segunda-feira, novembro 30, 2020

Mama Guga, de Fernando Canto

 


Fernando Canto é um dos grandes nomes da literatura amapaense. Mais conhecido por suas letras de música – ele foi um dos fundadores do grupo Pilão, que marcou época na MPA, ele também é um contista inspirado, como mostra o livro recém-lançado pela Paka-Tatu, Mama Guga.
O livro traz contos intimistas e emocionantes, como O retrato azul, narrado como um filho falando ao pai: “Agora estou aqui, engolindo este silêncio, sem saber o que dizer para você (...) Agora estamos nós dois sem saber o que fazer... Você aí sentando nesta rede com os olhos brilhosos de lágrimas, olhando fixo o quadro que lhe demos de presente de aniversário”. Além de criativa, a abordagem permite um aprofamento no personagem que talvez não fosse possível de outra maneira.
Há contos que oscilam entre o causo urbano, o humor e o drama, como em “A seringa contaminada de Bambo, o zagueiro do futlama”, no qual um homem com HIV ameaça picar pessoas com uma seringa.
Mas os melhores contos são aqueles em que Fernando Canto se utiliza da mitologia local, entremeando-a muitas vezes de fatos históricos e narrativas cotidianas. Exemplo disso é “As mulheres-peixe do meu garimpo”, sobre um garimpeiro que se enamora de sereias encontradas em uma gruta. Mas são sereais amazônicas, com cor local e sexualidade aflorada: “Tinham a cor dourada e eram largas. Suas barbatanas eram vermelhas, umas gracinhas. Nem de longe pareciam com as sereias que eu tinha visto em revistas. Brincavam com as águas e sorriram quando me viram. Me chamaram pra bem perto delas, e aí pude conhecer o verdadeiro sabor do prazer sexual”.
Desses, o melhor é “A cidade encantada sob a pedra”.
A história se passa em uma cidade fictícia (meio que uma mistura de Macapá e Mazagão), mas mágica, em que seres encantados saem do fundo do rio para defender os negros entre eles o pretinho Chibante, que distribui para a criança bombons trazidos em seu chapéu de casco de tartaruga.
Na história, dois irmãos descem à cidade encantada em busca de um suposto tesouro. O interessante do conto é a forma como o autor mescla fatos históricos, personagens mitológicos e ladrões de marabaixo para construir sua narrativa.
Para quem não é da região, os ladrões são músicas cantadas nas rodas de marabaixo, geralmente sobre fatos ocorridos na comunidade.
Há duas versões sobre o nome. Na primeira delas, os versos são chamados ladrões porque um “rouba” a música do outro, continuando o verso. Na outra, porque a letra “rouba” fatos das vida pessoal das pessoas, tornando-as públicas através da música. Fernando Canto adota essa última explicação e constrói todo o conto a partir de ladrões, entremeando-os à narrativa em prosa. A narrativa é fluída, quase como um causo narrado a um visitante e fantasia, história e ladrões vão se misturando naturalmente.
O conto é um delicioso causo e, ao mesmo tempo, uma curiosa experiência estética.   
É de se destacar o ótimo trabalho editorial da Pakatatu no livro, a começar pela bela capa com ilustração de Maciste Costa. O papel polém e a difamação simples, limpa, mas eficiente fazem com que a leitura do livro se torne leve e agradável.

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