Até a década de 1980, nos casos em que maridos matavam suas esposas, os julgamentos acabavam sendo focados nas vítimas. Os advogados de defesa pretendiam mostrar que a vítima não prestava e, portanto, merecia ser morta. É o princípio da "legítima defesa da honra". A lógica era: quem merecia morrer já morreu, então vamos soltar esse pobre homem, que matou porque era o seu dever.
Uma aberração jurídica, esse argumento tem sido ressuscitado pelo advogado de defesa de Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, o Cadu, assassino confesso do cartunista Glauco. A linha da defesa é que Cadu era um garoto feliz e carinhoso, que nunca revelou sinais de violência antes de começar a frequentar a igreja Céu de Maria, dirigida por Glauco. Depois desse episódio, ele teria se transformado em um monstro, um louco, que rezava para as plantas e não dizia coisa com coisa. O máximo que o pai do assassino, certamente orientado pelo advogado, admite sobre o filho é que, antes de Cadu ter contato com o chá do Santo Daime, ele era indeciso sobre a profissão que iria seguir. Fora isso, era um santo. O fato dele ser usuário de drogas, ter passagem pela polícia por tráfico, ter abandonado três cursos universitários e não ter qualquer ocupação não impede a defesa de pintá-lo como santo que virou demônio depois de entrar para a igreja dirigida por Glauco. Essa versão da história foi comprada pela TV Record e pela Veja.
A matéria da Record fez questão de começar a matéria sobre o assunto mostrando fotos de Cadu na infância, feliz e carinhoso com a família. Após a entrada na igreja Céu de Maria, as fotos escolhidas foram aquelas que distorciam seu rosto ou a imagem dele preso, como um animal sem raciocínio. De tempos em tempos, em momentos adequados, fotos do garoto feliz e carinhoso eram intercaladas pelas imagens de Cadu preso. Uma narração em off, dizendo que o rapaz mudou depois que entrou na igreja Céu de Maria, ilustrada pelas duas imagens contrastantes passam a informação melhor do que outra coisa. É como aqueles comerciais do antes e depois, sendo que nesse caso o sentido é oposto: se você for um santo, irá se tornar um louco assassino se entrar para o Daime.
A intenção é óbvia. Não é segredo que a Record pertence à Igreja Universal, a quem muito interessa criticar e, se possível, destruir uma igreja rival. Na lógica capitalista da Universal, toda outra igreja é uma concorrente e deve ser tratada como tal.
A revista Veja, que sempre se posicionou contra a liberação do chá aiuasca, tem comprado a versão do advogado com recibo e tudo. "Permitir que portadores de psicoses como a esquizofrenia bebam o chá da seita Santo Daime equivale a jogar gasolina sobre uma casa em chamas. Tudo indica que foi exatamente o que os seguidores da seita fizeram durante os três anos em que Cadu frequentou o local", diz a matéria publicada no dia 21 de março.
Glauco, como dirigente da igreja Céu de Maria, seria culpado pela situação: "Glauco foi, sim, solicitado a não mais ministrar o alucinógeno a Cadu ainda em 2007. Por descuido ou desconhecimento acerca do estado de saúde do rapaz, ele não atendeu ao pedido". Tanto a Record quanto a Veja dão a entender, embora não declaradamente, que Cadu teria cometido os crimes sob efeito do chá do Daime.
Resumo da ópera: quem deveria morrer, já morreu, agora vamos tratar o Cadu, única vítima dessa história.
Essa versão, no entanto, tem diversas falhas.
Para começar, a última vez que Cadu bebeu o chá foi no ano novo, quase três meses antes dos assassinatos. Não existe substância que permaneça no organismo por tanto tempo.
A outra linha de raciocínio é de que o chá teria despertado em Cadu uma esquizofrenia latente que o teria levado a fazer tudo o que fez. Para começar, ignoram totalmente o fato dele já usar drogas antes de entrar para a igreja Céu de Maria. Por que as drogas não despertaram a esquizofrenia?
Mas, mesmo que admitamos que Cadu se tornou louco após tomar o chá, a versão parece estranha.
Eu tenho um amigo esquizofrênico. Começou a frequentar a minha casa ainda muito jovem, pois queria ser roteirista de quadrinhos. Pressionado pela família, estudou desesperadamente para o vestibular, passou em primeiro lugar, mas acabou desenvolvendo uma esquizofrenia, já latente, que despertou por causa do stress. Desde então eu o tenho acompanhado, de tempos em tempos. Graças ao tratamento, ele não evoluiu para a fase mais severa da doença. Minha experiência com esse garoto me diz o seguinte: ele até seria capaz de matar, no meio de uma crise, mas não seria capaz de planejar um assassinato e depois planejar uma fuga. A pessoa com esquizofrenia vive numa tal situação de alheamento que mal consegue sair de casa. Não consegue pegar ônibus. Não consegue muitas vezes nem lembrar onde mora. Certa vez encontrei-o na rua, em crise, e tive que levá-lo em casa, pois ele não conseguia voltar sozinho.
O raciocínio de Cadu não é de esquizofrênico. Ele passou meses vendendo maconha para comprar a arma com a qual mataria Glauco. Escolheu a melhor arma, comprou bastante munição... planejou passo a passo os assassinatos. Após o crime, fugiu e passou horas planejando como fugiria. Sua ideia era roubar um carro, fugir para o Paraguai, ficar lá até a poeira baixar e depois voltar para matar a viúva de Glauco. Seguiu o plano à risca e só não conseguiu chegar ao Paraguai porque foi parado por uma patrulha, que percebeu que o carro era roubado. Preso, se nega a dizer quem lhe vendeu a arma. O delegado que o prendeu diz que ele parece mais um criminoso normal do que um esquizofrênico. O delegado que investiga o caso em Sâo Paulo diz que "Ele estava consciente. [...] Ele foi muito frio".
Tal frieza de raciocínio não é de quem sofre de esquizofrenia, mas lembra muito o comportamento de um psicopata, que sabe o que está fazendo e planeja passo a passo seus atos. Não é a primeira vez que um psicopata tenta se passar por doido para fugir da pena e continuar matando. Kenneth Bianchi, o estrangulador de Los Angeles, tentou convencer a opinião pública de que tinha dupla personalidade antes de ser desmascarado por uma psicóloga (um filme interessante sobre o assunto é O estrangulador de Los Angeles, de Chris Fischer).
A cobertura da maior parte da mídia, em especial da Veja, revela um raciocínio preconceituoso: o Daime é visto com maus olhos por ser uma religião de índios e seringueiros, de "gentalha". No caso da Veja, há o agravante da revista seguir a cartilha norte-americana, segundo a qual todas as substâncias devem ser proibidas, menos as que dão lucro para as grandes empresas do Tio Sam (como o cigarro).
No final, o preconceito e a visão deturpada devem prevalecer. Cadu será visto como um inocente santo transformado em demônio por Glauco e sua igreja. Provavelmente será inocentado e estará livre para matar a viúva do desenhista, como já disse planejar. Que Deus nos proteja.
Texto originalmente publicado no Digestivo Cultural.
3 comentários:
Terrível!
Obrigado pela visão clara e objetiva dos fatos, Gian; este assunto é muito sério pois o mito de uma "imprensa isenta" ainda está na cabeça de muita gente, que acaba sendo influenciado sem se tocar.
[]s!
Excelente artigo, Gian. Alguns pontos eu ainda desconhecia, como o fato de que Cadu não tomava o daime desde dezembro. Mas já sabia do seu envolvimento com drogas e também achei muito estranho toda a logística do assassinato, que indica claramente que Cadu tinha tudo arquitetado.
A estratégia dos advogados dele chega a dar náuseas...
Você chegou a ler o artigo do José Salles sobre o caso? Ele praticamente diz que Glauco morreu por castigo de Deus, já que colheu o que plantou: desenhou histórias em quadrinhos pervertidas e incentivava o uso de alucinógenos.
É triste perceber que Glauco está se tornando culpado e Cadu a vítima...
Bom, Gian, não concordo com vc em alguns pontos. Não penso que o Cadu seja santo, mas acredito que as pessoas da igreja Céu de Maria foram negligentes ao dar o tal chá a um esquizofrênico. Eu tenho conhecimento de causa, minha mãe é esquizofrênica e fazia coisas planejadas para obter o que queria, portanto é sim atitude de um esquizofrênico, eles focam em algo e vão atrás. Outra coisa, o pai e a avó paterna dizem terem ido na tal igreja e pediram para que não dessem o Daime para Cadu, pelo seu problema, eles, obviamente para não perder nenhuma "ovelhinha" do rebanho, disseram que não podiam negar ajuda a ninguém, muito cômodo. Não acho que Glauco merecesse morrer, foi uma fatalidade ele ter conhecido uma pessoa doente. Sei de um conhecido que provou esse Daime, ele disse que vc viaja, fico doido, agora imagine isso para um esquizofrênico? Minha mãe escutava pessoas, sentia-se perseguida, se ela tomasse esse chá era bem capaz de matar alguém. Desculpe discordar de vc, mas se é para debater, estou colocando uma visão diferente para refletirmos. Abraços
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