terça-feira, dezembro 29, 2020

Etrigan, de Jack Kirby


Na década de 1970 Jack Kirby, o co-criador do universo Marvel, foi para a rival DC Comics com o status de astro pop. Tinha liberdade total para criar, editar, desenhar e escrever os títulos. Entre os vários gibis lançados por ele nesse período está o demônio Etrigan, que revolucionou o universo mágico da editora.

Mas, por trás da genialidade desses títulos, das grandes ideias, e do desenho extremamente dinâmico de Kirby – cujo estilo influenciou praticamente todos os artistas dos comics americanos posteriores – algo fazia falta: um bom texto.

Os números 9 e 10 demonstram bem essa deficiência.

O número 9 começa com um conto isolado, que não tem nada a ver com a saga de Fairfax e Galateia, a principal trama desses números.

Nesse conto é narrado como Etrigan evitou um ataque de demônios a uma vila, na Idade Média.

A belíssima splash page de abertura traz um texto que demonstra bem o estilo de textual de Jack Kirby, truncado como um carro andando com o freio de mão levantado:  

“Muitos anos depois da morte de Camelot e do desaparecimento de Merlin, o feiticeiro do domínio dos homens, o triunfo do mal espalhou escuridão e terror pelo mundo. Homens lutaram contra o poder da magia e encolheram-se em cantos sombrios ante seu poder”.

Mesmo descontando alguma inabilidade do tradutor, é possível perceber que falta fluência ao texto. Há frases sem sentido, como “feiticeiro do domínio dos homens” e outras que simplesmente não funcionam, por serem confusas, como  “Homens lutaram contra o poder da magia e encolheram-se em cantos sombrios ante seu poder”.

Segue-se uma impressionante página dupla, com Etrigan lutando contra os demônios invocados pelo feiticeiro. O texto diz:

“Foi uma noite em que um mestre da magia fez uso de feitiços antigos para comandar forças do impronunciável para que eles fizessem como mandado e tomassem a cidade”.

Dá saudades da época em que a Abril cortava os textos originais. Dava fácil para cortar um dos “ques”, da mesma forma que a expressão “como mandado”. O texto ganharia fluência e ficaria menos truncado.  

Depois desse pequeno conto, começa a história intitulada “O que aconteceu com Farley Fairfax?!”, que começa com uma splash page, agora de Jason Blood em primeiro plano segundo segurado por seus dois amigos. O texto, confuso, repleto de orações subordinadas e com frases que não acabam diz:

“O demônio que viveu como Homem!!! De tempos em tempos ele reaparece e se lança em ação em uma explosão de fúria cintilante! Mas aqui e agora, em Gotham City, ele foi pego de surpresa e foi eliminado por sua identidade mortal Jason Blood, que não podia mais viver à sombra de seu irmão demoníaco, fez uso de feitiçaria ancestral e destruiu o demônio”.

A trama é interessante, sobre um ator que teve o rosto arruinado por uma feiticeira e busca vingança sequestrando a namorada de Jason, pois esta é, coinscidentemente, parecida com a feiticeira. Destaque para a sequência em que Etrigan volta ao passado, na edição 10, para reviver o momento em que a feiticeira invoca um demônio em pleno palco, para surpresa da plateia, que acredita que se trata de parte do espetáculo.

A cada cinco páginas, Kirby traz uma belíssima e impressionante splas page, mas que tem também os terríveis textos de abertura.

Os textos menos confusos são aqueles quem Kirby conta aquilo que seu desenho já está mostrando: “Então as pedras das paredes se soltam sobre Jason...” “A mão direita do demônio gesticula ritualisticamente, varrendo o ar. Então, chamas demoníacas saem de seus dedos”.

"Morram! Morram!"  


Os diálogos são puramente expositivos. Não há, por exemplo, maneiras diferentes de falar entre os vários personagens ou demonstração de emoção: “Detenham-no! Ele não pode nos vencer quando a vitória está em nossas mãos!” “Morram! Morram!”. Não há personalidade nos diálogos.

Aliás, houve uma tentativa de Kirby de imprimir uma fala própria ao demônio. Em sua primeira aparição ele rimava, mas essa característica foi logo esquecida. Quem fez da rima uma característica do personagem foi Len Wein, em 1984, da revista DC Comics Presents 66.

Etrigan só passou a ser um demônio rimador com Len Wein. 


Pouco depois, Alan Moore usou o personagem em Saga of the Swamp Thing 27 e consolidou essa característica de Etrigan ser um demônio rimador (posteriormente, em Monstro do Pântano, apareceria toda uma legião de demônios rimadores à qual Etrigan pertence). Ou seja, a característica textual mais conhecida de Etrigan foi estabelecida por outros escritores, posteriores a Kirby. 

É de se perguntar o que aconteceria se o título fosse editado por outra pessoa e os diálogos e textos ficassem a cargo de alguém que escrevia bem. O conceito era impressionante, assim como a arte de Kirby. Talvez a revista não tivesse durado apenas 16 números.

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