quinta-feira, dezembro 03, 2020

Distopias hipodérmicas

 


Entre as várias teorias que tentaram explicar a influência da mídia sobre a sociedade, uma das mais conhecidas é a teoria hipodérmica, segundo a qual os meios de comunicação seriam como uma agulha, injetando seus conteúdos em uma massa amorfa e atomizada.
 Pelo menos três obras são fundamentais para entender como a teoria hipodérmica povoou o imaginário popular durante a primeira metade do século XX: 1894, de George Orwell, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury e Admirável mundo novo, de Adous Huxley.
O livro Admirável mundo novo mostra um mundo perfeitamente ordenado em que as pessoas são organizadas por castas e vivem felizes e massificadas, exercendo funções definidas e jamais se rebelando graças a um processo de condicionamento que usa, entre outros elementos, a mídia.
Na história, bebês dormem ouvindo um sistema de som que repete continuamente o “Curso elementar de consciência de classe”: “As crianças Alfa vestem roupas cinzentas. Elas trabalham mais do que nós porque são formidavelmente inteligentes. Francamente, estou contentíssimo de ser um Beta, porque não trabalho tanto. E, além disso, somos muito superiores aos Gama e Delta. Os Gama são broncos. Eles se vestem de verde e as crianças Delta de cáqui. Oh, não, não quero brincar com as crianças Deltas. E os Ípisilons são ainda piores. São demasiado broncos para saberem ler e escrever. Como sou feliz por ser um Beta”.
As crianças ouviam isso dezenas de vezes enquanto dormiam. O objetivo era moldar a personalidade das mesmas.

Na distopia imaginada por Huxley as pessoas não têm pensamentos verdadeiros. Eles se sentem felizes por que foram condicionados pelos meios de comunicação a se sentirem felizes.
A influência da hipótese hipodérmica fica ainda mais clara em 1984, de George Orwell. No livro, escrito em 1948 (o título é apenas uma inversão da data), as pessoas são vigiadas 24 horas por dia através de teletelas, aparelhos capazes de enviar e receber imagens. Cartazes enormes, com a foto do Big Brother e os dizeres: “O grande irmão zela por ti”, são espalhados por todos os cantos e os olhos do ditador, enormes, parecem vigiar a todos.
Não é nem mesmo necessário cometer qualquer crime contra o regime para ser preso e torturado. O simples pensamento incorreto já é uma transgressão. Para evitar que se tenha pensamentos errados, até a linguagem é manipulada.
Nos dizeres de um dos personagens: “A revolução se completará quando a língua for perfeita. Novilíngua é Ingsoc, e Ingsoc é Novilíngua (...) como será possível dizer “liberdade é escravidão, se for abolido o conceito de liberdade? Todo mecanismo de pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência”.
O livro explica a importância dos meios de comunicação no processo de massificação da população: “A invenção da imprensa, contudo, tornou mais fácil manipular a opinião pública, processo que o filme e o rádio levaram além. Com o desenvolvimento da televisão e o progresso técnico que tornou possível receber e transmitir simultaneamente pelo mesmo instrumento, a vida particular acabou. Cada cidadão, ou pelo menos cada cidadão suficientemente importante para merecer espionagem, passou a poder ser mantido vinte e quatro horas por dia sob os olhos da polícia e ao alcance da propaganda oficial, fechados os outros canais de comunicação. Existia, pela primeira vez, a possibilidade de impor não apenas a completa obediência à vontade do Estado, mas também completa uniformidade de opinião em todos os súditos”.
O partido, através da mídia controla não só o presente, mas também o passado, continuamente reescrito para se adequar às diretrizes do partido.
Exemplo disso é a questão do chocolate. No início do livro, um pronunciamento do Ministro da Fartura diz que a ração de chocolate será reduzida de 30 para 20 gramas. No final do livro, a mídia diz que a ração está sendo aumentada para 20 gramas e, numa perfeita demonstração dos princípios da teoria hipodérmica, a população vai às ruas comemorar o suposto aumento.
O episódio mostra um poder absoluto da mídia sobre o pensamento dos indivíduos, vistos como atomizados e submissos.  A massa acredita em qualquer coisa que a teletela informa, por mais absurda ou paradoxal que seja.
O Partido não só cria e manipula a massa, como ainda controla, através dos meios de comunicação, um outro tipo de comportamento coletivo: a multidão. Controlados inclusive sexualmente, os cidadãos da Oceania descarregam sua revolta nos “Dois minutos de ódio”, em que o alvo é sempre o inimigo do estado, Goldstein, cuja imagem é exposta em uma teletela. Associado ao inimigo contra o qual a Oceania está em guerra, Goldstein torna-se vítima de todas as frustrações dos indivíduos.

Os dois minutos de ódio ecoam as demonstrações de apoio popular dos regimes totalitários, como os do nazismo e o stalinismo.
Outro livro fundamental é Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Nele, são as próprias pessoas que se tornam massa espontaneamente ao fugirem de qualquer coisa que possa incomodá-los. Daí a proibição de livros, que podem interferir na felicidade da massa.
Em Fahrenheit 451, as pessoas evitam a todo custo qualquer atividade isolada ou reflexiva. Gastam todo o tempo que não estão trabalhando em esportes ou dentro de carros, correndo como loucas pelas auto-estradas, ou na frente da televisão com personagens que são chamados de “a família”. Na falta de vínculos reais, a família passa a ser a que está dentro da TV. Brabury chama as pessoas embrutecidas pela televisão de “mulheres de palha”.

A mídia é como uma droga, que hipnotizava as pessoas e as deixava dependentes, emburrecidas. Em determinado momento, no metrô, toca um anúncio de creme dental. As pessoas não conseguem resistir e acompanham o jingle com batidas de pés, as bocas agitando levemente e repetindo o slogan.
O personagem principal é Montang, um bombeiro, mas, uma vez que as casas são revestidas de plástico resistente ao fogo, sua função é queimar livros. Sua vida muda quando encontra com uma garota que lhe pergunta se ele é feliz, o que o leva a uma reflexão crítica sobre sua vida: “Não estava feliz. Não estava feliz. Disse as palavras para si mesmo. Admitiu que este era o verdadeiro estado das coisas. Usava sua felicidade como uma máscara e a garota fugira com ela pelo gramado (...)”.
A partir dessa reflexão, ele se interessa por livros e, a partir daí, torna-se um perigo para o sistema. Ao sistema não interessa pessoas que pensem por si mesmas, que sejam público. Daí porque Montang passa a ser perseguido.

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