sexta-feira, junho 30, 2023

Fundo do baú - O incrível Hulk

 

 


O incrível Hulk foi um seriado criado em 1977 que rendeu cinco temporadas e três longas metragens. No meio de várias tosqueiras lançadas pela Marvel na época, foi o único seriado de sucesso.
Saquem só a sinopse: Doutor David Banner... Médico, cientista. Em busca da força que todos possuem, acaba recebendo uma dose maciça de raios gama e agora, quando se enfurece ou se sente ultrajado, se transforma e tem de enfrentar a sua maldição: o Incrível Hulk!
Só por aí dá para perceber as diferenças dos quadrinhos. Os produtores acharam que Bruce era um nome gay e lá se foi a aliteração. Além disso, o protagonista virou médico, ao contrário dos quadrinhos, nos quais ele é cientista nuclear.
Na TV, por causa da censura, o monstro verde era pouco violento. Na maioria das vezes ele se limitava a rugir, demolir alguma parede de isopor e sair correndo, não sem antes amassar o revolver de alguém.
Uma curiosidade é que o ator  Lou Ferrigno dificilmente era maquiado por completo. Ele usava, por exemplo, uma sapatilha verde.
Apesar disso, o seriado fez sucesso graças ao carisma do ator Bill Bixby e ao clima de road-movie, com o herói fugindo de cidade em cidade  e assumindo novas identidades. Essa fase chegou até mesmo a influenciar os quadrinhos. Uma curiosidade é que Bill Bixby tinha medo de sua carreira afundar ao protagonizar um seriado de quadrinhos. A forma de convencê-lo a pegar o projeto foi prometer que o seriado, apesar de ser baseado numa HQ, não teria relação nenhuma com os gibis. As propagandas da época inclusive evitam a conexão do seriado com os quadrinhos. 

Livro para baixar A arte dos quadrinhos

 

Já está on-line o e-book A arte dos quadrinhos. O livro reúne os artigos apresentados no III FNPAS com as mais variadas temáticas. Eu colaborei com o artigo SIMULACRO E PASTICHE EM 1963, DE ALAN MOORE. Para baixar o e-book clique aqui

Logan - a despedida de Wolverine

 

O Wolverine foi o símbolo máximo de uma das piores épocas dos quadrinhos de super-heróis. Na década de 1990, a maioria dos heróis se tornaram clones do carcaju: violentos, rasos, cabeça-quente.
Depois de uma fase inicial interessante, nas mãos de Chris Claremont e John Byrne, o personagem se tornou apenas isso: um cara violento, cabeça-quente, que resolve tudo na porrada. E, isso, claro, se refletiu nos filmes do personagem (vale lembrar a introdução do primeiro filme, em que ocorre uma briga imensa por uma pedra que um empresário usava como peso de papel e que ele entregaria tranquilamente se alguém pedisse).
Assim, Logan é uma agradável surpresa por fugir completamente do padrão estabelecido para o personagem e mostrar uma profundidade inesperada.
(ATENÇÃO: SPOILER!)
Nesse novo filme, o Wolverine, muito a contragosto, tem que salvar uma garota que foi clonada a partir de suas células, sendo, de certa forma, sua filha. Agentes governamentais, envolvidos no projeto que criou a menina, farão qualquer coisa para tê-la de volta. Esse plot lembra muito o ótimo A incendiária, um livro pouco conhecido de Stephen King. 
A película é um road movie: à medida em que fogem, a relação entre os dois vai se estabelecendo até culminar na cena de crédito, com a ótima música de Johny Cash. O professor Xavier completa o trio, com alguns dos melhores momentos do filme.
A história tem tudo na medida certa: violência, efeitos especiais (que você mal percebe) e até humor, sempre  resvala no humor ácido.

A terrível vida real de Tom Strong

 

A terrível vida real de Tom Strong é o primeiro volume da série lançada pela Panini escrita e desenhada exclusivamente por convidados. Escritores e artistas receberam uma tarefa inglória: igualar a fase de Alan Moore, explorando aspectos ainda não explorados na série. 
O resultado é irregular. 
No geral, as histórias seguem uma média. Mas dois se destacam, por motivos diversos. 
Ed Brubaker imagina uma realidade na qual Tom Strong não é um herói. 


Steve Aylett e Shawn McManus fazem a pior história da revista. Mal-ajambrada, muitas vezes sem sentido e distantes da proposta do personagem. Personagens irreais surgem do nada e não há preocupação em se criar verossimilhança para eles. Parece alguém tentando imitar Grant Morrison na Patrulha do Destino, mas com o personagem errado.
O melhor exemplo é a história que dá título ao volume, escrita por Ed Brubaker e com desenhos Ducan Fegredo. Nela, usando um artefato maia, um vilão consegue criar uma realidade em que Tom Strong não existe - e o herói se torna um simples operário em um mundo decadente, sujo, repleto de políticos corruptos. É o tipo de história que se encaixa no personagem e a sacada irônica do final é realmente genial.

quinta-feira, junho 29, 2023

Somos todos canibais

 

A figura acima é o quadro Abapuru, obra de Tarsila de Amaral pintada como presente para seu esposo Oswadl de Andade. Abapuru significa "home comedor de gente", em tupi. A imagem levou Oswald a escrever o famoso Manifesto Antropofágico. 
Os dois - quadro e manifesto - eram uma resposta a uma questão antiga, que até hoje ainda gera debates: o que é a cultura brasileira?
Vale lembrar que o manifesto, e de certa forma o modernismo, surge em protesto contra a arte acadêmica, certinha, neo-clássica.

Aqui entra um parêntese. 
A origem dessa arte era a missão francesa, um grupo de artistas que chegou ao Brasil a convite de D. João VI para ensinar a arte aos brasileiros e trazer as novidades da Europa para nosso país. O discurso era de que o que se fazia no Brasil até então (o barroco de Aleijadinho, como exemplo) não era arte verdadeira. O episódio colocou na cabeça do brasileiro a ideia de que "o que é bom vem lá de fora", que ainda hoje domina a mentalidade local.
Fecha parênteses.
A antropofagia fazia uma referência aos índios canibais que haviam devorado o bispo português Sardinha quando o navio deste afundou na costa brasileira. Para Oswald o episódio mostrava a nossa principal característica: nós deveoramos a cultura que vem de fora, mas não de forma passiva. Nós a transformamos em outra coisa. As festas juninas, por exemplo, foram criadas a partir dos bailes europeus, mas em nosso país se transformaram em outra coisa.
Abaixo algumas frase do manifesto antropofágico:
"Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará"
"Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade"
"Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago"

OSWALD DE ANDRADE Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.

A origem do Batman

 

O surgimento do Super-homem foi um fenômeno de vendas sem precedentes. Logo todo editor estava pedindo a seus artistas que fizesse cópias daquele heróis. Uma dessas cópias surgiu um ano mais tarde, em 1939 e ficaria tão famoso quanto o Homem de aço: o Batman.
Bob Kane, assim como os criadores de Super-homem, era um garoto judeu que sonhava se tornar uma estrela com os quadrinhos. Seu pai era gráfico do New York Daily e conhecia um pouco do negócio (o que faria grande diferença na hora de negociar os direitos autorais).
Bob queria criar um super-herói que fizesse tanto sucesso quanto o super-homem. Acontece que ele não era exatamente um intelectual, e não conseguia escrever a histórias. Quando ele conheceu o jovem escritor Bill Finger, foi um casamento perfeito. Embora Finger pretendesse se tornar um escritor sério, ele também era apaixonado pelos pulp fiction e estava disposto a produzir qualquer coisa que lhe rendesse dinheiro.
Procurando inspiração para sua criação, Bob Kane vasculhou sua coleção de Flash Gordon e se deparou com os homens-pássaros desenhados por Alex Raymond. Ele então apresentou para Finger um herói vestido de vermelho, com asas mecânicas, chamado Homem-pássaro.
Finger achou que não era uma boa idéia. Como o personagem ia estrelar uma revista chamada Detetive Comics, ele pensava que deveria ter um ar mais soturno, uma criatura noturna, furtiva, envolta em uma capa preta. Que tal se fosse inspirado num morcego? Eles bolaram então um personagem vestido de cinza, com uma capa preta recortada, um capuz com orelhas e olhos que pareciam apenas frestas, dando um ar assustador ao conjunto. Para completar o conjunto, colocaram um morcego no peito do herói (para imitar o S do Super-homem) e lhe deram um cinto de utilidades com mil e uma bugigangas.
Os editores da National acharam o personagem perfeito para a Detetive Comics, mas Kane se negou a vender os direitos totais do personagem. Seu pai consultou um advogado e conseguiram um bom contrato que garantia muitos direitos para o desenhista. Posteriormente, quando Jerry Siegel e Joe Shuster tentaram conseguir na justiça os direitos do Super-homem, estes procuraram Bob para que ele entrasse com eles no processo. Ao invés de fazer isso, ele procurou a editora e negociou um contrato ainda melhor para ele.
Batman estreou no número 27 da revista Detetive Comics, em maio de 1939 e foi um sucesso imediato. Como Bill Finger não conseguia dar conta de todos os roteiros, Kane pediu à editora um segundo roteirista e apareceu Gardner Fox, que, na primeira história, mostrou o personagem levando um tiro. Isso definiu algo que ficaria claro nos anos seguintes: o personagem era o oposto do Super-homem. Enquanto um era a luz, o outro era as trevas. Enquanto o Super-homem vivia na ensolarada e otimista Metrópolis, Batman se esgueirava pelos becos escuros da corrompida Gothan City. Se o Super-homem era invencível e gostava de ricochetear balas em seu peito, o Batman era falível, um humano normal, que só ganhava graças à sua astúcia e ao cinto de utilidades.
Por muito tempo os leitores achavam que Bob Kane fazia todos os desenhos (a sua assinatura constava em todas as histórias), mas logo surgiram vários desenhistas fantasmas. Entre eles, Jerry Robinson, Jim Mooney e Sheldon Moldoff. Na época, Kane ficou famoso e costumava levar garotas em seus carrões para ver sua mansão adornada por uma série de quadros de palhaços pintados por ele. Dizia-se que até esses quadros haviam sido feitos por um desenhista fantasma.
Com o tempo, a descoberta de que muitas crianças liam a história fez com que fosse introduzido um parceiro mirim, o Robin. A partir de então, todo herói que se prezava tinha que ter um parceiro infantil. Geralmente eram eles que vendiam lancheiras para crianças.

Bonnie e Clyde

 

Bonnie e Clyde, filme de 1967, produzido e idealizado por Warren Beatty e dirigido por Arthur Penn, abriu caminho para a Nova Hollywood, a geração de cineastas que revolucionou o cinema norte-americano com obras como Sem Destino e O poderoso Chefão. O tema básico dessa geração já estava lá: o conflito de gerações, que aparece com maior destaque no final. Para quem não sabe, os dois eram assaltantes de bancos que ficaram famosos na década de 1930. Nessa época de depressão, muitas pessoas estavam perdendo suas propriedades para os bancos (fato muito bem mostrado no filme Vinha da Ira) e a população logo se identificou com a dupla, muitas vezes protegendo-os. Para a geração do final dos anos 60, a identificação foi imediata: eles eram como o casal, em busca de aventura e novidades, e a polícia representava a geração anterior, conservadora. 
Dizem que Warren Beatty se jogou aos pés do presidente da Warner (que já estava praticamente falindo na época) para fazer esse filme. Ao invés de receber um cachê normal de astro, ficou com 40% da bilheteria, o que o tornou milionário quando o filme (indo contra todas as expectativas do estúdio) se tornou um sucesso de bilheteria. 
Um dos aspectos curiosos do filme foram as adaptações feitas no roteiro. Na história original, Clyde era bissexual, e só conseguia se excitar com a presença do terceiro membro da gangue, C.W. Moss. Os executivos proibiram essa parte do roteiro e a solução foi sugerir que o personagem tinha problemas de ereção, o que, de certa forma aumentou a tensão entre o casal, deu um ar de humanidade ao personagem e colocou a relação entre Bonnie e Clyde num patamar mais complexo, já que ficamos o tempo todo os nos perguntando o que os mantém juntos (talvez o gosto pela aventura). 
Uma figura central no sucesso do filme foi o roteirista Robert Towne. Towne era extremamente inseguro quando estava escrevendo um roteiro próprio, mas era o melhor para consertar roteiros de outros. Uma das maiores contribuições dele foi antencipar uma cena que acontecia após a visita de Bonnie à mãe. A gangue rouba um carro e, no final, acaba dando carona aos donos do carro. O grupo está se divertindo quando Clyde pergunta ao homem qual a sua profissão. Agente funerário, diz ele. Bonnie ordena: "Tirem esse cara daqui". A cena, antecipada, marca o final do segundo ato e o início do terceiro ato. Dali em diante sabemos que o fim do casal está próximo e que eles serão mortos. 
Uma curiosidade sobre o filme é que o seu sucesso entre a nova geração foi tão grande que a boina usada por Bonnie se tornou moda entre as garotas do final dos anos 60.

Direto da estante: Perry Rhodan Das mutanten-korps

 

 Eu consegui esse volume em uma livraria de encalhes, em Curitiba. Para quem não conhece, Perry Rhodan é a maior série de ficção científica literária do mundo. Criada no final da década de 1950, é publicada na Alemanha até hoje (e está chegando ao número 3 mil). Este volume é uma edição especial, em capa dura prateada com ilustração em 3D. O texto é de William Voltz, o melhor autor da série e parece condensar vários volumes do primeiro ciclo (os amigos fãs de Perry Rhodan talvez possam dar mais detalhes).
Em tempo: como o livro está em alemão, nem tentei ler. Ficou mais como curiosidade de colecionador mesmo.

Roteiro para quadrinhos: a ambientação

 

Um aspecto importante na construção do roteiro é a ambientação. É necessário imaginar onde o personagem  vive, com quem ele se relaciona, como ganha a vida, etc...A ambientação vai acabar, inclusive, influenciando no modo de pensar e agir dos personagens.  Pessoas que vivem num ambiente árido acabarão tendo um comportamento árido (os tuaregs que o digam). Isso é muito claro, por exemplo, na série de álbuns Aldebaran: os personagens vivem num mundo quase completamente dominado pela água. Quando vão para um mundo desértico, tudo muda, inclusive os aspectos culturais. 
                Uma de minhas histórias chamada Vácuo mostra um tripulante de uma estação espacial que se revolta e acaba explodindo todo o local. A claustrofobia provocada  pelos eternos corredores, pelos ambientes fechados, fizeram com que ele "pirasse". Essa mesma ambientação poderia ter o efeito oposto em outro indivíduo. Sentido-se confortável e seguro dentro de um ambiente fechado, ele poderia se sentir um agorafóbico.

                Um exemplo mais famoso: o Batman de Cavaleiro das Trevas é violento porque a Gothan City criada por Frank Miller é violenta.
                Também é importante saber o máximo possível sobre o local em que se vai passar a história. Antes de começar a escrever o tenente Blueberry, Charlier viajou para os EUA e visitou toda a região em que se passaria a HQ. Se você for escrever uma história sobre o Egito e não tiver dinheiro para a passagem, a melhor alternativa é entocar-se na biblioteca e ler tudo o possível sobre os hábitos, costumes e acidentes geográficos da região. Alan Moore conta que, antes de começar a escrever Monstro do Pântano, leu tanto sobre a Flórida que acabou descobrindo algumas coisas curiosas: "Eu sei, por exemplo, que os crocodilos comem pedras pensando que são tartarugas e depois não conseguem digeri-las e essa deve ser a razão pela qual eles têm um temperamento tão irascível", diz.

                Criar uma história que se passe no futuro, num planeta longínquo, ou em um planeta atualmente desconhecido pode livrar você da visita à biblioteca, mas certamente não vai facilitar as coisas para sua imaginação. É necessário, nesses casos, imaginar todos os aspectos dessa sociedade: quem governa, se é que há governo, como as pessoas vivem, quais são os seus costumes, como elas se alimentam...
                Um exemplo fantástico de criação de ambiente é o álbum A Fonte de Cyann, de Bourgeon e Lacroix. Os autores criaram não só uma história para o planeta em que se passa a HQ como, ainda, se preocuparam com detalhes mínimos. Tipo: o lugar da letra O no nome da pessoa determina a classe social.
                Em Cian, quando pessoas importantes morrem, seus corpos são envoltos em barro e jogados no mar. Quanto mais pessoas se unem para impedir a parte final do ato funerário, mais querido era o defunto. Detalhe: a língua falada pelos personagens, embora muito semelhante ao francês, tem suas próprias regras. Para desespero dos tradutores!
                Portanto, se você quiser escrever boas histórias de Ficção científica, ou de fantasia, comece a ler desde já livros de antropologia...

Roteiro de quadrinhos: O Marvel Way

 O marvel way é uma modalidade de roteiro em que o roteirista discute com o desenhista, ou lhe entrega uma sinopse, e este desenha as páginas, que são posteriormente devolvidas ao roteirista para que sejam colocados os textos e diálogos. É chamado assim porque foi um método criado por Stan Lee e utilizado por todos os roteiristas da casa das ideias. 

Um dos roteiros Marvel Way mais famosos de todos os tempos é aquele sobre Galactus. Embora fosse um pouco mais detalhado, o roteiro poderia se resumir em: "O Quarteto Fantástico enfrenta um deus". 

Há um grande preconceito contra o marvel way. Uma pessoa, por exemplo, me dizia que Stan Lee não era co-autor das histórias, uma vez que ele se baseava no desenho pronto.

Houve uma época, nos primórdios dos quadrinhos em que o texto era realmente redundante com relação à imagem e até desnecessário. Arte: Antonio Eder

Essa visão equivocada e preconceituosa parte da ideia de que o texto é apenas um complemento do desenho numa história em quadrinhos. Isso podia até ser verdade nos primórios dos quadrinhos, quando o desenho mostrava o herói batendo no bandido e o texto dizia: "O heroi bate no bandido". Da Marvel para cá, o texto tem se caracterizado por permitir uma outra leitura do desenho, muitas vezes resignificando-o, como aconteceu com o Surfista Prateado, que era apenas um arauto de Galactus e, com o texto de Lee, tornou-se uma espécie de filósofo interestelar:  ¨Quando chegou a hora de estabelecer o seu padrão de discurso, comecei a imaginar de que forma um apóstolo das estrelas se expressaria. Parecia haver uma aura biblicamente pura no nosso Surfista Prateado, algo altruísta e magnificamente inocente¨. Isso é chamado de resignificar e é um princípio básico da arte moderna e pós-moderna. 
O texto de Stan Lee criou uma camada de significado que não exisita no desenho original de Kirby. 



Eu usei muito o Marvel em todas as histórias que escrevi com o compadre Joe Bennett. Nós discutíamos a história, o Joe muitas vezes fazia o rafe na minha frente e eu colocava o texto em cima do rafe. 
Era sempre um desafio, pois Joe Bennett é da escola de Jack Kirby, John Buscema e Garcia Lopez, todos grandes narradores visuais. Ou seja: ele parecia contar toda a história apenas com imagens. Então logo descobri que meu texto deveria criar uma camada a mais de leitura e interpretação. 
Uma das páginas que, lembro, me deram muito trabalho, foi a cena da história O farol. Na história, um casal de namorados encontra um farol desconhecido em uma praia deserta e decide investigar. Quando estão lá dentro, acabam se perdendo (não, não vão contar o resto). Na sequência abaixo, Fábio se separou de Cassandra e vai se desesperando aos poucos ao não conseguir encontrar a saída. Lembro que quando peguei a página rafeada, pensei: "Caramba, o que vou colocar aqui? O Joe já contou tudo com desenhos!". No final, o texto cria uma camada a mais de leitura, permitindo que o leitor conheça o personagem, sua história de vida e motivações. E, claro, termina com uma ironia, que só funciona em conjunto com o desenho... 

Na história A Família Titã, eu o Joe não tivemos tempo para conversar sobre os detalhes da história. O compadre precisava de dinheiro urgente e o Franco havia nos pedido 30 páginas para duas semanas, com tudo pronto. Algum tempo depois, descobrimos que, para o Joe, o Tribuno era o vilão, afinal o desenho o mostrava praticando as mais terríveis barbaridades. Mas para mim ele era o heroi, e o texto justificava suas ações, dando uma motivação para o personagem. E até hoje muitos leitores fãs da dupla debatem se ele é um vilão ou um heroi. Eis um exemplo de  como texto e desenho podem permitir várias leituras de uma obra numa história em quadrinhos.
Na Refrão de Bolero, uma moça viaja para Belém e se encanta com Belém e diz que ela é uma cidade de cartão postal. No final, quando é assaltada e se vê sozinha e perdida, sem dinheiro ou conhecidos numa cidade que de fato não conhece, ela diz: "Agora tudo que eu tenho é um profundo corte na mão e uma cidade de cartão postal". O texto, além de dar um duplo sentido para a expressão "cidade de  cartão postal" (positivo no início, negativo no final), apresenta os sentimentos da personagem de uma forma que o desenho não poderia fazer. Vale lembrar que a ideia da história surgiu quando eu fui assaltado em Belém.
Os quadrinhos, portanto, são uma junção de texto e desenho em que nenhum é mais importante que o outro e a coisa só funciona se houver harmonia entre eles.

Caminha comigo


Dirigido por Marc Francis e Max Pugh e lançado em 2017, o filme Caminha comigo registra o cotidiano de uma comunidade zen-budista na frança chamada Plum Village, fundada pelo monge vietnamita Thich Nhat Hanh.

O filme é todo baseado no conceito de atenção plena (Mindfulness). A ideia por trás desse princípio é de que devemos viver o momento presente, sem nos importarmos com o passado ou nos preocuparmos com o futuro.

A atenção plena aparece inclusive em termos de narrativa. São situações do cotidiano dos monges: um monge desconcentrado durante o zazen; dois monges conversando na cozinha; um monge e um voluntário organizando as almofadas de meditação (e descobrindo que se conhecem); uma monja visitando o pai... e caminhadas, muitas cenas silenciosas de caminhadas, o Kinhin, claramente o tipo de meditação predileto de Thich Nhat Hanh.

O documentário mostra também o tocar dos sinos, ao tocar dos quais, todos param tudo que estão fazendo, uma forma de tirar as pessoas do modo automático e fazer com que elas prestem atenção ao momento presente.

A narrativa é tão contemplativa que exige do expectador uma atitude mental de atenção plena. Não há narrador ou mesmo depoimentos dos personagens. Apenas as cenas capatadas e alguns trechos de textos de Thich Nhat Hanh narrados por Benedict Cumberbatch (o Doutor Estranho dos filmes). Isso inclusive cria um problema. Muitas vezes não conseguimos identificar onde está acontecendo a ação.

Curiosamente, até mesmo um filme contemplativo como esse tem seu momento de conflito. Ele aparece quando os monges vão meditar em uma praça e um fanático religioso cristão passa a acusá-los, aos gritos, de terem pacto com satanás. A reação dos monges sintetiza a essência do zen: eles apenas continuam meditando. 

Para assistir, clique aqui:  https://www.youtube.com/watch?v=Cescc684NWI

Conan – O terror dorme sob a areia

A criação da revista Savage Sword of Conan permitiu que Roy Thomas pudesse elaborar tramas mais adultas e violentas do que aquelas que eram publicadas na revista Conan the barbarian. A razão disso é que as revistas magazine em preto e branco eram consideradas publicações para adultos e, portanto, não sofriam a censura do Comics Code.

O terror dorme sob a areia, publicada no número 6 da revista e com desenhos do filipino Sonny Trindad, demostra bem isso.

A história começa com o antigo chefe dos zuagires perdido no deserto. 


A história era uma daquelas boas sacadas de Thomas, de aproveitar vácuos das histórias de Robert E. Howard e a partir disso fazer novas histórias.

Na a maldição da lua crescente, Conan assumira o comando dos zuagires. Para isso, ele quebrar a mão direita do antigo chefe e o colocara sobre um cavalo, fazendo com que cavalgasse pelo deserto. Mas Howard não diz o que acontece com esse chefe e Thomas aproveita para fazer a história focada nele.

Ele é salvo por peregrinos que vão fazer um ritual para impedir que uma antiga ameaça acorde. 


A HQ começa com o personagem atravessando o deserto, prestes a morrer. O texto de Thomas é brilhante: “Talvez o Sol seja realmente o olho de deus, como ensinam certos místicos. Se assim for, os homens podem abandonar suas esperanças e deixar de falar que dias melhores estão por vir... pois há pouca piedade nesse ardente globo escarlate”.

As imagens mostram o ex-cheve dos zuariges, Olgerd Vladislav, caindo do cavalo e vendo abutres se aproximarem para se banquetearem com seu cadáver. Mas quando o primeiro deles se aproxima para devorar seus olhos, uma flecha atravessa a cabeça do animal. A arqueira é a filha de um homem que atravessa o deserto em direção ao templo do adormecido.

O planod e vingança faz despertar um demônio lovecraftiano. 


Resgatado, Olgerd descobre que a caravana tem como objetivo fazer um ritual para evitar que um demônio adormecido nas areias do deserto ressurja.

Ao descobrir que Conan está se dirigindo ao mesmo local para organizar uma reunião de diversas tribos, Olgerd elabora uma vingança. Só que essa vingança irá fazer ressurgir o deus, ou demônio antigo, uma fera lovecraftiana monstruosamente grande e repleta de tentáculos.

"Que se dane!". 


Há um dos momentos da história, já perto do fim, que mostra como o roteiro na Espada Selvagem podia fugir dos cânones dos quadrinhos. Olgerd é capturado por um dos tentáculos e Conan pega uma flecha para matá-lo como um ato de misericórdia, já que o que espera o outro é provavelmente um destino terrível. Conan chega a esticar o arco, apontar a flecha... “... e então manda tudo para o inferno. O que Olgerd teria feito por ele?”... e o monstro some com o antigo chefe dos zuariges.


quarta-feira, junho 28, 2023

Apocalípticos e integrados

 

                O surgimento dos Meios de Comunicação de Massa e a percepção da grande importância que tal fato teria sobre a humanidade fez com que os pesquisadores que se debruçaram sobre os mesmos tivessem dois tipos de postura. De um lado, aqueles que abraçavam entusiasticamente as novas tecnologias. Do outro, os que viam no desenvolvimento da mídia (os Meios de Comunicação de Massa – MCM) o fim da civilização, do pensamento crítico e das liberdades individuais.
                Umberto Eco chamou os primeiros de integrados e os últimos de apocalípticos no seu livro Apocalípticos e Integrados, hoje um clássico do estudo da comunicação.
                Os apocalípticos, adeptos de uma visão aristocrática da cultura, vêm como uma monstruosidade a criação de uma cultura partilhada por todos e produzida de modo que a todos se adapte. O surgimento da mesma Ao homem de culto só resta dar o seu testemunho e esperar o fim dos tempos.
                Os integrados, ao contrário, argumentam que as novas tecnologias estão permitindo um alargamento cultural, uma democratização da cultura. Por traz desses dois conceitos criados por Eco esconde-se uma crítica veladas às duas principais correntes teóricas do estudo da comunicação no início do século XX.
                Os integrados seriam os funcionalistas, na sua maioria norte-americanos e liderados por pesquisadores como Laswell e Lazzarsfeld.
                Os apocalípticos seriam os membros da escola de Frankfurt, liderados por Adorno.
                A diferença entre as duas escolas explica-se, em parte, pelo contexto histórico do surgimento das mesmas.
                Surgido nos EUA, país que se orgulha de sua centenária democracia, e financiado pelas agências de propaganda, o funcionalismo não tinham razões para temer o desenvolvimento dos Meios de Comunicação de Massa.
                Laswell chega a afirmar que propaganda rima com democracia, pois os ditadores não precisam convencer a massa a segui-los. Para eles, basta o uso da força.
                Ambiente absolutamente oposto iria dar origem à Escola de Frankfurt. Esse grupo de estudos sociológicos, surgido na Alemanha na década de 30, era formado, essencialmente, por socialistas judeus. Gente como Bretch e Heich faziam parte da escola de Frankfurt.
                Os frankfurtianos viam, aterrorizados, a ascensão do nazismo e a utilização que Hitler fazia dos Meios de Comunicação de Massa (MCM).
                Hitler chegara a escrever um livro afirmando que a derrota da Alemanha na Primeira Guerra se devia, essencialmente, à falta de uma boa propaganda de guerra.
                O nazismo usava muito bem o cinema e o rádio para conseguir a adesão das massas e seus objetivos não eram nada democráticos.
                Quando os alemães invadiram a França, os frankfurtianos que haviam se refugiado lá tiveram de fugir. Na fronteira da França com a Espanha, Walter Benjamim, achando que cairá nas garras da Gestapo, suicida-se.
                O grupo vai para os EUA e, embora tenham trabalhado com os funcionalistas no início, a experiência com o nazismo irá afasta-los radicalmente da posição integrada.
                Para filósofos como Adorno, a Indústria Cultural jamais poderá produzir arte, pois a arte não é feita para ser vendida. Filmes como Cidadão Kane seriam apenas um “chamariz” para nos fazer acreditar que é possível haver arte autêntica dentro da Indústria Cultural.
                Além disso, a mídia estará massificando a humanidade. O processo de reprodutibilidade técnica, que tornava possível a reprodução da cultura em milhares, às vezes milhões de produtos absolutamente iguais (é o caso da fabricação de CDs, por exemplo) se refletia nos consumidores, tornando-os tão uniformizados quantos os produtos por eles consumidos.

Mulher-Maravilha – a verdadeira amazona

 


Mulher-Maravilha – a verdadeira amazona é uma abordagem diferente da origem da heroína.
Criado por Jill Thompson, conhecida no Brasil por seu trabalho em Sandam, a história do álbum se foca na fase anterior ao surgimento da MM como a conhecemos hoje.
Assim, é mostrada a derrota das amazonas para Hércules, a fuga para a ilha de Themyscira e a forma como diana foi concebida da areia e das lágrimas dos deuses.
A história é totalmente focada na infância e adolescência da personagem. Diana é mostrada como uma menina mimada, arrogante, que é idolatrada e cortejada por todos, menos da cavalariça da rainha, Alethea. Um aspecto interessante da trama é que o roteiro insinua, de forma sutil, que Diana se apaixona por Alethea e passa a fazer de tudo para conquistar sua atenção – o que irá provocar um resultado desastroso.


O álbum se destaca principalmente pela arte refinada e sensível de Thompson, a começar pela belíssima capa. Mas tem problemas de roteiro, em especial quanto à caracterização da protagonista. Diana é mostrada como mimada, arrogante, irresponsável e, de repente, torna-se o oposto de tudo que era. Certo, há um trauma no meio do caminho, mas mesmo o trauma não justificaria uma mudança tão drástica de um momento para o outro.
Entretanto, é uma HQ que vale a pena ter na estante.

Roteiro de quadrinhos: diálogos

 Como os textos, há vários tipos de diálogos e várias técnicas. Eis alguns tipos:

Frank Miller usou a técnica do diálogo realista em Cavaleiro das Trevas

Diálogo realista  - um dos principais problemas é como construir um diálogo realista. Alguns roteiristas costumam colocar termos chulos, palavrões, na boca dos personagens.  Howard  Chaykin costuma fazer isso. De fato, isso dá uma impressão de realismo, pois as pessoas normalmente falam palavrões. O problema é que nem todas as pessoas falam palavrão e mesmo as que falam não o fazem o tempo todo. Então, como construir um diálogo realista? Há algumas técnicas. A principal delas é a do corte. Consiste em cortar o diálogo, mudando de assunto.  Isso é muito comum na linguagem do dia-a-dia. Nem mesmo as pessoas mais compenetradas passam mais do que alguns minutos falando de mesmo assunto. O processo natural de um diálogo é feito de cortes: uma idéia puxa outra, que puxa outra, que puxa outra, etc...Assim, começamos falando de vacas e terminamos falando de Platão.

Neil Gaiman usou a técnica do diálogo literário em Sandman. 

Diálogo literário - Um diálogo bom não é necessariamente realista. O diálogo literário é mais trabalhado que o realista, mais pomposo. Certos personagens pedem um diálogo mais literário (ou teatral). O Shakespeare que aparece nas histórias de Sandman fala de uma maneira bastante literária ou teatral porque é assim que se imagina Shakespeare falando.

Os monólogos do Surfista Prateado se tornaram célebres.

Monólogo - O monólogo é quando um personagem detém a palavra durante muito tempo. Há um recurso parecido com o do corte, que se usa para monólogos. É a técnica do aposto. Aposto é quando você coloca uma frase dentro de uma frase (os apostos costumam vir separados do resto da frase por vírgulas). Num monólogo a técnica consiste em aproveitar um detalhe da frase e estendê-lo, voltando só depois para o assunto principal. Monólogos memoráveis eram os do Surfista Prateado, escrito por Stan Lee, como este, retirado do sexto número da revista do personagem: "Até quando devo continuar aprisionado no selvagem planeta Terra? Quanto tempo suportarei até que solidão me destrua? Não, este não pode ser o meu destino eterno! Não foi para isso que renunciei a meu mundo, minha vida e meu amor! Por certo, em todo o universo não pode haver ironia mais cruel do destino! Eu, que detenho um poder além da compreensão... estou fadado a viver confinado e sem esperanças... tal qual o mais frágil dos animais! ".
Benedito Rui Barbosa, autor da novela Renascer um ótimo autor de monólogos. E o principal recurso usado por ele é o do aposto.

Roteiro de quadrinhos: pesquisar é preciso

 

De vez em quando aparece por aí um gênio dos quadrinhos. É o cara que escreveu a história perfeita, e que tem a fórmula para salvar o quadrinho nacional. Conheci muitos desses. Geralmente são uns idiotas muito divertidos, e muito diferentes entre si. Mas a maioria tem uma característica em comum: a total ausência de pesquisa.
Estudiosos do processo de criação dizem que o surgimento de uma nova ideia passa por um processo que começa com uma longa pesquisa sobre o assunto. Essa fase é geralmente chamada de preparação. É uma fase de trabalho duro, em que se procura ler e pesquisar tudo que existe sobre aquela situação. Se, por exemplo, vou escrever uma HQ policial, essa fase engloba a leitura de livros sobre investigação criminal, sobre psicologia, perícia, etc. Também inclui o contato com quadrinhos, livros e filmes sobre o assunto. Com quanto mais material você tem contato, maior a chance de produzir algo criativo. Também é maior a chance de descobrir como o gênero funciona, quais são as suas regras, um conhecimento relevante até mesmo se você quiser quebrar essas regras. 
A fase seguinte é a incubação e iluminação. Depois de pensar e pesquisar muito sobre o assunto, a ideia surge, geralmente num momento de descontração. É que toda nova ideia surge do incosciente, que trabalha justamente nesses momentos em que não se está pensando no problema. Mas, da mesma forma que o iconsciente pode lhe dar uma ideia sensacional e original, ela pode lhe dar um plágio ou uma ideia jerico. Para evitar isso, é necessário o último passo: a crítica.
A pesquisa é importantíssima em todas as fases. Sem ter material para trabalhar, o incosciente não cria nada. E, depois, na fase da crítica, se a pessoa não pesquisou bem, pode deixar passar um plágio involuntário, uma pegadinha do inconsciente, que puxou da memória algo que você não se lembra que viu.
Uma vez me apareceu um desses gênios dizendo que queria escrever um romance policial. Aconselhei-o a ler os clássicos do gênero: Conan Doyle, Dashiell Hamett, Raymond Chandler, etc. Ele me respondeu que não iria ler nada disso, pois não queria ser influenciado. Pretendia escrever algo totalmente original.
- Tudo bem, vá em frente! - eu disse.
Meses depois, ele me trouxe o roteiro, um calhamaço de quase 100 páginas. Era a história de um detetive particular pobretão que começava a investigar um caso quando uma mulher linda aparecia em seu escritório. Lá pelas tantas, alguém batiaem sua porta, e, quando ele abria, a pessoa caia em seus braços, esfaqueada.

Ou seja: o roteiro era o chavão dos chavões. Quase um plágio de algumas histórias noir, como as de Raymond Chandler e Dashiel Hammett. O garoto tinha assistido tantas imitações das histórias noir clássicas que seu incosciente se impregnou delas e, como não tinha bagagem cultural para tanto, não conseguiu identificar o plágio involuntário. Para ele, a história era perfeitamente original.