Quem lia quadrinhos na década de 80 espantava-se com a capacidade narrativa do mestre inglês Alan Moore. E surgia sempre a dúvida: ele se sairia tão bem na literatura, sem o auxílio dos desenhos? A voz do fogo, seu livro recentemente lançado no Brasil pela Conrad Editora, prova que quem é bom, é bom em qualquer mídia.
A obra traça a trajetória de Northampton, a cidade natal de Moore, por meio de seus habitantes. A trama tem início quatro mil anos antes de cristo e prossegue até 1995. São vários contos interligados que nos dão um panorama geral da localidade e de sua evolução, mesclando magia, reencarnação e sacrifícios.
O primeiro conto, O porco do bruxo, é provavelmente o mais interessante e também o de leitura mais difícil. Gira em torno do drama de um garoto na Era Neolítica, abandonado pela tribo quando sua mãe morreu. Imagine, então, o desafio de redigir uma aventura em primeira pessoa cujo narrador ainda não domina a linguagem falada. Para tanto, Moore cria uma linguagem estranha, sem tempos verbais e com pouquíssimos pronomes. O resultado é fantástico, mas árduo.
Sinta só este exemplo: Agora olha eu para baixo, para a grama em fundo da colina, vê porcos. Porcos grandes, compridos, um atrás de outro, traçando a fêmea, pelo que parece. Ver faz um osso subir dentro de eu vontade. Eu e barriga de eu, junto, posso descer colina correndo até porcos, acertar pedra em um e fazer ele sem vida, para comer ele todo. Antes é eu juntando isso. Agora é fazendo isso.
O episódio que vem a seguir é igualmente interessante. Os campos de cremação é uma trama policial e de suspense ambientada no ano 2.500 antes de Cristo. Em viagem para conhecer seu pai, um bruxo de uma rica aldeia, uma jovem depara-se com uma esperta andarilha, que já havia feito de tudo, inclusive vender uma criança perdida da mãe como escrava. Ingenuamente, a menina conta-lhe detalhes da fortuna do seu genitor. A mau-caráter, então, mata a incauta e apresenta-se na aldeia, fazendo-se passar por ela. A grande questão é saber se a impostora será descoberta ou não. A todo instante, Alan Moore mantém-nos no fio da navalha, jogando com os nervos da personagem e os nossos.
Neste mesmo episódio, dá-se algo que define bem a atuação do autor. O velho bruxo tatua, no corpo, o mapa de Northampton e assim influencia a cidade, que, por sua vez, exerce influência sobre ele. O mesmo ocorre com Moore. Suas palavras são uma espécie de magia simbólica que molda e se deixa moldar pela cidade. Compreender como isso transcorre e descobrir as coincidências entre as diversas tramas é mais um dos atrativos do livro. Muitas vezes, a conclusão de uma narrativa dá-se apenas em outra. Além disso, há personagens fixas, como arquétipos, que surgem aqui e acolá, permeando os textos. Entalhando as palavras, Moore garante que, se o conteúdo mágico e holístico do livro não for suficiente para atrair o leitor, a poderosa narrativa cuidará de prender sua atenção até o último parágrafo. São, portanto, mais de trezentas páginas, mas que muito facilmente serão lidas num fôlego só.
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