segunda-feira, maio 31, 2021

O chamado de Cthulhu

 


H.P. Lovecraft foi o mais importante escritor de terror do início do século XX. Sua obra encontrou tamanha reverberação naquele período conturbado e nos anos subsequentes que muitos passaram a acreditar que seus textos se tratavam não de literatura, mas relatos reais. Boa parte da mitologia desse universo de horror tem sua origem no livro O chamado de Cthulhu e outros contos, lançado em 2012 pela editora Hedra como parte da coleção de obras completas do autor.
Lovecraft nasceu numa família conturbada. Quando tinha dois anos, viu o pai ser internado em um manicômio, onde permaneceu até morrer. A mãe jamais se recuperou da perda e sofreu distúrbios mentais que afetaram profundamente a relação com o filho. O futuro escritor passou a viver uma vida reclusão voltada apenas para seu terrível mundo literário. Precoce, escreveu seus primeiros contos entre seis e sete anos.
Em 1913, irritado com a baixa qualidade dos contos publicados na revista pulp fiction Argosy, escreve uma carta que levou a uma intensa polêmica, ao fim da qual acabou sendo convidado pelo editor a colaborar com a publicação. Suas histórias, no entanto, não fizeram sucesso. Em vida ele só conseguiu publicar um livro, A sombra de Innsmouth (que também integra a coleção da Hedra).
Sua obra só não se perdeu graças a admiradores que em 1939 fundaram uma editora para publicar sua obra. Mas Lovecraft só se tornou um fenômeno de vendas na década de 1960, quando algumas editoras norte-americanas começaram a publicar seus livros com capas chamativas e vendidas em locais de fácil acesso, como postos de gasolina e farmácias.
O que fez com que sua obra inicialmente fosse ignorada e depois se tornasse um verdadeiro culto foi a forma revolucionária com que ele tratava o terror. Lovecraft trouxe para a literatura a angústia provocada pelas descobertas científicas no início do século XX. Até o século XIX acreditava-se que o universo era racional e totalmente compreensível. A ciência estava a um passo de desvendá-lo. A teoria da relatividade e a física quântica viraram o mundo físico de cabeça para baixo mostrando que não sabíamos quase nada sobre o universo.  “O universo de nêutrons, quasares e buracos negros é estranho para nós e nós somos estranhos nesse universo”, escreveu James Turner, na introdução do livro Tales of the Cthulhu mythos (Dell Books).
Assim, na obra de Lovecraft, somos pouco mais que formigas num universo eternamente ameaçado por uma entidade terrível e inenarrável, sejam deuses antigos ou seres alienígenas que desprezam a vida humana. “A coisa mais misericordiosa do mundo é, segundo penso, a incapacidade da mente humana  em correlacionar tudo o q sabe. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a mares negros de infinitude , e não fomos feitos para ir longe”.
 O impacto de sua obra é tão grande que muitos passaram a acreditar que o Necronomicon, livro citado em seus contos, tinha existência verdadeira. De fato, começaram a surgir diversas versões da obra, de modo que o livro, imaginário, ganhou existência física.
Em suma: Lovecraft se tornou, assim como Edgar Alan Poe, um escritor fundamental para todos os fãs de terror ou de literatura de fantasia. E o volume O chamado de Cthulhu e outros contos é uma boa porta de entrada para sua obra.
Cthulhu é uma espécie de entidade monstruosa com corpo de dragão e cabeça de lula. Ele seria um dos grandes antigos, seres inomináveis que teriam chegado em nosso planeta em seus primórdios e criado o homem como forma de escárnio e servitude.  Lovecraft pronunciava seu nome de diversas formas diferentes, dando a entender que se tratava de uma palavra que não poderia ser reproduzida por lábios humanos. Cthulhu seria o alto sacerdote, responsável pelo retorno dos antigos quando as estrelas estivessem alinhadas. Embora seja o mais famoso e imagético, ele é apenas uma das criaturas de um grande panteão de seres fantásticos que habitam o mesmo universo. Nesse sentido, Lovecraft foi um divisor de águas: ele criou um universo no qual ocorrem a maioria de suas histórias, uma mitologia única, de modo que é possível perceber uma costura entre seus contos, alguns pontos em comum que revelam a parte mais terrível de sua obra: a terrível suspeita de há algo muito grande acontecendo à nossa revelia.
É a fundação dessa mitologia que o leitor irá encontrar no livro O chamado de Cthulhu... Além do conto que dá título ao volume, outros se destacam, como “Dagon”, cujas criaturas marinhas serviram de inspiração visual para a história em quadrinhos Neonomicon, de Alan Moore: “o contorno geral das figuras era muito humano, apesar das mãos e dos pés com membranas natatórias, dos impressionantes lábios carnudos e molengos, dos olhos vidrados, arregalados”.
Outro destaque é “A música de Erich Zann”, que, se não estivesse no livro de Lovecraft, poderia se passar facilmente como parte da obra de Jorge Luís Borges. Nele, o protagonista encontra um velho violinista que toca para espantar terrores da escuridão. O início não poderia ser mais Borges: “Examinei diversos mapas da cidade com o maior cuidado, mas jamais reencontrei a Rue d´Auseil (...) Jamais encontrei outra pessoa que tenha visto a Rue d´Auseil”. Talvez não seja por acaso: tanto Borges como Lovecraft são herdeiros declarados de Edgar Alan Poe.
É, portanto, extremamente louvável a iniciativa da Hedra de trazer a coleção completa do mestre do horror. Uma ótima chance para os fãs do terror verem um mestre em ação. De negativo apenas o fato dos livros serem de formatos diferentes, o que certamente deve desagradar os colecionadores.

Segundo os Mitos, a Terra teria sido habitada, há bilhões de anos, por criaturas que aqui teriam chegado antes que nosso planeta fosse capaz de gerar ou sustentar vida por si próprio. Eles, e não Deus, teriam criado a vida: o próprio Homem seria uma criação deles, gerada unicamente por escárnio e servitude.2 Em contos posteriores, fica implícito que os Grandes Antigos seriam criadores do próprio universo, e de todos os seres nele presentes. Isso foi suficiente para que Lovecraft fosse considerado pelas igrejas fundamentalistas do mundo inteiro, que acreditam na versão da criação bíblica, como blasfémio. Os Grandes Antigos teriam Cthulhu como um de seus líderes (de acordo com os contos, seria o Alto Sacerdote, responsável pelo ressurgimento de todos os outros quando as estrelas estivessem alinhadas devidamente).
Lovecraft parecia estar escrevendo para o futuro, para o homem pós-moderno. Tanto que sua obra teve pouco impacto na época, mas depois, como uma bola de neve, foi crescendo de importância a ponto de se acreditar que se tratava não e literatura, mas de relatos de uma realidade desconhecida. A crença na existência do Necronomicon como um livro real demonstra como a obra de Lovecraft se tornou um simulacro, uma ficção é mais real do que o real. E hoje, podemos ver em sites de compras diversas versões do Necronomicon. O livro, totalmente imaginário, ganhou existência física.
O fenômeno Necronomicon revela o aspecto mais apavorante na obra de Lovecraft: e se, no fundo, for verdade? E se o escritor tiver, inadvertida e inconscientemente, descoberto a verdade sobre a realidade em que vivemos? E se formos apenas formigas, seres insignificantes, criados por escárnio, vítimas de um poder grandioso demais para ser compreendido?

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