segunda-feira, maio 18, 2009

Aleph


“ Eu não sou eu. Eu sou você. Eu sou todos nós. Hoje eu mais nada faço. Eu somente falo
pela tua voz. Hoje durante um segundo. Eu fiquei a sós. S. O.S com o mundo. Hoje eu encontrei no fundo do poço o meu rosto”
Marcus Vinícius / Zé Ramalho


Eu sonhei com destinos virtuais, vislumbrei caminhos esquecidos, terras distantes e mundos inimagináveis. Desde então, jamais fui o mesmo. Estive atormentado pelos destinos que descortinei. Jamais terei novamente a deliciosa sensação do novo. Conheci todos os gostos, todas as cores e todas as emoções. Nem mesmo a menor das formigas me é desconhecida.
Creio que chegou o momento de revelar a história de como vim a ter o conhecimento absoluto. Talvez este seja o momento, embora meus olhos estejam fracos e enganadores e meus dedos trêmulos... embora minha testa se umedeça de temor diante da grandiosidade do que vou relatar. Peço, assim, que o leitor me desculpe caso o resultado saia aquém do desejado. Dizem que escrever é como andar: uma vez se aprendendo, nunca se esquece. Mas eu, pobre coitado, sou como um bebê. Tropeço, caio, ralo o joelho e só a grandes custos continuo em frente...
O leitor, se teve a sorte de lê-lo, certamente se lembrará de Jorge Luís Borges. Eu, no entanto, o desconheci por completo até os 25 anos, quando ganhei um de seus livros, chamado Aleph.
Entre os vários contos, alguns detestei, outros simplesmente pulei e alguns foram o bastante para ganhar minha admiração. Entre eles o que dava título ao volume. Nele, Borges relata seu encontro, no porão de uma velha casa de Buenos Aires, com um Aleph, um ponto do universo que contém todos os outros.
Por esses tempos, comecei minha pesquisa sobre a teoria do caos. Estava convencido de que o caos se relacionava diretamente com a informação. Minhas suspeitas nesse sentido se deviam ao fato lógico de que um fenômeno é tanto mais caótico quanto mais imprevisível for. Por outro lado, o que caracteriza a informação é justamente a sua carga de novidade. Uma mensagem absolutamente previsível não tem qualquer informação. Portanto, quanto mais caótico um fenômeno, mais caótico ele é.
O Aleph descrito por Borges era a materialização do máximo de caoticidade. Todas as informações do universo reunidas em um único ponto!
Passei noites sem dormir. Não conseguia encontrar melhor solução às minhas inquietações do que o Aleph descrito por Borges. Confesso que estive a ponto de vasculhar todos os porões de Belém – e só não o fiz por motivos óbvios.
Estive, portanto, muito tempo procurando pelo Aleph. Mal podia imaginar que justamente quando eu estava perdido eu o encontraria...
A coisa toda aconteceu em uma das minhas viagens ao interior do Pará. Acampamos num sítio meio que abandonado no interior da floresta.
Na manhã do segundo dia, resolvi conhecer a mata à volta. Fui caminhando em meio à vegetação, fascinado com os raios de sol que penetravam por entre as folhas, formando fios luminosos no ar.
Passarinhos davam gritos agudos aqui e ali. Respirava fundo para aspirar o cheiro reconfortante do orvalho nas folhas. Andei, assim, inebriado, por quase uma hora. Quando dei por mim, tinhas saído do caminho. E a imprudência fizera com que eu me esquecesse da bússula.. estava perdido!
Comecei a correr, desesperado, cortando os braços no capim navalha e batendo o rosto nas folhas e galhos do caminho. Muito tempo depois, encontrei um igarapé. Talvez fosse minha salvação. Bastava segui-lo e certamente iria parar em algum lugar habitado.
Agachei e mergulhei as mãos em concha na água. Enquanto molhava a cabeça e os ombros suados, instintivamente fechei os olhos. Quando os reabri, percebi, na periferia de minha visão, uma estranha luminosidade.
Levantei. Havia desaparecido. Fora rápido como um flash. Ainda assim, fui seguindo naquela direção. Dei com uma grande árvore em cuja base se abria um buraco de proporções grandiosas. Ajoelhei-me e olhei em seu interior.
Foi quando aconteceu. Fui dominado pela sensação de que meu corpo havia peso. Senti a cabeça às voltas como se estivesse bêbado.
O momento seguinte foi plasmado pela sensação de que meus olhos se abriam para uma visão de 360 graus. Tinha consciência de tudo que estava à minha volta. Conseguia antecipar o movimento seguinte do peixe na água. Compartilhava da paciência estóica da minhoca, perfurando o chão sob meus pés. Antecipava o canto dos pássaros num dos galhos e admirava a velhice secular da árvore que me envolvia.
Vi o nascimento de meu filho. Percebi o momento mágico da fecundação. Observei os espermatozóides nadando numa competição cujo prêmio seria a vida. Lembrei-me de uma época em que as mulheres eram veneradas por serem as únicas conhecedoras do segredo da concepção.
Vi um homem morrendo numa trincheira, o peito trespassado por um tiro. Em seu bolso havia o retrato de sua amada, que choraria por ele durante 30 anos.
Gozei e bebi com prostitutas russas em plena São Paulo do século XIX.
Copiei iluminuras, recitando versos em latim e fiz isso até que meus dedos doessem e minhas pernas tivessem câimbras.
Berrei com o povo pedindo a cabeça do rei. Ao meu lado havia um homem chamado Marat e sua boca exalava ódio. Vi o rosto de uma menininha que chorava, enquanto sua mãe a abandonava.
Experimentei o sangue de um vampiro. Beijei uma moça de pele branca como leite. Cacei búfalos nas planícies sobre um grande cavalo. Escalei montanhas e naveguei em uma corveta.
Morri 300 milhões de vezes. Conheci a dor, a tristeza, a alegria, a depressão, o entusiasmo e a fadiga. Senti a ansiedade enquanto abria uma carta com as mãos trêmulas. Padeci da solidão da velhice e da inexperiência da juventude.
Vi meus amigos morrerem e uma abelha polemizando uma flor. Dancei como doido nos braços de uma birmaneza.
Senti todos os gostos, todos os sabores e todas as essências.
Vi todo o meu futuro como se folheasse páginas de um livro empoeirado. Passaram-se milhares de século e nem mesmo um segundo.
Quando acordei, estava rodeado pelos meus amigos. Haviam me descoberto, desmaiado no chão da floresta. Segui, cambaleante, com eles até o acampamento. Fomos embora no dia seguinte.
Estava como um doente, mas nenhum médico foi capaz de diagnosticar o meu mal. A razão para isso era simples: estava doente de velhice. Era como se tivesse um milhão de anos e ainda não completara 30.
Vivi naquele dia toda uma velhice milenar e, desde então, tenho apenas me arrastado pelos anos. Não tenho mais nada a conhecer. Só aguardo a morte. Assim, acordo, levanto, como e novamente durmo. Eternamente, até o fim...

Leia também Borges, el memorioso

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