sexta-feira, dezembro 11, 2020

Contos de imaginação e mistério

 

A obra de Edgar Alan Poe é básica para todos os fãs de horror, policial e fantasias. A popularidade do autor fez com várias editoras lançassem coletâneas com seus textos, mas poucas chegam ao nível de Contos de Imaginação e mistério lançado pela editora Tordesilhas em 2012.
O livro, em capa dura, é uma reprodução fiel do volume lançado em 1907 em Londres, com os desenhos do exímio ilustrador irlandês Harry Clarke e prefácio de Charles Baudelaire. Essa edição inglesa foi considerada já na época uma joia bibliográfica e ajudou a popularizar Poe no mundo.
Embora ignorado como um escritor menor por muitos anos, Edgar Allan Poe foi praticamente o iniciador de algumas das mais populares literaturas de gênero da atualidade. Ele definiu o gênero policial e a ficção científica, além de ter lançado as bases da fantasia moderna.
A miríade de escritores influenciados por ele vão de Ray Bradbury a Jorge Luís Borges, passando por Umberto Eco. Arthur Conan Doyle e Júlio Verne eram seguidores fieis do escritor norte-americano.
Conan Doyle dizia sobre ele: “Cada um dos contos policiais de Poe é uma raiz da qual desabrocha uma literatura inteira (...) O que eram os contos policiais antes que Poe aparecesse e soprasse vida neles?”.
Já Júlio Verne escreveu: “O homem e sua obra, ambos ocupam um lugar importante na história da fantasia, pois Poe criou um gênero diferente, sem precedentes e, me parece, levou o segredo consigo”.
O volume de mais de 400 páginas reúne o melhor dos contos de Poe. Há histórias bastante conhecidas, que costumam figurar na maioria das coletâneas, como William Wilson, O poço e o pêndulo e Manuscrito encontrado em uma garrafa.  Mas há algumas pérolas pouco exploradas.
Um dos contos excelentes que figuram na coletânea é a A Máscara da Morte Vermelha.
Outra dica fantástica é “O mistério de Marie Roget”.
Normalmente quando se pensa no Poe policial, lembra-se de “Os assassinatos da rua Morgue” ou “A carta roubada”, ambos protagonizados pelo detetive Dupin, que viria a ser um dos modelos para a criação de Sherlock Holmes.
O conto sobre Marie Roget é imerecidamente esquecido. Misto de jornalismo e ficção, Edgar Alan Poe aproveitou um crime real, acontecido em Nova York e transformou-o num caso a ser resolvido por Dupin. 
Sem ter acesso ao local do crime, o escritor usou apenas as notícias dos jornais da cidade como fonte de referência para desvendar o mistério. Mas revelou uma capacidade dedutiva tão impressionante que todos os detalhes foram confirmados posteriormente por duas testemunhas do crime. Ao por misturar personagem e criador, ambos gênios da hipótese dedutiva, Poe mostra estar pelo menos um século à frente de seu tempo. Além disso, o texto acaba sendo um verdadeiro manual de como escrever uma policial dedutiva.
A Mary Rogers em questão saiu um dia de casa dizendo que iria visitar a tia em outro bairro. Pediu ao noivo que a buscasse no final da tarde, o que se tornou impossível em decorrência de uma tempestade. No dia seguinte a garota não voltou para casa.  Quatro dias depois seu cadáver foi encontrado flutuando no rio Hudson.
O caso fez a festa dos jornais numa época em que os jornalistas estavam mais interessados em dar sua interpretação das notícias do que de fato relatá-las. Como a garota já havia sumido por uma semana em ocasião anterior, um jornal sugeriu que tratava-se de outra pessoa a mulher encontrada no rio Hudson. Outro creditou o crime a uma gangue de malfeitores que no mesmo dia havia violentado uma garota na cidade. Outro chamava atenção para o fato de que a sombrinha, o lenço e outros objetos pessoais da vítima haviam sido encontrados em um bosque, muito longe do rio, o que demonstrava que o homem deveria ter passado por muitas ruas com um corpo sobre as costas para ter a ocasião de jogá-lo no rio.
O principal argumento dos que defendiam que a mulher encontrada não era Mary Rogers é o tempo que cadáver levou para boiar, uma vez que normalmente em casos de afogamento o corpo leva de seis a dez dias para boiar.
Poe analisa e desconstrói cada um dos argumentos. Sobre a flutuação do corpo ele alega que de fato esse é o tempo no caso de afogamentos. Mas o mesmo não ocorre com pessoas jogadas na água já mortas. Com isso ele lança as bases das atuais perícias médicas. Mais um ponto para o homem que praticamente inventou a linha de pesquisa semiótico-informacional, a psicologia das massas, a literatura policial e de ficção científica.
O volume da Tordesilhas não traz todos os mais importantes textos de Poe (faltam, por exemplo, o conto “Um homem das multidões”), mas esse é um mal comum a qualquer antologia desse autor: seus textos são tão relevantes que só um livro com obra completa seria capaz de contemplar toda sua importância.
Ainda assim, Contos de imaginação é obrigatório em qualquer estante dos amantes da fantasia, do terror ou do policial. Não só pelos textos de Poe, pela encadernação de luxo, mas também pelos soturnos desenhos de Henry Clarke. Seu traço sujo, repleto de hachuras, captura com perfeição o clima do texto de Poe prenunciando uma tragédia a cada linha.

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