.

O Homem-aranha mostra bem esse conflito. Se dependesse da Tia May, ele nem mesmo sairia na chuva. O herói vive esse dilema: uma parte dele quer obedecer a Tia May e continuar criança para sempre. A outra quer enfrentar os problemas do mundo e tornar-se adulto. Um ícone perfeito desse dilema é o famoso desenho do Steve Ditko, mostrando o rosto do personagem dividido entre Peter Parker e o Homem-aranha.
Mas eu disse que gosto mais do mito dos X-men. E isso acontece porque ele nos ensina que não precisamos enfrentar o dragão sozinhos. Podemos unir nossas forças em torno de um grupo com um objetivo comum. O grupo nessa fase é essencial. Ele permite que as pessoas possam usar suas habilidades de forma complementar, tornando-se mais fortes. O Cíclope e o Wolverine podem parecer completamente opostos, mas os dois formam contropontos importantes para o equilíbrio do grupo. Wolverine é impetuoso e agressivo. Cíclope é calculista e racional. Um grupo formado só de Wolverines se mataria no primeiro dia. Um grupo formado só de Cíclopes seria uma chatice só. O grupo é também uma forma de ensinar que as diferenças são positivas e devem ser não só toleradas, como também aproveitadas para o bem comum.


Na saga da Fênix Negra vemos o processo de amadurecimento de Kitty Pride. 


Como já foi dito, o adolescente precisa quebrar o vínculo com pais para tornar-se adulto. Por isso o grupo X-men é formado apenas de adolescentes. O único adulto é o professor Xavier. Ele faz o papel do ídolo, do guia, mentor, do pai substituto.

Quando a criança "sai da casa paterna" (metaforicamente falando), cria-se um vácuo. Antes os pais eram o modelo de comportamento. Eram o guia, que dizia o que era certo e o que era errado, o que valia e o que não valia. Na sua ausência, são substituídos pelos ídolos.

Todo adolescente tem um ídolo. As meninas costumam tomar como ídolos cantores ou atores famosos. Os garotos podem ter como ídolo um rapaz mais velho, ou um personagem de quadrinhos, ou até um cientista famoso. O importante é que ele pareça sábio e confiável e apresente um padrão de comportamento a ser imitado. O ídolo se torna um novo guia, em substituição à figura dos pais (depois da adolescência os ídolos deixam de ter tanta importância e costumam ser abandonados).

Seguir um falso ídolo pode ser perigoso. Há garotos que tomam como ídolos marginais famosos e isso faz com que seus padrões de comportamento sejam completamente distorcidos. Isso é facilmente perceptível no filme Cidade de Deus, em que os traficantes se tornam o padrão a ser seguido pelas crianças.

Nos X-mem o falso ídolo é representado pelo Magneto. Ele reúne em torno de si jovens que não tiveram discernimento o bastante para perceber a diferença entre o certo e o errado.

O professor Xavier é, portanto, a figura que substitui a presença dos pais, orientando os jovens heróis.

Não quero que pensem que essa interpretação pode ser feita apenas a partir de histórias de super-heróis. A cultura pop está repleta de mitos sobre o fim da infância. O desenho animado A Caverna do Dragão é um ótimo exemplo. Ali as figuras arquétipicas são tão palpáveis que podemos reconhecê-las facilmente. Temos a separação dos pais (a ida para um outro mundo), os perigos, o grupo e o guia (o mestre dos magos). Eles precisam enfrentar as provas que se apresentam e sua volta à terra é condicionada ao enfrentamento desse perigos.

Até os seriados japoneses apresentam essa textura. Digimon, por exemplo, é muito semelhante à Caverna do Dragão.

Esses mitos, facilmente encontráveis nos meios de comunicação de massa, são verdadeiros manuais, que ajudam a criança nesse processo que culminará na vida adulta. Depois de algum tempo, eles são substituídos por mitos mais adultos, como é o caso das histórias em quadrinhos Sadman e Monstro do Pântano.

segunda-feira, janeiro 13, 2025

Histórias que não estavam no gibi

 

Sônia Hirsch - foto do site da escritora


Sônia Hirsch é escritora, autora de livros como o “Só Para Mulheres”ou o “Manual do Herói”. Mas para os fãs de quadrinhos ela é, antes de tudo, uma das protagonistas de alguns do melhores momentos da Nona Arte em nosso país. Na década de 70 ela foi editora de quadrinhos da RGE, a atual editora Globo. Ela participou de grandes momentos, como o relançamento da revista Gibi Semanal – uma revista tão importante que acabou virando sinônimo de história em quadrinhos. 
Em 2001, quando tinha uma coluna no jorna O Liberal Amapá eu a entrevistei para a coluna. Ela foi muito simpática e solícita, respondendo a todas as perguntas por e-mail. Acho que, mesmo depois de tanto tempo, vale a pena republicar essa entrevista, especialmente por seu caráter histórico. Atualmente, Sônia é escritora, com diversos livros publicados.Quem quiser conhecer melhor o trabalho de Sônia pode visitar o seu site, o Corre Cotia (www.correcotia.com).

Como você entrou no mundo dos quadrinhos?
Sônia Hirsch: Nunca pensei em trabalhar com histórias em quadrinhos, até o dia em que Paulo Patarra, assumindo a direção geral da Rio Gráfica Editora (hoje Editora Globo), me chamou. Preciso de você, ele disse. Mas não entendo nada de quadrinhos, respondi. Pois vai começar a entender, atalhou ele. E foi assim que entrei numa grande aventura onde HQs eram os personagens principais. A sala transbordava de pranchetas, desenhistas, letristas, coloristas. Dali saíam Fantasma, Mandrake, Cavaleiro Negro, Recruta Zero, Riquinho, Bolota, Brotoeja e mais vinte e tantos títulos menos conhecidos.

O material já vinha todo pronto? Sônia Hirsch: Algumas, como Riquinho e similares, já vinham até com as provas de seleção de cores, era só traduzir e escrever nos balões. Mas a maioria era feita a partir de tirinhas diárias para publicação em jornal que ganhavam a chamada "completação", arte que, presumo eu, seja brasileira por excelência, já que seguia o princípio de "dar um jeito". Isto porque a história original era desenhada para durar 2 a 3 meses no jornal, portanto se desenrolava ao longo de, digamos, 70 tirinhas, 6 por semana, e a de segunda-feira resumia um pouco o que estava acontecendo. Essas repetições eram as primeiras a sumir. Aí o leiautista começava a recortar os desenhos para formar quadrinhos de acordo com o formato da revista. Na tirinha eles são menores, na revista tinham que crescer. Então, vamos supor que, no original, o Fantasma estivesse perto de uma janela; na revista, a tesoura o punha a um metro de distância, e tudo bem. Abria-se o quadrinho, completava-se com desenhos novos o cenário faltante, e pronto. Daí, às vezes, surgia um vaso, uma árvore, uma mesinha, um lustre, sempre tratando de acompanhar o estilo e o traço do autor. A arte-final em papel couché era um misto de colagens com desenhos em nanquim. No final entravam os balões.

As revistas vendiam bem?
Sônia Hirsch: Algumas revistas vendiam tão pouco que mal se pagavam, e o encalhe era grande, mas continuavam circulando assim mesmo. Mandrake estava nesse caso. Outras, como Recruta Zero e Riquinho, davam algum dinheiro.

Então porque a editora continuava a publicar os títulos que vendiam pouco?
Sônia Hirsch: Porque o Roberto Marinho era grato a elas. Dizia que o tinham feito crescer, que com o lucro dos anos de ouro (creio que nas décadas de 40 e 50) ele comprou várias propriedades importantes.

Como surgiu a idéia de fazer o Gibi Semanal?
Sônia Hirsch: Eu gostava de conversar com Walmir, grande desenhista, ele próprio um herói de HQ com seus óculos escuros, cabelo grande, costeletas amplas e um fusquinha que não trocava por nada no mundo. Ah, e sandálias: não gostava de usar sapatos. Um dia me levou ao reino encantado da RGE: o arquivo. Ali me apresentou ao tesouro das histórias antigas, originais, publicadas pelo Gibi. Foi onde tivemos a idéia de fazer uma publicação semanal só com originais, o Gibi Semanal O Gibi foi o momento máximo da minha aventura lá. Eu continuava não entendendo grande coisa de HQ, mas curtia muito e contava com a boa vontade de todo mundo. O professor Alvaro de Moya me ajudou sempre, empolgado e dedicado, acho que nunca agradeci o suficiente.

 Por que o Gibi Semanal acabou?
Sônia Hirsch: A distribuição e o marketing da RGE eram muito ruins. O Gibi Semanal não durou um ano. Lá pelo número 35 eu já estava tão frustrada que chorava pelos corredores, e foi aí que propus pararmos no 40.

A revista do sítio do pica-pau amarelo marcou toda uma geração de leitores. Qual foi a sua participação nela?

Sônia Hirsch: Quando surgiu o projeto da série na TV já havia por parte da Globo a idéia de fazer as revistinhas, e nós da RGE queríamos muito produzir quadrinhos nacionais. Montamos um estúdio de quadrinhos para esse fim, de onde saíram também revistinhas da série A Vaca Voadora e um projeto que envolvia o Jô Soares, "JoComix" , que era muito engraçado mas não foi à frente (o responsável por este projeto era o Claudio Paiva).
O início do Sítio foi muito enrolado porque precisávamos submeter todos os desenhos a discussões intermináveis, mas finalmente chegamos ao traço final. Muitas pessoas participaram da criação, já não me recordo exatamente dos que trabalharam mais, prefiro não citar nomes para não errar.

Era uma grande responsabilidade adaptar a obra de um dos maiores escritores infantis do mundo para os quadrinhos? Como a equipe enfrentava esse desafio?

Sônia Hirsch: Com muito empenho e muita leitura da obra original. Na verdade não foi adaptação: criávamos situações novas aproveitando as características de cada personagem.

quinta-feira, outubro 24, 2024

Astrologia divertida, de Will Eisner

 

Astrologia divertida foi uma graphic novel publicada pela editora Globo no início da década de 1990 assinada por Will Eisner. Ficou pouco conhecida do público de quadrinhos por um equívoco dos donos de bancas: a maioria colocava a obra no meio das revistas de astrologia, e não junto com os quadrinhos.
Independente de acreditar ou não em astrologia, a obra é uma ótima leitura. Eisner dá uma verdadeira aula de quadrinhos, mostrando como é possível repassar qualquer conhecimento de forma divertida.
Deixo com vocês algumas páginas. Quem quiser baixar, basta clicar aqui.
















terça-feira, outubro 15, 2024

O processo de produção da Turma da Tribo

 

Turma da Tribo é um projeto meu, selecionado no edital de Literatura Simãozinho Sonhador, com desenhos de Ricardo Manhães.
Desde que começamos a divulgar imagens do gibi, algumas pessoas têm me perguntado como te sido o processo de produção. O objetivo deste artigo é justamente responder a essa pergunta.
Tudo começa, claro, com a elaboração de personagens e ambientação. Tenho inveja de quem diz que cria rapidamente. Para mim esse processo costuma ser demorado e trabalhoso, assim como a elaboração da sinopse. É normal que eu escreva e reescreva nessa fase. No primeiro tratamento da Turma da Tribo, por exemplo, a história se passava no Brasil colonial. Desisti dessa abordagem porque ela não me permitiria tratar de temas contemporâneos, como os madereiros, tema do primeiro gibi. Da mesma forma, alguns personagens passaram por mudanças e até mesmo mudaram de nome. Como uma das referência era Asterix, eu procurei nomes tivessem uma pitada de trocadilho, como Toró, personagem musculoso cujo remete a chuva forte.
Eu aumento ou diminuo o nível de detalhes do meu roteiro de acordo com o desenhista. Com iniciantes costumo ser mais detalhista. Como eu sabia que o desenho seria do Ricardo Manhães, um veterano do quadrinho europeu, fiz um roteiro bem minimalista, até porque durante todo o processo de produção trocamos vários e-mails e fizemos várias mudanças, tanto nos desenhos quanto no texto. Reparem, por exemplo, que na primeira página mudamos a legenda do último quadro para evitar a palavra "inventor", já que "inventar" já havia aparecido antes no mesmo quadro.
Feito o roteiro, o Ricardo faz, à mão, o lápis, depois a arte-final (tinta preta) e finalmente a cor no computador.
Confira abaixo o roteiro e as páginas.


Página 1

Quadro 01 – Plano geral da tribo, lembrando aquelas imagens de abertura dos álbuns de Asterix. Título e créditos neste quadro.
Texto: Esta é a aldeia dos cunani. É uma aldeia muito diferente, com personagens muito interessantes.
Texto: Vamos dar uma olhadinha neles.

Quadro 03 – Abaeté, todo orgulhoso, estufando o peito. Ao lado dele, entrando no quadro, vemos Baquara.
Texto: Este é Abaeté, o chefe da tribo. Um homem honrado, de palavra.
Abaeté: Pode escrever. Sou um homem de palavra! Minhas palavras.

Quadro 04 – Baquara entrou no quadro e agora divide atenção com o chefe. Ele começa a escrever palavras num papel.
Baquara: Tive uma ótima idéia! Vou inventar a escrita invisível!
Texto: Este é Baquara, o inventor da tribo, e filho do chefe.


sábado, outubro 05, 2024

Os quadrinhos e o castelo do Graal

 No livro HE, o psicólogo norte-americano Robert Johson explica a psicologia masculina através do mito da busca do Santo Graal. O personagem principal é o jovem Percival, um cavaleiro da Távola redonda.


Certo dia, durante suas andanças, ele entrou em um castelo belíssimo e imponente. Era ali que estava o Santo Graal, o cálice usado por Jesus durante a última ceia.
Todos o recepcionaram muito bem e ele se sentiu feliz e maravilhado com os poderes do Graal. O cálice podia, por exemplo, fazer surgir a comida que o convidado desejasse. E podia também curar qualquer ferida.

Na manhã seguinte, quando acordou, ele não encontrou mais ninguém no castelo. Estava completamente abandonado, e ele teve de ir embora.
Percival passaria o resto de sua vida tentando encontrar novamente o castelo do Graal.
Para Robert Johnson, o episódio é uma metáfora de algo que ocorre com todos os jovens durante a fase da pré-adolescência.
Essa é uma fase particularmente difícil, pois o menino não é mais uma criança, mas ainda não é adulto.
Todos os meninos entram no castelo do Graal ao menos uma vez na vida e essa experiência irá marcá-los pelo resto da vida. Assim como Percival, eles passarão o resto da existência tentando voltar para o castelo.
O que tudo isso tem a ver com quadrinhos?
Pare para pensar. Se tem mais de vinte anos e continua gostando de quadrinhos é porque há uma boa lembrança associada a eles.
Em outras palavras: muitas pessoas - e eu entre elas - entraram no castelo do Graal graças aos quadrinhos.
Tenho conversado leitores de gibis e todos eles têm algum episódio semelhante ao de Percival.
José Aguiar, desenhista da Manticore, saía de casa todos os dias de manhãzinha com sua bicicleta e ia direto para um sebo próximo de sua casa, onde ele comprava ou trocava gibis.
Essa experiência o marcou profundamente e eu não tenho dúvida nenhuma de que esse foi um dos fatores que o influenciaram a se tornar desenhista.

Lembro que quando estávamos na sétima série a revista preferida de todos era a Superaventuras Marvel. Nós sabíamos a data em que ela chegava nas bancas e saíamos correndo para ver quem chegava primeiro.
Como tinha pouco dinheiro para comprar gibis, eu usava de um estratagema. Eu conhecia um sebo que ficava próximo da Igreja e que vendia revistas a preço de banana. Eu passava lá todo Domingo e comprava as Heróis da TV, que uma amigo da escola colecionava. Depois eu vendia para ele, pelo dobro do preço, mas antes eu lia e relia a revista e esses momentos eram tão sagrados que me faziam esquecer a chateação que era ser obrigado a ir à igreja.
Aquela experiência - comprar a revista e nem esperar chegar em casa para começar a lê-la - era uma verdadeira entrada no castelo do Graal.
Só com a saga da Fênix foram centenas de entradas no castelo do Graal, até porque os X-Men, assim como a busca do Cálice Sagrado, são um mito sobre o fim da infância (prometo falar sobre isso em outro artigo).
Cada vez que eu leio uma HQ é como se eu estivesse voltando àquela época mágica da pré-adolescência.
E quando escrevo histórias, fico imaginando que talvez eu esteja proporcionando a outros garotos as mesmas sensações que eu sentia lendo quadrinhos.
É interessante notar que o tipo de quadrinho que você lê na pré-adolescência vai influenciar seu gosto pelo resto da vida.
O desenhista Antonio Eder odeia super-heróis. Também, pudera: ele passou toda a pré-adolescência lendo revistas Kripta e nesse período nunca botou os olhos num gibi de super-heróis.
O desenhista Bené Nascimento (Joe Bennet) passou essa fase lendo HQs do Jack Kirby. Hoje ele compra qualquer coisa sobre o velho Jack, até caríssimos fanzines importados.
Pare um instante e pense. Se você gosta de quadrinhos, é bastante provável que você tenha, em algum momento, entrado num castelo do Graal feito todinho de histórias em quadrinhos.

quarta-feira, outubro 02, 2024

Como a Marvel deixou de ser a Casa das Ideias

 

Guerras Secretas foi o ponto de virada que fez com que a Marvel deixasse de ser a Casa das Ideias. 

Quando a Marvel surgiu, era apenas um quarto num prédio de apartamentos em Nova York, com Stan Lee e uma secretária. Enquanto isso, a DC era colosso, uma empresa de sucesso com vários funcionários. Mas a qualidade do trabalho do trio Lee-Kirby-Ditko iria aos poucos fazer a Marvel vender cada vez. A virada aconteceria na chamada Era de Bronze, na década de 1970.

 Stan Lee era roteirista e editor das revistas e quando Roy Thomas entrou na editora, no final da década de 1960, a tradição continuou: o roteirista de um título também era o editor do mesmo. E Stan Lee deu um conselho que seria seguido à risca por Thomas: se um título estiver vendendo bem, não interfira, deixe o roteirista/editor com liberdade para produzir suas histórias.

Isso transformou a Marvel numa verdadeira Casa das Ideias e fez com que ela dominasse o mercado.

Enquanto a equipe criativa da DC era composta por um monte de velhos que iam trabalhar de terno, na Marvel a equipe era composta por um monte de hippies cabeludos que ajudaram a revolucionar os quadrinhos e, aos poucos transformaram a Marvel na campeã de vendas.

Conceito revolucionário: Thanos era apaixonado pela Morte. 


Caras como Jim Starlin, Steve Englehart e Frank Brunner andavam por Nova York fumando machonha, tomando LSD e criando histórias revolucionárias.

Jim Starlin aproveitou o conceito de Eros e Thanatos de Freud e criou Thanos, um personagem muito mais interessante que a versão cinematográfica. Nos quadrinhos ele é apaixonado pela morte e quer matar metade da população do universo como uma forma de tributo.

Englehart levou o Doutro Estranho a limites nunca alcançados, com histórias que refletiam diretamente Alice no país das Maravilhas.

O Doutor Estranho ganhou histórias lisérgicas, que brincavam com personagens de Alice no País das Maravilhas. 


Aí veio Jim Shooter e Guerras Secretas.

Guerras Secretas foi totalmente pensada pelo departamento de marketing da Marvel até no título: Guerras e secretas eram as palavras que mais chamavam a atenção nas pesquisas de mercado. Jim Shooter acreditava que mudanças radicais nos personagens aumentariam as vendas – e o departamento de marketing concordava (é famosa a proposta dele de transformar Tony Stark num mendigo – só não foi em frente porque o roteirista não topou).

Se Guerras Secretas tivesse sido um fracasso, tudo continuaria como era antes no quartel de Abrantes. Mas Guerras Secretas foi um sucesso.

Então, pensaram os executivos, o segredo do sucesso era fazer alterações radicais nos personagens e histórias guiadas por pesquisas de mercado (que nem sempre eram feitas com fãs de quadrinhos).

Dessa forma, se as pesquisas mostravam que as pessoas achavam interessante transformar o Capitão América em uma girafa, vamos transformar o Capitão América numa girafa!

Isso também marcou uma mudança na estrutura da Marvel: os roteiristas deixaram de ser editores e perderam controle criativo dos títulos.

Enquanto isso, na DC, os artistas estavam ganhando liberdade total para trabalhar seus títulos. Frank Miller teve liberdade total em Cavaleiro das Trevas e Batman ano um. John Byrne estava tendo liberdade total para reformular o Super-homem. Alan Moore estava escrevendo Watchmen, Monstro do Pântano. Surgiu o selo Vertigo.

Ou seja: embora a Marvel continuasse vendendo bem (principalmente graças ao trabalho feito pelos artistas da Era de Bronze), era a DC que tinha se transformado na Casa da Ideias.

Embora a Marvel tenha tido algumas boas iniciativas de liberdade criativa (como Marvels), a semente plantada em Guerras Secretas continua até hoje: as histórias são pensadas pelo departamento de marketing e pelo impacto que elas provocariam no público, e não por criadores.

Foi assim que a Marvel deixou de ser a Casa das Ideias.