sábado, março 23, 2024

As aventuras de Xisto



Quando eu estava no primário, li um livro que me fascinou. Era um trabalho de escola e cada um era sorteado para ler um capítulo em uma aula. Na primeira aula o sorteado admitiu que não tinha lido nada e, portanto, não se sentia capaz de ler para a turma. A professora perguntou se alguém já tinha lido. Silêncio total. Eu levantei a mão. “Você já leu o livro todos?”. “Duas vezes”, respondi. Depois li tantas vezes que decorei a ponto dos colegas me testarem. Liam um trecho e eu dizia em qual página estava.

O nome desse livro era Aventuras de Xisto, de Lúcia Machado de Almeida, publicado na coleção Vaga Lume.

Além do texto maravilhoso da autora, o livro se destaca pelo trabalho primiroso do ilustrador Mário Cafiero, cujo talento para a fantasia já se revela logo na capa, com o protagonista montado em um cavalo, a espada levantada. O meticuloso trabalho do artista, desenhando cada folhinha nas árvores e cada grama no chão, impressiona. Mas esse detalhismo não está a serviço do realismo. Ela contribui muito mais para tornar a imagem irreal, como num sonho, o que é ampliado pelo fato da proporção entre cavalo e cavaleiro ser estranha, incluindo uma cabeça de cavalo pequena na proporção com o corpo. Essa característica se repete ao longo das ilustrações internas com os bruxos, por exemplo, sendo mostrandos com uma proporção excessivamente alongada (com nove cabeças).

Tudo isso contribui em muito para o clima de fantasia da obra.

O texto de Lúcia Machado de Almeida é singelo e inventivo. Parece simples, mas é cheio de estratégias narrativas, a exemplo da abertura do livro. A autora narra o nascimento no qual o personagem olhou para a mãe e sorriu. E depois:

“Passava o tempo... Quando Xisto fez três anos, morreu-lhe o pai. Aos cinco, teve sarampo, e aos nove ficou de castigo por ter pregado um susto no mestre, que por pouco não endoideceu”.

Misturar em um único parágrafo vários fatos dá a impressão de que esses fatos aconteceram muito rápido. E misturar em uma mesma frase um evento importante, como sarampo e o castigo, dá a dimensão de importância desse último fato ao mesmo tempo em que a história, contada em seguida, destaca a inteligência do personagem.

Na trama, Xisto vê um feiticeiro esconder na parede falsa do fundo de uma gruta um objeto. Ao abrir o local, eles descobre o MANUAL DO SEGREDO DOS BRUXOS.

O manual lista os quatro bruxos ainda existentes no mundo e o ponto fraco de cada um, além de nomear cada um deles de acordo com seus atributos:

Fredegonda – senhora dos que voam, mas não são aves;

Jacomino – o que se alimenta do humo da terra;

Minhoco – o senhor do tempo;

Durga – o que vê sem ser vito.

Como se percebe, a lista só amplia o mistério graças ao texto misterioso (o que seria alguém que vê sem ser visto?), estimulando o leitor a imaginar quais os poderes dessas pessoas.

Para eliminar esses últimos bruxos, Xisto torna-se um cavaleiro andante, acompanhado de seu amigo Bruzo, tão simplório quanto Xisto é inteligente.

Nessa jornada eles ainda enfrentam tiranos. Há tempo até para situações de humor quixotesco, como quando eles acreditam que bruxos estão executando pessoas e acabam descobrindo que são fazendeiros pegando uma galinha para o jantar.

Em suma, um livro mágico, que encantou toda uma geração e abriu as portas para a predileção pela literatura de fantasia.

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