segunda-feira, agosto 12, 2024

Dupla criativa


 

No livro A história secreta da criatividade, Kevin Ashton defende que, ao contrário do que se imagina, as melhores duplas criativas são formadas por pessoas muito diferentes entre si.

E dificilmente eu conseguiria imaginar pessoas tão diferentes quando eu e Bené, uma diferença que, na época da dupla, se destacava até visualmente e em termos de vestimenta. Há uma matéria conosco no jornal O Liberal em que o compadre, musculoso, está usando uma camiseta tão apertada que parece prestes a estourar no seu peito e eu, magrelo, estou usando uma camisa que parece ter pertencido a alguém pelo menos vinte quilos maior que eu.
Bené sempre foi extrovertido, o tipo que se sente bem em qualquer cenário, sendo o centro das conversas e atenções. Eu, ao contrário, sempre fui introvertido e reservado, o tipo que numa festa provavelmente vai ser encontrado lendo algum livro do proprietário.
A diferença física entre nós era visível até mesmo nas fotos de jornais
Essas diferenças se revelavam até mesmo no processo criativo. Bené, como o seu ídolo Jack Kirby, era uma máquina de ideias. Ele simplesmente jorrava conceitos e tinha uma capacidade extraordinária de pensar narrativas visuais. Quando me contava suas ideias, ele não só narrava as mesmas, mas também a forma como elas seriam visualmente apresentadas, com ângulos e planos. Mas, em comunhão com essa fornalha de ideias, também havia uma indecisão crônica. A boa ideia de manhã era considerada uma péssima ideia de tarde.
Eu, ao contrário, levo um longo tempo elaborando a trama e até mesmo burilando o texto (para quem acha que escrevo muito, isso está muito mais relacionado à disciplina do que a uma velocidade real). Cada história que crio é um verdadeiro parto, um processo que pode durar meses ou até anos, como nos casos dos meus romances. Eu não sento para escrever antes de ter todo o texto na cabeça, já muito bem definido e às vezes chego a passar longo tempo pensando em uma única frase.
Além disso, enquanto Bené se preocupa essencialmente com a ação, eu estou mais preocupado com os personagens e seus sentimentos. Enquanto Bené está preocupado que a história seja empolgante, eu estou preocupado que a história faça sentido, que toda as peças se encaixem.
Essa junção de visões é que fazia a diferença em nossas HQs, de modo que um completava o outro.
O nosso método de trabalho era o Marvel way, de uma forma que devia ser muito semelhante ao que Stan Lee e Jack Kirby faziam. Nós discutíamos a história. Uma vez estabelecidos os conceitos principais, o Bené se sentava e fazia o rafe – eu ficava impressionado com a rapidez com que ele fazia isso. A narrativa visual simplesmente jorrava da caneta. Eu, ao contrário, ficava longo tempo olhando as páginas, burilando a narrativa, pensando no que podia fazer. Quando sentava, já tinha normalmente todo o texto na cabeça, ou pelo menos boa parte dele.
Todas as características do nosso processo criativo aparecem naquela história que tanto eu quanto o Bené consideramos a nossa melhor – Refrão de Bolero. A história tinha sido criada a partir da música dos Engenheiros do Hawaii em especial do trecho: “Um erro assim tão vulgar nos persegue a noite inteira e quando acaba a bebedeira ele consegue nos achar”, que aparece na última parte. Sim, nós criamos toda uma história a partir de uma citação que só faria sentido quando o leitor lesse a última página.



(Trecho do meu livro A árvore das ideias)

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