Mozart
Couto é dos mais importantes desenhistas de quadrinhos do Brasil. Seu traço
anotomicamente perfeito ilustrou algumas das melhores histórias nos gêneros
fantasias e ficção científica da HQB. Edgar Franco é um dos nomes fundamentais
dos quadrinhos poéticos filosóficos, um gênero surgido em nosso país que teve
grande destaque a partir da década de 1990 através de fanzines e publicações
alternativas. Seu traço flerta com o onírico mostrando figuras impossíveis em
cenários surreais. A junção desses dois talentos tão diferentes deu origem ao
Biocyberdrama, um dos mais importantes álbuns de quadrinhos lançados em 2013.
A
própria origem da publicação é uma saga. Em 2000, influenciado pelas ideias de
artistas e filosóficos que tratam da pós-humanidade, Edgar Franco produziu o
fanzine Biocyberdrame e enviou para várias pessoas. Uma delas foi Mozart Couto,
que adorou a ideia e propôs uma parceria, o que deu origem a um primeiro álbum,
com o primeiro capítulo. Os outros sete capítulos levaram 12 anos para serem
feitos e reunidos na edição publicado este ano pela editora UFG. Uma edição,
aliás, que faz juz ao conteúdo: um papel interno de alta gramatura, uma capa em
policromia com um emblemático desenho de Mozart e uma sobrecapa em PB que se
fecha sobre as páginas, formando um box.
A maioria
dos leitores de quadrinhos tende a ir direto para a história, mas nesse caso,
vale a pena parar no início e ler o Prefácio de Edgar Franco, no qual ele
disserta sobre a fundamentação teórica da obra. Em um texto agradável, é
apresentado todo um fundamento que permite uma leitura muito mais aprofundada
da HQ e dá a dimensão do universo e da mitologia criada por ele – talvez o
aspecto mais impressionante dessa HQ cheia de predicados.
Franco
explica que os membros artificiais estão se tornando cada vez mais perfeitos.
Cientistas e artistas defendem a possibilidade de transplantar a consciência
para um chip de computador e tornar-se imortal, num movimento que foi batizado
de Extropy. “Vivemos em um momento de
ruptura do humano, o qual nos compele a abrir os olhos para as implicações
morais, éticas, socioculturais das mudanças drásticas de comportamento,
percepção e paradigmas, que vêm atreladas às inovações nos campos da
biotecnologia, da cibernética, da robótica, da telemática e da comunicação”.
A
partir dessa percepção, Franco criou um universo pós-humano em que o mundo se
divide em três grupos: humanos resistentes, tecnogenéticos e extropianos.
Os
tecnogenéticos são fruto da hibridação entre humanos, animais e vegetais,
permitidos pelo avanço da engenharia genética.
Os
extropianos são pessoas que transmitiram sua consciência para corpos robóticos,
vivendo, assim, eternamente.
Os
resistentes são pessoas que resistem às mudanças extropianas e tecnogenéticas.
Reproduzem-se sexualmente e imitam o modo de vida dos antepassados.
Cada
um desses grupos tem detalhados os seus sub-grupos, método de reprodução,
tecnologia, relação com a morte e organização social, uma mitologia que permite
o surgimento de dezenas de histórias. A versão contada no álbum Biociberdrama é
apenas uma dela. Nesse álbum acompanhamos o protagonista, Antônio (uma
referência ao líder messiânico Antônio Conselheiro, de Canudos), um humano
resistente indeciso entre o mundo tecnogenético e extropiano. A partir dessa
base intimista, de conflito interno do personagem, visualizamos o mundo e suas
relações sociais, políticas e culturais. Com o passar das páginas, no entanto,
o drama pessoal torna-se também um drama social. Nessa sociedade perfeita de
incrível avanço tecnológico, nesse paraíso terrestre, existe uma serpente: a
intolerância. Essa intolerância se mostra na forma de atentandos terroristas,
em especial dos tecnogenéticos contra os extropianos.
Franco
namora com a teoria do caos ao mostrar como pequenos (e grandes) fatos vão
provocando mudanças na sociedade e nos personagens. Os personagens, aliás, são
tridimensionais e vão passando por mudanças ao longo da trama. Imperfeitos,
traem, agem por vingança e muitas vezes por ganância (como no caso do peregrino
que foge com as oferendas de um grupo que se destina a uma vila religiosa-resistente).
O
leitor acompanha essa história que dura anos numa verdadeira saga e, ao mesmo
tempo se surpreende com as reviravoltas, afeiçoa-se aos personagens e
intriga-se com a complexidade imaginada pelo roteirista.
Sobre
o desenho, um único porém: no primeiro capítulo Mozart Couto parecia estar
influenciado, ou tentando aproveitar a onda dos mangás, um estilo interessante,
mas que não tem absolutamente nada a ver com seu estilo. A partir do capítulo
dois, o desenhista parece se livrar dessa influência e torna seu traço cada vez
mais próximo do estilo que o tornou famoso na década de 1980 em revistas de
editoras como a Grafipar.
Para
os leitores mais interessados, vale a pena ler o Pósfacio, em que Edgar Franco destrincha
todas as referências utilizadas em sua obra. Pós-moderno, o roteirista espalhou
pela obra diversas citações, que vão do ciberartista brasileiro Eduardo Kac à
artista francesa Orlane, que realiza operações plásticas em seu corpo com
tomando como referência obras-primas da pintura, passando pelo escritor de
ficção científica visionário Phillip K. Dick. Para os fãs, mais um agrado: o
fanzine Biociberdrame, que deu origem a tudo vem completo, como anexo do
volume.
Em
suma: uma edição imperdível com dois mestres do quadrinho nacional.
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