terça-feira, março 04, 2008


ALEPH 2

Levantei. Havia desaparecido. Fora rápido como um flash. Ainda assim, fui seguindo naquela direção. Dei com uma árvore grande, em cuja base se abria um buraco de proporções grandiosas. Ajoelhei-me e olhei em interior.
Foi quando aconteceu. Fui dominado pela sensação de que meu corpo havia perdido inexplicavelmente o peso e o retomado no momento seguinte. Senti a cabeça às voltas, como se estivesse bêbado.
O momento seguinte foi plasmado pela sensação de que meus olhos se abriam em uma visão de 360 graus. Tinha consciência de tudo o que estava na minha frente, atrás, acima e abaixo. Consegui adivinhar o movimento seguinte do peixe na água, compartilhei da consciência estóica da minhoca escavando o chão sob meus pés. Antecipei o canto dos pássaros nos galhos e admirei a velhice secular da árvore que me envolvia.
Vi o nascimento de meu filho. Percebi o momento mágico da fecundação e a tragédia irrecuperável de sua morte.
Vi um homem morrendo numa trincheira, o peito transpassado por um tiro. Em seu bolso, a foto de uma jovem que choraria por ele por 30 anos, quando enfim se mataria.
Gozei e bebi com prostitutas polonesas em plena São Paulo do século XIX. Copiei iluminuras, recitando versos em latim, e fiz isso até que meus dedos doessem e minhas pernas tivessem câimbras.
Berrei com o povo pedindo a cabeça do rei. Ao meu lado, havia um homem chamado Marat e sua boca exalava ódio. Vi o rosto de uma menina que chorava enquanto a cabeça de sua mãe rolava pelo chão.
Experimentei o sangue de um vampiro. Beijei uma moça de pele branca como leite. Cacei búfalos nas planícies, sobre um grande cavalo malhado. Escalei montanhas e naveguei num galeão.
Morri 300 mil vezes. Conheci a dor, a tristeza e a fadiga.
Senti ansiedade ao abrir uma carta com as mãos trêmulas. Padeci da solidão da velhice e da inexperiência da juventude.
Vi meus amigos morrerem e uma abelha polinizando. Dancei como um louco nos braços de uma birmanesa. Senti todos os gostos, todos os sabores e todas as essências.
Vi todo meu futuro como se folheasse um livro empoeirado. Passaram-se todos os séculos e nem mesmo um segundo.
Quando acordei, estava rodeado pelos meus amigos. Haviam me descoberto desmaiado no chão da floresta. Segui, cambaleante, com eles, até o acampamento. Fomos embora no dia seguinte.
Estava doente, mas nenhum médico soube diagnosticar meu mal. A razão para isso era simples: estava doente de velhice. Era se tivesse um milhão de anos e ainda não completara 30.
Vivi naquele dia toda uma velhice milenar e, desde então, tenho apenas me arrastado pelos anos. Não tenho mais nada a conhecer. Só aguardo a morte, que me libertará do determinismo de tudo saber e tudo conhecer. Assim, acordo, levanto, como e novamente durmo.
Eternamente, até o fim.

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