segunda-feira, novembro 14, 2022

Epicuro: a filosofia do prazer

 


Na Grécia antiga, a filosofia epicurista tentou entender como o homem pode ser feliz

No ano de 306 a.c. o filósofo grego Epicuro, então com 36 anos, abriu sua escola em Atenas. Epicuro comprara para tal uma casa com jardim e, ao invés de trancafiar-se em uma sala com os alunos, preferia ficar ao ar livre, conversando com seus eles. Observadores da época diziam que não parecia um mestre rodeado de alunos, mas sim um grupo de amigos que filosofavam juntos. Aquele sábio simpático e hospitaleiro se debruçou sobre uma pergunta que inquieta o homem há séculos: como podemos ser mais felizes? Sua resposta: através do prazer. Essa filosofia do prazer influenciou diretamente não só a sociedade grega, mas principalmente a romana e chegou a ser deturpada ao ser vista como uma busca irrefletida do prazer carnal. Também teve grande influência sobre a ciência moderna ao estabelecer os alicerces do que seria a teoria atômica.

Vida

Epicuro nasceu em janeiro de 341 a.C, na ilha de Samos. Sua família fazia parte da nobreza falida de Atenas e viajara para Samos na qualidade de colonos. Seu pai, Néocles, era mestre escola e sua mãe, Querestrata, era curandeira e adivinhava o futuro. Ele costumava a ir com a mãe à casa de pessoas doentes para afastar o mau-olhado e curar doenças. Essa experiência infantil lhe deu uma boa ideia das crenças e superstições dos gregos, que ele iria criticar duramente em sua filosofia.
Desde pequeno, Epicuro se destacava pela inteligência e pelo espírito indagador. Aos 14 anos, quando o professor lhe ensinava o verso de Hesíodo segundo o qual no princípio de todas as coisas vieram do caos, ele perguntou: “E o casos, de onde veio?”, O professor, aturdido, não soube o que fazer e respondeu que esse tipo de pergunta deveria ser feita diretamente aos filósofos.
E foi o que Epicuro fez. Estudou vários sistemas filosóficos, entre eles os de Platão e o de Aristóteles, mas sem se deixar influenciar por eles e sem aprofundá-los. Com o tempo, sua inteligência foi reunindo em torno de si um grupo de discípulos que o seguiam como a um mestre e o acompanharam quando ele foi para Atenas. Acredita-se, inclusive, que o dinheiro para comprar o jardim que o tornaria conhecido veio de um aluno.
Epicuro não gostava de trancar-se com seus alunos em uma sala e preferia dar suas lições ao ar livre, razão pela qual sua instituição ficou conhecida como escola do jardim. Também não havia um horário para as aulas, já que a qualquer momento ele podia ser visto lá, ou cuidando das plantas, ou conversando com seus discípulos.
A personalidade de Epicuro foi fundamental para fazer com que o grupo permanecesse unido (tanto que mesmo os inimigos do epicurismo admitiam que a escola nunca teve cisões ou brigas). Segundo relatos da época, o mestre era caridoso com os irmãos, brando para com os escravos e procedia com afeto para com todas as pessoas.
Uma das questões principais que ocupavam o tempo desse grupo de amigos era a felicidade. É compreensível que essa fosse uma preocupação principal numa cidade que já fora gloriosa e que na época vivia em decadência, devastada por guerras.
Uma outra escola, o estoicismo, já se ocupava do mesmo assunto.  Segundo os estóicos, o mundo era governado por um determinismo implacável do qual não se podia fugir e a receita da felicidade estava em aceitar o que a vida nos dava. Uma anedota ajuda a compreender esse ponto de vista. Dizem que Zenão, criador do estoicismo, castigava um escravo por sua falta quando este argumentou que não tinha culpa, pois, segundo a filosofia de seu senhor, ele estava condenado, por toda a eternidade, a cometer aquela falta. Zenão replicou que, da mesma forma, ele estava destinado a bater no escravo.
Epicuro discordaria dessa visão determinística e argumentaria que nós mesmos somos guias de nosso destino, pois podemos formá-lo com nosso raciocínio.


Prazer

Para Epicuro, o segredo da felicidade estava na busca do prazer, pois só o prazer pode levar à felicidade. Mais tarde, em Roma, sua filosofia seria deturpada, configurando-se como uma busca desenfreada de prazer sensual e bebedeiras, também conhecida como hedonismo. Mas, na filosofia de Epicuro, o prazer é configurado como ausência de dor. Aquilo que nos dá prazer momentâneo, mas posteriormente provoca dor, em nós ou em outros, não é o prazer verdadeiro, pois só podemos tirar prazer da paz de espírito, a hedoné .. Exemplo disso é uma bebedeira, que provoca prazer momentâneo, mas depois ocasiona a ressaca.  
Além disso, buscar o prazer não significava ser dominado pelos desejos. Segundo Epicuro, devemos fruir o prazer de cada situação, sem nos preocuparmos com o que não temos. “Não deves corromper o bem presente com o desejo daquilo que não tens; antes deves considerar que aquilo que agora possuis se encontrava no número dos teus desejos”, dizia.
Essa visão do prazer está resumida no programa da escola, que, dizem, era gravado no pórtico de entrada: “Estrangeiro, aqui te encontrarás bem: aqui reside o prazer, o bem supremo. Encontrarás nesta casa um mestre hospitaleiro, humano e gracioso, que te receberá com pão branco e te servirá abundantemente água clara dizendo-te: Não foste bem tratado? Estes jardins não foram feitos para irritar a fome, mas para a apaziguar, não foram feitos para aumentar a sede com a própria bebida, mas para a curar por um remédio natural e que nada custa. Eis aqui a espécie de prazer em que tenho vivido e em que envelheci”.
Epicuro viveu de acordo com essa filosofia, comendo e bebendo sem excessos, tirando grande alegria da conversa com seus discípulos.

Átomos

Um aspecto importante na teoria epicurista e na sua noção de felicidade é a teoria atômística. Epicuro percebeu que um dos aspectos que impedem as pessoas de serem felizes é o medo da morte e dos deuses. Sua experiência infantil com a mãe curadeira havia lhe ensinado como as pessoas temiam a morte, agarrando-se à vida e a superstições.
Epicuro defendia que todas as coisas são feitas de átomos. Os átomos, em número infinito, estão em constante movimento. A junção e o movimento dos átomos é que fazem com que as coisas sem diferentes. Assim, tanto um homem como uma pedra são formados de átomos, mas configurados de forma diferente. Como são eternos, os átomos apenas mudam de lugar e se unem em outros corpos. Pela teoria epicurista, que seria resgatada pela ciência moderna, quando morremos, nossos átomos se espalham pelo universo e se transformam em material para criação de outros organismos.
Como, na teoria epicurista, tanto o corpo quanto a alma são feitos de átomos, não há possibilidade de existência no além, de modo que não há razão para temer a morte, pois aquilo que se dissolveu em suas partes não possui mais sensações. Epicuro dizia que a morte é o fim de todas as sensações e temê-la é bobagem, pois quando nós existimos, a morte não existe e, quando a morte chegar, nós não mais existiremos como pessoa. Seremos apenas átomos sem sensações, que se unirão com outros para formarem outros corpos.
Com a teoria atômica, Epicuro tirou de seus discípulos o medo da morte.
O temor dos deuses também seria destruído pela filosofia do jardim. Epicuro não negava a existência dos deuses, mas para ele, eles eram seres tão perfeitos que não se incomodavam com os humanos. Viviam num estado de total imperturbabilidade, num espaço entre os cosmos. Como seres perfeitos e inatingíveis, eles não recompensavam nem puniam os homens, cujo destino estava nas próprias mãos.
Dessa forma, Epicuro não só tirava o poder das mãos dos sacerdotes, que já não podiam ameaçar os homens com a fúria das divindades, como dava ao homem a responsabilidade sobre seu destino e sua felicidade.
Livre do medo da morte e dos deuses, o epicureu deveria viver uma vida racional, justa e venturosa, não prejudicando os interesses de outros e, principalmente, seguindo as leis.

Mulheres

Enquanto estava vivo, Epicuro ensinou todos os dias, em qualquer horário, recebendo tanto homens quanto mulheres. A forma avançada como as mulheres eram encaradas no epicurismo causou escândalo na sociedade machista moderna, quando a obra do filósofo foi recuperada. De fato, muitas mulheres tiveram papel essencial na difusão do epicurismo. Contrariando costumes da época, até escravos eram admitidos entre os epicuristas.
Mesmo sofrendo uma doença que lhe provocava dores terríveis, Epicuro não se deixava abater e perseverava em sua serenidade. “Durante minhas doenças”, escreveu ele “não falava a ninguém do que sofria no meu miserável corpo; não tinha essa espécie de conversação com aqueles que vinham me visitar: não falava com eles senão daquilo que desempenha na natureza o primeiro papel. Procurava sobretudo fazer-lhes ver que a nossa alma, mesmo sem ser insensível às perturbações da carne, podia no entanto mater-se isenta de cuidados e no gozo pacífico dos bens que lhe são próprios. Mesmo nesse tempo eu vivia tranqüilo e feliz”.
No dia em que morreu, ele escreveu a um amigo: “Este é o último dia de minha vida, ainda assim é um dia feliz”.
Com a morte de Epicuro, seus discípulos se mantiveram unidos e perseverantes em sua doutrina. Essa docilidade tem gerado alguma das principais críticas ao epicurismo. Dizem que lembravam do mestre como um deus e que a filosofia não se aperfeiçoou pelo extremo respeito que tinham pelas palavras do fundador. De fato, mesmo com o tempo, o epicurismo continuou o mesmo.
Poucas escolas filosóficas foram atacadas tão furiosamente. Os principais ataques vinham dos estóicos, provavelmente por inveja, já que os modos austeros de sua doutrina arregimentava poucos adeptos, enquanto que os seguidores do epicurismo aumentavam a olhos vistos. De fato, além da população de forma geral, muitas personalidades adotaram o epicurismo como modo de vida. Em Roma, o poeta Lucrécio ficou famoso ao cantar as ideias de Epicuro em verso e até mesmo o famoso orador Cícero, embora fosse influenciado pelo platonismo, tinha grande respeito pelos epicuristas. Os dois maiores poetas romanos, Virgílio e Horácio foram influenciados pelo epicurismo.
Em todo o mundo helênico, muitos homens e mulheres tornaram-se adeptos do epicurismo. Muitos não entenderam corretamente a filosofia de Epicuro e converteram-na em uma busca desenfreada pelo prazer sexual em meio a bebedeiras. Estes, segundo a maioria dos autores, não eram epicuristas, já que essa licenciosidade fugia da ideia de felicidade epicurista, que era, essencialmente, a paz de espírito.

Influência

A influência epicurista nessa época era tão grande que Diógenes Laércio, ao escrever a biografia dos filósofos, dedicou todo o capítulo 10 a Epicuro.
Entretanto, nem mesmo esse sucesso garantiu que a vasta obra escrita de Epicuro sobrevivesse. A maioria dos escritos se perdeu nos primeiros séculos da era cristã, até por conta da luta entre cristãos e pagãos. O epicurismo sobreviveu graças ao poema Da natureza, de Lucrécio e de trechos citados em outras obras. Diogenes Laércio teve a felicidade de incluir na biografia do filósofo quatro pequenos manuscritos.
Na época do Renascimento esses escritos foram redescobertos, especialmente por causa de Poggio. O trabalho do professor Pierre Gassendi, que usou o atomismo para atacar o cartesianismo, também ajudou a divulgar o epicurismo.
A filosofia epicurista também ganhou um impulso no ocidente da partir do ano 1738, quando foi encontrada a cidade de Herculano, que havia sido soterrada pela erupção do vulcão Vesúvio no ano 79 d.C. Na cidade havia uma biblioteca com vasta obra de Epicuro. A maioria das obras havia sido carbonizada pela lava, mas o pouco que restou causou grande impacto sobre a intelectualidade.
No século 19, a teoria atômica foi definitivamente resgatada e serviu de base para boa parte da física moderna.


Aforismos

A maior parte do pensamento de Epicuro sobreviveu graças aos aforismos, pequenas frases que resumem sua filosofia. Conheça alguns dos aforismos epicuristas.
 “Há também mundos infinitos, ou semelhantes a este ou diferentes. Uma vez que os átomos são infinitos e são levados aos espaços mais distantes, não há nada que impeça a infinidade de mundos.”
“Nem a posse de riquezas, nem a abundância de coisas, nem a obtenção de cargos ou poder produzem a felicidade e a bem-aventurança; produzem-na a ausência de dores, a moderação dos afetos e a disposição de espírito que se mantenha nos limites impostos pela natureza.”
“Se queres enriquecer Pítocles, não lhe acrescentes riquezas: diminui-lhe os desejos.”.
“Encontro-me cheio de prazer corpóreo quando vivo a pão e água e cuspo sobre os prazeres da luxúria, não por si próprios, mas pelos inconvenientes que os acompanham.”
“A quem não basta pouco, nada basta.”
“A justiça não tem existência por si própria, mas sempre se encontra nas relações recíprocas, em que exista um pacto de não produzir ou sofrer dano.”
“As leis não existem para os sábios, mas para impedir que estes recebam injustiça.”
“De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da amizade.”
“O justo é sumamente sereno; o injusto, cheio da maior perturbação.”

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