segunda-feira, junho 30, 2025

Nosso Lar

 


Nosso Lar é um dos grandes best-seller brasileiros. Escrito pelo espírito André Luís, através do médium Chico Xavier, popularizou a literatura espírita com a história de um médico em uma colônia espiritual. Publicado em 1944, o livro  já vendeu mais de... e gerou uma versão cinematográffica assinada por Wagner de Assis (A Cartomante).
Bastante conhecido, o enredo do livro inicia com o narrador chegando ao Umbral após a sua morte. O relato lembra muito as descrições do inferno católico, com o protagonista assediado por formas diabólicas, rostos Álvares e expressões animalescas. Ele sofre ali por oito anos, até finalmente ser levado para a colônia espiritual de Nosso Lar. A grande falta do médico, que o leva ao Umbral, é o ceticismo e o orgulho, que fazem com que ele demore tanto a pedir ajuda.
Uma vez na colônia, André Luís é iniciado nos mistérios da vida espiritual, da cura, da comunicação com os vivos, etc.
Há, em todo o livro, um excesso de adjetivos que atrapalham a leitura: o aposento é confortador, as luzes cariciosas. Mas essa característica, hoje considerada um vício de linguagem, era comum na maioria dos autores antigos. Fora isso, o livro passaria tranquilamente por uma boa obra de ficção científica da primeira metade do século 20.
A linguagem antiquada foi facilmente resolvida na versão cinematográfica com uma bem pensada atualização. Mas a história apresentava um outro problema, um certo caráter de"diário de viagem", que torna difícil sua adaptação para a sétima arte. Um filme precisa ter uma trama, com conflitos e uma estrutura narrativa que caminha na direção da resolução do conflito.
Em Nosso Lar, todos são bons demais e não existe uma possível figura de vilão. Da mesma forma, não há um destino que represente o conflito, já que os personagens gozam de livre-arbítrio. Em suma: não há quase nenhum conflito visível na obra original.
Como transportar isso para o cinema sem que o resultado seja duas horas de sono?
O diretor Wagner de Assis optou por focar a narrativa no conflito interno dos personagens (apenas sugerida no livro), especialmente André Luiz e Eloísa, uma moça que aparece rapidamente no livro se lamentando de ter morrido antes de casar e de saber que seu noivo encontrou uma nova esposa.
André Luiz luta contra a arrogância, o egoismo e o ceticismo (e, no final do filme, contra o ciúme), e Eloísa quer a todo momento voltar para seu noivo. Boa parte da narrativa se sustenta nessa sustentação. André será capaz de ultrapassar seus conflitos internos, e, dessa forma, ajudar a moça, fazendo com a que a trama paralela se una à principal num roteiro bem costurado.
Ou seja: o diretor optou por uma inteligente estrutura narrativa, que prende o expectador exatamente pela identificação. Alguns talvez se identifiquem com André, outros com Eloísa.
Se o roteiro é competente e enxuto, a direção é outro ponto forte. Os efeitos especiais são grandiosos (o filme custou 20 milhões de reais, boa parte deles gastos com efeitos), mas usados em favor da narrativa. Não há efeitos apenas pelo efeito, como Hollywood muitas vezes tem feito. Entretanto, muitos que assistiram à fita comentaram que gostaram de ver esse nível de efeitos num filme nacional de FC ou fantasia.
O diretor também trabalha muito bem a imagem, em ótimas cenas sem diálogos, como no reencontro de André Luiz com sua esposa. Com pouquíssimas falas, toda a tensão da situação é repassada aos expectadores.
Há algumas cenas que chamam atenção dos mais atentos: quando começa a II Guerra Mundial, a colônia espiritual recebe centenas de desencarnados. A maioria deles usando a estrela de Davi (judeus), mas há também pessoas com outros símbolos usados em campos de concentração, o que se relaciona com os ensinamento de Chico Xavier de que o sofrimento liberta. A mesma cena traz um conteúdo de tolerância religiosa que se reflete também na cena da sala do governador, cujas paredes ostentam símbolos das principais religiões terrenas.
Sobre a questão da II Guerra, Chico conta, no livro, que os nazistas, ao morrerem na guerra, fugiam dos que iam resgatá-los, chamando-os de "fantasmas da cruz". Esse ponto, no entanto, não foi explorado pelo filme.
Outro aspecto curioso da versão cinematográfica é inverter o paradigma convencional do ser humano com relação à dualidade vida-morte. Em Nosso Lar, vemos personagens chorando e lamentando a partida de entes queridos que vão reencarnar. Nesse ponto o roteiro foi particularmente eficiente ao mostrar que vida e morte são apenas dois lados da mesma moeda em um ciclo de reencarnações. Chega, inclusive, a brincar com isso, como na cena em que uma senhora reclama que o marido estava sempre muito doente, “Mas morrer que é bom, nada!”.
Nosso Lar conta com uma equipe internacional:  o fotógrafo suíço Ueli Steiger (“Dia depois de amanhã”, “Godzilla”, “10.000 a.C”), os canadenses da Intelligent Creatures para os efeitos especiais (“Watchmen”), a diretora de arte brasileira Lia Renha ( “A muralha”, “Hoje é dia de Maria”, “Auto da Compadecida”), e o músico  Philip Glass (“As horas”, “O ilusionista”).
É um filme que irá agradar tanto os espíritas quanto não espíritas ou simples simpatizantes da doutrina. Mesmo aqueles que foram assisitir Nosso Lar apenas como um filme de ficção científica provavelmente irão gostar. Prova disso é que em apenas 5 dias  já ultrapassou a marca de um milhão de expectadores.

Versão digital do livro Jornalismo em Quadrinhos

 


 

A editora Marca de Fantasia acaba de disponibilizar gratuitamente em seu site meu livro Jornalismo em Quadrinhos . Para baixar gratuitamente, clique aqui. A edição impressa entra em pré-venda na próxima semana. 

Confira uma sinopse da obra: 

O Jornalismo em quadrinhos é uma área do jornalismo que tem crescido exponencialmente nos últimos anos e conquistado reconhecimento da crítica e dos leitores. Essa é uma área do jornalismo que pode incluir os mais diversos gêneros, da reportagem aos editoriais e crônicas.

Neste livro, Gian Danton não apenas traça um histórico desse área, mas analisa suas principais obras publicadas no Brasil e no mundo. Trata-se de uma introdução ao tema apresentando os conceitos básicos sobre o assunto, assim como as principais obras da área.

Também traz um capítulo focado no processo de produção de uma história em quadrinhos jornalística, da consulta às fontes à elaboração do roteiro e a página finalizada. Para isso é usado como exemplo a série Psicopatas, de autoria do próprio Gian Danton.

A importância de sua obra pode ser mensurada justamente por não ser apenas teórica ou bibliográfica, mas também por trazer um panorama prático poucas vezes visto em livros que pretendem introduzir um tópico em especial, como é o caso aqui.

Fredric, William e a Amazona – perseguição e censura aos quadrinhos

 


Dois homens fundamentais para a história dos quadrinhos foram William Moulton Marston e Fredric Wertham. O primeiro foi o criador da Mulher Maravilha e o responsável pela introdução do feminismo nos quadrinhos. O segundo foi o psicólogo responsável tanto pela perseguição aos quadrinhos como pela péssima imagem que essa mídia ganhou por muito tempo (qual criança das décadas de 50, 60, 70 e 80 não foi em algum momento repreendida por ler gibis?).

É a história desses dois homens que  Jean-Marc Lainé e Thierry Olivier contam no volume Fredric, William e a Amazona – perseguição e censura aos quadrinhos recentemente lançado pela editora Pipoca e Nanquim.

Os autores usam a técnica da biografia paralela, em que as vidas de duas pessoas são contadas ao mesmo tempo, num narrativa que os compara.

A inspirada capa, exemplifica muito bem isso – e representa o único momento na história em que ambos se encontram: uma banca de revistas (que surge durante toda a história), tendo Wertham e Marston de cada lado, ambos folheando comics books e se observando pelo canto do olho, enquanto, acima da banca, vemos a bota da Mulher Maravilha.

Wertham acreditava que os gibis influenciavam a juventude a cometer crimes. 


É uma narrativa curiosa, poucas vezes vista nos quadrinhos. Não é contada como uma história linear, em que alguns fatos levam a outros que levam a outros que levam a outros. Ao contrário, o que temos são cenas isoladas de um e de outro personagem. Cabe ao leitor completar o que ocorre entre uma cena e outra (num exercício mais extenso daquilo que o leitor de quadrinhos já faz).

Essas cenas normalmente se cruzam em aspectos temáticos. Marston tenta inocentar um homem usando seu detector de mentiras (que não é aceito no tribunal), enquanto Wertham, ao trabalha como consultor psicológico, tenta entender as motivações do psicopata Albert Fish – um caso que o torna ainda mais resoluto em sua hipótese de que os crimes são cometidos não por uma índole genética, mas por influência do ambiente, algo que indiretamente o levaria a sua cruzada contra os quadrinhos. Momentos chaves da trajetória de um e de outro são mostrados, como a roteirista que iria escrever histórias da Mulher Maravilha recebendo um livro feminista ou a diretoria da DC tirando a personagem das mãos da família Marston e a entregando a um roteirista que levaria a personagem totalmente oposta do feminismo que a caracterizou.

O álbum conta os bastidores da criação da Mulher Maravilha.


Ao contrário do que se poderia esperar, Wertham não é mostrado como vilão (sua atuação junto à comunidade negra mostra que ele era bem intencionado), da mesma forma que Marston não é mostrado como herói. São dois homens complexos cujas várias facetas são visíveis no álbum. Wertham talvez tenha sido o mais complexo, pois, apesar de sua boas intensões, o resultado de sua atuação teve resultados desastrosos.

No final, parece que as 92 páginas do álbum foram pouco para dois personagens tão complexos. Pouco também para a história contada.

Exposição Olá, Maurício

 

A exposição Olá Maurício foi uma homenagem ao universo da Turma da Mônica e seu criador, Maurício de Sousa. Sediada no Centro Cultural Fiesp, em São Paulo, a exposição fez tanto sucesso que se estendeu de 17 de julho de 2019 a 16 de fevereiro de 2020. Eu a visitei logo no primeiro mês. Confira as imagens.


















 

X-men – o início da saga de Proteus

 


 

A saga de Proteus, publicada a partir de The Uncanny X-men 125, representa o início do ponto do alto da dupla Chris Claremont-John Byrne. Dali viriam apenas clássicos, como a Saga da Fênix e Dias de um futuro esquecido.

Essa edição embora seja morna (era uma preparação para a trama principal), é envolvente pela maestria com que os dois autores trabalham com os ganchos ao mesmo tempo em que aprofundam os personagens.

A história começa com Jean Grey transformada em Fênix no labarotório de Moira Mactggert em uma ilustração belíssima e impactante de Byrne. O texto era do tipo que faria a fama de Claremont: “Era uma vez uma jovem chamada Jean Grey... uma telepata/telecinética mutante. E um dos membros fundadores dos fabulosos X-men. Agora ela é a Fênix. E para ela, para aqueles que ela ama e que a amam... e talvez para o mundo inteiro... nada jamais será o mesmo”.

Em poucas páginas, os ganchos de duas das principais sagas dos mutantes.


Nessa sequência inicial já são lançadas as bases do que viria a ser a saga da Fênix. Moira fica com medo ao imaginar o que acontecerá se Jean Grey usar todo o seu poder. Na mesma sequência um homem misterioroso observa as duas. O texto diz: “Atrás delas, sem ser visto por ambas as mulheres, a luz revela algo que um dia foi um homem” e a criatura pensa: “Tenho... fome! Mas devo esperar. Moira não deve saber”.

Ou seja, em apenas três páginas, Byrne e Claremont lançam os ganchos de suas duas principais sagas dos X-men de todos os tempos. Tudo ali, à mostra do leitor, mas encobertos por um ar de mistério que torna a leitura ainda mais viciante.

Se o leitor não havia sido fisgado por esse início, temos a sequência seguinte, com os X-men treinando na sala do perigo e mais um conflito entre Cíclope e Wolverine, algo que seria uma marca dos mutantes: conflitos humanos em meio a grandes sagas.

A narrativa pula para Jason Wyngard, o mestre mental. Ele pensa em como usou sua habilidades para conseguir a confiança de Jean se fazendo passar por um padre no avião.

Mas a história a história logo passaria dos ganchos e dramas humanos para a ação e o terror quando Moira percebe que há algum intruso no laboratório e desconfia que o mutante X escapou. Fênix percebe seus pensamentos e vai em seu socorro, mas no meio do resgate embarca num falso flash back que a deixa desorientada  a ponto de ser atacada e quase derrotada pelo intruso.

O clima de suspense permeia toda a história. 


A história termina com Lorna, a heroína magnética Polaris, pedindo ajuda aos X-men pelo telefone e olhando assustada para trás, a boca entreaberta no meio de um grito, enquanto a voz de alguém que não vemos aparece num balão distorcido: “Humana! Eu... preciso de você!”.

Em, suma, a história é uma aula de como construir uma trama e sustentar a atenção do leitor, com um final que deixa o leitor totalmente intrigado e ansioso pela continuação.

No Brasil essa história foi publicada em Superaventuras Marvel 20 e demonstra muito bem porque os fãs aguardavam ansiosamente a chegada de mais um número nas bancas.

E de espaço, de Ray Bradbury

 


Há algo de irônico em Ray Bradbury: embora seja um dos mais famosos escritores de ficção científica de todos os tempos, sua obra não é uma ode ao futuro e ao desenvolvimento da tecnologia. Ao contrário, seus livros ecoam diretamente o saudosismo de uma época mais simples.

E de espaço, antologia publicada no Brasil pela editora Hemos em 1978 é um exemplo disso.

O livro reúne 16 contos de Bradbury e demonstram bem o seu estilo de poético tanto nos temas quanto na narrativa.

As histórias vão do condutor de bonde que faz uma última viagem com os meninos antes de seu veículo ser substituído pelos ônibus até o homem que leva sua família para Marte fugindo da guerra nuclear na Terra (tema alias, presente em mais de um conto).

Mas talvez um dos melhores exemplos do estilo do autor seja “Pilar de fogo”.

A história se passa num futuro longíncuo em que as pessoas mortas não são mais enterradas, mas cremadas. E todos os cemitérios são esvaziados e os corpos queimados numa medida de higienização. O protagonista é o último cadáver ainda intacto, que se levanta e passa a andar entre os humanos.

A poesia já aparece nos primeiros parágrafos: “Ele andava sobre a terra, tinha saído da terra. Mas estava morto. Não podia respirar. Era impossível. Andava sobre a terra, tinha saído da terra. Mas estava morto. (...) Queria ter lágrimas, mas não podia fazê-las vir, tampouco. Tudo o que sabia é que estava de pé, estava morto, e não deveria estar andando!”.

Nesse mundo antisséptico, tudo que pudesse assustar ou incomodar  as pessoas havia sido eliminado. Livro de escritores como Edgar Alan Poe e Lovecraft tinham sido queimados.  

Mais do que uma história de zumbi, Bradbury usa o tema para tratar de temas que lhe são caros: o medo de uma sociedade anti-séptica, em que tudo capaz de incomodar deveria ser eliminado e sua visão de que isso seria uma distopia.

O mesmo tema aparece em “Fuga do tempo”, em que um professor leva seus alunos, através de uma máquina do tempo, para observar os costumes bárbaros do passado: “O Dia das Bruxas, o ápice do horror. Esta foi a era da superstição. Mais tarde baniram os irmãos Grimm, fantasmas, esqueletos, e toda essa baboseira. Vocês, crianças, graças a Deus, foram criadas em um mundo anti-séptico, sem sombras e sem fantasmas”.

“O Pedestre” é provavelmente o o conto mais importante da antologia, por ser a história que deu origem ao mais famoso livro de Bradbury, Fahreit 451. Na história, um homem é o último a caminhar pela cidade. Todos os outros passam o dia andando em carros e as noites em casa, assistindo televisão: “Pentrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de novembro, pousar os pés naquela sólida calçada de concreto, pisar nas fendas cheias de mato, e andar, de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer”.

No final, Mead é abordado por um carro de polícia e preso por seu comportamento anti-social. Resumido nesse conto está toda a filosofia por trás da distopia do autor: um mundo anti-séptico, em que pessoas são hipnotizadas pela tela de TV e comportamentos considerados anti-sociais, como caminhar pelas ruas da cidade é considerado um crime.

Mas, além de um poeta da prosa e um filósofo, Bradbury era tamém um autor que sabia criar boas tramas.

“A mulher gritando” é um exemplo disso.

Na história uma garotinha ouve uma mulher gritando num terreno baldio e imagina que tenha sido enterrada ali. Corre para avisar o pai e mãe, mas estes não acreditam nela e acham que se trata apenas de uma brincadeira. “Está bem”, diz o pai. “Vamos desenterra a mulher depois do almoço” e segue-se uma narrativa extremamente tensa, em que o pai e mãe falam de futulidades enquanto a menina sente que a cada minuto pode ser a diferença entre a vida e a morte da mulher enterrada.

O conto é um primor não só pela trama bem bolada (com um gancho jogado no meio de uma conversa fútil que será fundamental no fecho da história), mas também pela abordagem. Bradbury escreve o conto como se fosse uma redação escrita pela própria menina: “Meu nome é Margaret Leary e tenho dez anos de idade, e estou no quinto ano da escola pública. Não tenho irmãos nem irmãs, mas tenho um bom pai e mãe, só que eles não me dão muita atenção. E de qualquer maneira, nunca pensamos que teríamos algo a ver com a mulher assassinada”.

Filósofo, poeta, criador de narrativas bem elaboradas e inteligentes, Bradbury é daquelas leituras essenciais para qualquer apreciador de ficção científica, como demonstra o livro E de espaço.

Conto Zen - O tigre e o morango

 


Certa vez um homem andava pela floresta quando foi perseguido por um tigre faminto. Sem outra opção, ele se agarrou a um arbusto e se pendurou num abismo na tentativa de escapar da fera. Quando olhou para baixo, percebeu que havia um outro tigre lá embaixo.

Ou seja: se a queda não o matasse, o felino o faria.

Mas o arbusto não era forte o bastante e a raiz começou a se desprender do solo. Além disso, dois ratos começam a roer a raíz.

A morte era certa.

Nisso, ele olhou para o lado e um viu morango crescendo na parede do penhasco. Largando uma das mãos, ele pegou o morango e comeu.

Foi o morango mais delicioso que ele já comera em toda a sua vida.   

Esse é uma das histórias mais famosas do zen-budismo. Ela reflete sobre assuntos essenciais: o homem pendurado no penhasco, à beira da morte representa todos nós, que em algum momento iremos morrer. Afinal, ninguém é imortal, a morte é inevitável.

Mas sua atitude é extremamente sábia. Ele percebe que a única forma de lidar com isso é viver o momento. Comer o morango representa isso, aproveitar o aqui e agora ao invés de nos preocuparmos com o passado ou o futuro. Isso é chamado no budismo de atenção plena.

Por outro lado, a certeza da morte, da transitoriedade da vida, faz com que cada momento seja especial. Talvez, se saboreasse a fruta em qualquer outra situação, o homem não se espantasse com seu sabor, mas ali, prestes a despencar no abismo, o sabor se torna inigualável. Como dizia Raul Seixas: “Morte morte morte que talvez seja o segredo dessa vida”.

domingo, junho 29, 2025

DDA - Distúrbio de déficit de atenção

 

O livro Mentes Inquietas, de Ana Beatriz Silva (editora Gente) fala sobre uma doença chamada Distúrbio de Déficit de Atenção – DDA. Poucas vezes eu me vi tão bem retratado em um obra e, conversando com amigos, descobri que esse distúrbio é mais comum do que se imagina.  
A própria autora admite que o termo não é adequado, já que dá a entender que a pessoa jamais consegue se concentrar em algo. Na verdade, um DDA consegue, às vezes, concentrar-se em algo (como ler um livro) de tal forma que a casa pode cair que ele nem mesmo irá perceber. Na verdade, não seria uma falta de atenção, mas uma atenção instável: muita concentração em alguns momentos e nenhuma concentração em outros.
Para um DDA é um suplício concentrar-se em uma atividade obrigatória. A autora compara a situação a um carro desregulado, que gasta mais combustível e submete suas peças a um maior desgaste. Muitos DDAs descrevem, que, após atividades obrigatórias, sofrem um profundo cansaço mental e às vezes físico.
Um DDA  em uma palestra cujo tema não lhe é necessariamente interessante irá “viajar” em pensamentos próprios, desligando do tema da palestra. Ou então ficará se mexendo na cadeira ou mexendo em objetos, seu corpo refletindo sua vontade de sair dali correndo.
Os DDAs costumam ser impulsivos e atirar primeiro e pensar depois. A impulsividade, o fazer sem pensar, é uma das principais características desse distúrbio.
Um DDA está fazendo algo aqui e pensando em algo que deveria estar fazendo ali na frente. Isso às vezes até na leitura. Estou lendo aqui um livro de metodologia e estou pensando em um livro de Relações Públicas que preciso ler ou em um texto que preciso escrever, ou em um roteiro que me foi encomendado, ou em uma transparência que preciso preparar. Meu método de trabalho é o mais desorganizado possível. Estou lendo um livro, no meio dele encontro uma frase que me remete a algo que li em outro livro. Largo aquele primeiro livro de lado e pego o outro. No outro encontro outra frase que me remete a outra obra. Quando vejo, estou com cinco ou seis livros abertos na minha frente.
Um DDA está sempre se envolvendo em muitos projetos e nem sempre consegue terminá-los todos. Até porque, quando as coisas começam a dar errado, ele entra em desespero. Isso ocorre porque o cérebro tem dificuldade para acionar uma parte da memória chamada de funcional, cuja função é encontrar na mente situações semelhantes vividas no passado que possam ajudar no problema presente. Uma maneira de lidar com isso é o que os publicitários chamam de "deixar o problema dormir". Quando não consigo resolver um problema a ponto de entrar em desespero, deixo de lado a situação e vou fazer outra coisa. Aprendi isso com o monge Guilherme, do livro O Nome da Rosa. Quando a situação se tornava insolúvel, ele ia tirar uma soneca. Sherlock Holmes tocava violino. Após algum tempo a solução surge espontaneamente. 
Uma vez uma ex-aluna se espantou quando eu disse que estava lecionando metodologia científica: “Você não parece um professor de metodologia científica”. Mas é justamente isso: você procura conhecimentos que te ajudem a lidar com suas dificuldades. Trabalhar com metodologia é uma forma de me organizar melhor, de colocar em ordens os projetos... foi por essa mesma razão que comecei a me interessar pela teoria do caos...
Ainda assim não é fácil. Ao lado do meu computador, tenho um quadro de avisos. De um lado há o FAZER URGENTE, onde coloco as tarefas urgentes. Do outro o FAZER onde coloco as tarefas que necessitam ser feitas, mas não com urgência. Não fosse esse quadro, eu me perderia no meio de tantos projetos e tantas necessidades. Isso funciona para mim, pois, apesar da instabilidade de atenção, nunca perdi um prazo e felizmente nunca precisei tomar remédios.
Um DDA típico era o meu amigo Alan Noronha. Grande escritor, ele nunca conseguia terminar os trabalhos e cumprir os prazos. Há algum tempo recebi um e-mail dele dizendo que ele admira meu pragmatismo. Mal sabe ele que esse pragmatismo é conseguido às duras penas e graças a uma luta diária contra a instabilidade de atenção....
Para a autora, alguém um DDA leve não precisa necessariamente procurar tratamento médico, desde que isso não atrapalhe suas atividades: “O adulto ‘levemente’ DDA por certo não deve ter muitas reclamações a fazer. Ele é dotado de um alto nível de energia e entusiasmo. Sua ligeira desorganização não é suficiente para atrapalhar o andamento de seus projetos. No trabalho, pode-se dizer que, quando sob pressão e desafio, esta pessoa consegue sair-se melhor ainda

Monstro do Pântano – A maldição

 


O número 40 revista Swamp Thing apresentou uma das mais instigantes histórias da saga gótico americano.

Na saga, Moore revisita os monstros clássicos do terror e nesse volume em específico ele se dedica a explorar a mitologia dos lobisomens. O diferencial aqui é que ele usou o tema como uma alegoria a respeito da repressão sofrida pelas mulheres. Assim, a maldição da lua, que transforma pessoas em lobisomens seria também a maldição das mulheres e o período menstrual.

Como pano de fundo de sua metáfora, Moore cria uma tribo fictícia na qual as mulheres eram confinadas durante a menstruação. 


A história começa com uma dona de casa fazendo compras enquanto rememora a história das índias Penamaquot, que, durante os período menstrual eram aprisionadas em uma cabana: “Eram mantidas nas escuridão, agachadas sem nada em que refletir além do fato de serem impuras. Até mesmo o toque da sombra delas contaminaria o solo, mirrando a colheita”.

Abrindo um parêntese: Aparentemente, a tribo Penamaquot não existe, sendo mais uma criação de Moore.

A protagonista vive uma relação abusiva. 


Oprimida pelo marido, Phoebe se transforma num lobisomen, mas sua vingança contra o esposo parece inócua e a única escapatória é o suicídio, assim ela se joga contra um mostruário de facas baratas, um tipo pobre de liberdade.

O texto é um dos exemplos da excelência de Moore: “Atrás da vidraça, uma máquina entoa canções de ninar para as esposas sonâmbulas que empurram seus rangentes carrinhos sob as luzes de neon cortejadas por moscas. O supermercado é uma avanlanche de odores: sabão em pó, queijo, desodorante... e o mais forte de todos, o de vida irreversivelmente estagnada da mulher. O de cabana vermelha. A cabana vermelha está em toda parte. Por que ninguém vê? Por que se entocam tão passivamente no escuro?”.

A cena da discórdia: Bissette não gostou. 


Apesar da qualidade da história, essa edição seria um dos motivos do fim da parceria com Steve Bissette, além da dificuldade do desenhista de acompanhar os prazos. Bissette era filho de um dono de mercearia e sabia que nenhum varejista exporia suas facas de uma forma tão perigosa.

Logan - a despedida de Wolverine

 

O Wolverine foi o símbolo máximo de uma das piores épocas dos quadrinhos de super-heróis. Na década de 1990, a maioria dos heróis se tornaram clones do carcaju: violentos, rasos, cabeça-quente.
Depois de uma fase inicial interessante, nas mãos de Chris Claremont e John Byrne, o personagem se tornou apenas isso: um cara violento, cabeça-quente, que resolve tudo na porrada. E, isso, claro, se refletiu nos filmes do personagem (vale lembrar a introdução do primeiro filme, em que ocorre uma briga imensa por uma pedra que um empresário usava como peso de papel e que ele entregaria tranquilamente se alguém pedisse).
Assim, Logan é uma agradável surpresa por fugir completamente do padrão estabelecido para o personagem e mostrar uma profundidade inesperada.
(ATENÇÃO: SPOILER!)
Nesse novo filme, o Wolverine, muito a contragosto, tem que salvar uma garota que foi clonada a partir de suas células, sendo, de certa forma, sua filha. Agentes governamentais, envolvidos no projeto que criou a menina, farão qualquer coisa para tê-la de volta. Esse plot lembra muito o ótimo A incendiária, um livro pouco conhecido de Stephen King. 
A película é um road movie: à medida em que fogem, a relação entre os dois vai se estabelecendo até culminar na cena de crédito, com a ótima música de Johny Cash. O professor Xavier completa o trio, com alguns dos melhores momentos do filme.
A história tem tudo na medida certa: violência, efeitos especiais (que você mal percebe) e até humor, sempre  resvala no humor ácido.

Nick Raider – Uma ameaça do passado

 


Todos sabem que em qualquer organização, há sempre alguém que se desvia, mesmo nas forças policiais. A história “Uma ameaça do passado”, de Nick Raider, foca exatamente nisso: em um policial que adentrou o mundo do crime.

A história começa com um bando de assaltantes de segunda categoria contratando um motorista para um assalto. Sua figura fria e as várias exigências, entre elas a de que o assalto aconteça uma hora antes do previsto já dão ideia do personagem. O leitor lê e pensa: esse é um profissional, ao contrário dos assaltantes, que parecem indecisos e pouco experientes.

A história gira em torno de um motorista durão. 


De fato, os assaltantes têm pouca experiência, pois não verificaram o tempo de abertura do cofre. Quando pensam que deu tudo errado, dão de cara com uma bolsa repleta de dólares.

Embora um dos assaltantes seja deixado para trás, o grupo acaba se safando graças à habilidade do motorista, que havia se programado para pular com o carro sobre uma ponte que abriria no momento exato (daí sua exigência a respeito da hora).

O assaltantes acabam levando uma mala de dinheiro da máfia. 


Mas o dinheiro da bolsa era do crime organizado e começa uma jornada dupla: de um lado, Nick Raider e os demais policiais tentando achar os assaltantes e prendê-los, e, por outro lado, a máfia tentando localizar os mesmos assaltantes e matá-los, como uma forma de punição e aviso.

Para complicar a situação, surge uma mulher sedutora que afirma trabalhar para o seguro, mas na verdade está a serviço da máfia. Claro que ela se envolve romanticamente com Raider como forma de conseguir informações. A senhorita Shade é uma típica femme fatale, inclusive no visual, com seu vestido tubinho preto, as pernas longas e o cabelo curto.

Uma mulher a serviço da máfia usa o romance com Raider para conseguir informações. 


No final, “Uma ameaça do passado” é uma boa trama noir, com um desenvolvimento que surpreende o leitor e vários níveis de narrativa.

Uma curiosidade é que essa história é tão parecida com o filme Drive, de Nicolas Winding Refn que se poderia pensar que se trata de um caso de cópia. Afinal, tanto na HQ quanto no filme, a trama gira em torno de um motorista de assaltos muito eficiente, que parece nunca demonstrar emoções e cuja habilidade parece surpreendente. Acontece, no entanto, que a HQ de D´Antonio e Polese é 1989 e o filme de 2012. Não é de se descartar, portanto, que alguém em Hollywood tenha lido essa HQ italiana e se inspirado para o filme.