quinta-feira, maio 06, 2021

Eu e os livros

 


Acho que a leitura pode ser um hábito aprendido, mas acho também que pode ser algo mais, pode estar nos genes, pode vir com a gente quando nasce. Eu, por exemplo, não tinha livros em casa. Mas tinha tanta vontade de ler que ficava lendo as caixas de sapatos empilhadas sobre o guarda-roupa. Uma vez deixaram em casa o romance Tubarão, que deu origem ao filme de Steven Spielberg. Era um livro difícil, grosso, para um garoto de nove anos, mas mesmo assim me esforcei. Depois de ler umas 25 páginas, desisti. Era adulto demais para mim, demorava muito para chegar a alguma ação.

Quando a professora da escola pediu para lermos Aventuras de Xisto, de Lúcia Machado de Almeida, tive finalmente uma desculpa para comprar um livro. E aproveitei-o até o último ponto. Li tantas vezes que decorei o texto. No dia antes da prova os amigos liam um trecho e perguntava: Em que página? Eu invariavelmente acertava.

Então eu entrei na adolescência quase totalmente virgem de leituras (exceto pelas histórias em quadrinhos). Nessa época conheci em Belém um amigo, o Afonso. Era um tipo estranho, que colecionava lagartos e cobras vivas. A gente ficava andando pelas matas caçando bichos para a coleção dele. Uma vez, quando estávamos com um grupo de amigos no meio da floresta, nos deparamos com uma enorme cobra no meio do caminho. Todo mundo saiu correndo para longe da cobra, mas o Afonso correu para pegar a cobra. Certa vez, quando limpávamos a gaiola, quase fui picado por uma serpente, de modo que depois me recusei totalmente a continuar ajudando-o.

Mas o Afonso me influenciou muito por causa dos livros. Ele tinha uma coleção enorme. Tinha a obra completa de Monteiro Lobato, presente de um padrinho, militar esquerdista. Um dia, no auge da ditadura militar, ele chegou com o carro cheio de livros, disse que era presente para o afilhado e sumiu para nunca mais ser visto. Ninguém sabe se ele conseguiu fugir ou se foi preso e morto nos porões da ditadura.

Mas o Afonso ficou lá, com aquela coleção enorme e variada. Tinha quase todos os autores clássicos, além das obras completas de Jung e de Lobato.

Quando eu ia na casa dele, ele pegava um livro e me contava o enredo. Acho que aprendi muito mais sobre literatura naquelas conversas do que com qualquer professor de português.

Eu ficava tão fascinado que pegava para ler, mas ele tirava o livro das minhas mãos ou começava a bater no sofá para não me deixar ler. Claro, ele gostava de ser o centro das atenções e eu lendo sozinho, o livro tirava o foco sobre ele.

O curioso é que, ao invés de isso fazer com que eu criasse ojeriza pela leitura, fez com que eu ficasse mais e mais curioso pelos livros. Como não podia nem pensar em pedir emprestados os livros do Afonso, acabei descobrindo a Bliblioteca Pública e depois os sebos. Eu me sentia tão em atraso que lia como um desesperado, no mínimo um livro por semana. Era um leitor tão assíduo que, ao chegar aos dezesseis anos eu já tinha ultrapassado o Afonso no número de leituras.

Aí acabei descobrindo outra coisa: às vezes é bom não ter tudo nas mãos. Perde o divertido gosto de correr atrás, de fazer descobertas por si mesmo. 

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