quarta-feira, junho 30, 2021

Antropofagia cultural

 


Uma discussão que tem intrigado intelectuais, artistas e pesquisadores é a cultura brasileira. O que é cultura nacional? Quais são as suas manifestações legítimas? Ela existe mesmo, ou, ou somos simples imitadores? Uma resposta curiosa para essas perguntas é representada pela antropofagia cultural.
Esse ponto de vista ganha uma metáfora na desafortunada viagem do Bispo Sardinha. O episódio se passou na época do Brasil Colônia. O sacerdote teve sérias desavenças com o Governador Geral do Brasil, em Salvador. A coisa se tornou tão séria que a Corte o chamou a Portugal para que explicasse a situação. Ainda na costa brasileira, o barco naufragou e os sobreviventes nadaram desesperados até a praia. Deram azar. Os índios antropófagos  estavam lá, esperando que a comida chegasse até eles. Que me desculpem o trocadilho, mas jantaram o sardinha.
O mesmo fez o povo brasileiro com a cultura que veio de fora. Ela foi jantada e digerida. Danças típicas, como a quadrilha e o carimbó, tiveram sua origem nos salões nobres da Europa, mas aqui foram misturadas com o tempero índio e negro, transformando-se em  algo completamente diferente, típico do Brasil, embora tenha suas origens no estrangeiro.
Quando Gilberto Gil e os Mutantes introduziram a guitarra elétrica na MPB, muitos chiaram. Para os patrulheiros de plantão, usar esse instrumento era se render à dominação cultural americana. Quem conhece a Tropicália sabe que foi exatamente o oposto que aconteceu. A mistura de ritmos, instrumentos e influências deu origem a algo completamente novo e inusitado, genuinamente nacional. Outro exemplo é Raul Seixas com seu rock misturado com forró, repente e baião
Mais recentemente tivemos outros exemplos, ainda na música. Chico Science e Pato Fu fazem uma música sem fronteiras, misturando ritmos e dando continuidade a uma tradição que remonta aos primeiros antropófagos que jantaram os náufragos europeus.
O mesmo fenômeno pode ser visto no cinema, literatura, quadrinhos e televisão. Veja-se o caso das telenovelas. Inicialmente realizadas com roteiros importados do México ou de Cuba, elas acabaram tomando uma “cara” nacional. O Brasil inventou um jeito de fazer novela que é reconhecido em todo o mundo e supera em qualidade até mesmo quem nos serviu de modelo.
Fechar-se em si próprio não parece ser a característica do brasileiro. Estamos sempre abertos ao novo, ao que vem de fora. Exemplo disso foram os imigrantes que ajudaram a construir o país e fizeram de nossa população um fenômeno de mistura e beleza. Observar as arquibancadas de um jogo do Brasil é observar um espetáculo miscigenação. Há desde pessoas negras a loiras de olhos azuis.
A maioria de nosso povo é uma mistura de negros, índios, portugueses, espanhóis e italianos. O mesmo ocorre com nossa cultura. Nossa ótica é a da mistura. A cultura nacional parece ser uma mescla de várias outras, mas é também extremamente original.
Somos, portanto, antropófagos. Antropófagos culturais.
Mas para que o canibalismo não degenere em macaquismo (imitação pura e simples) são necessários alguns cuidados.
O primeiro deles, claro, é preservar o que já temos. Não se faz antropofagia abandonando o que já existe para adotar o que vem de fora, e sim misturando o alienígena com o nacional. Como mixar rock com maracatu. Ficção-científica com cordel. Chiclete com banana. Se não preservamos e não damos valor ao que já faz parte da cultura nacional, então seremos eternos imitadores.
Um outro cuidado é fazer uma leitura crítica do que chega até nós. Os índios antropófagos escolhiam as melhores partes para devorarem (preferencialmente o cérebro, pois se acreditava que a inteligência da vítima passaria para o guerreiro). Andar por aí usando camisas de universidade americanas ou vestido de cowboy não é antropofagia, é macaquismo.
Podemos, claro, aproveitar até mesmo o lixo cultural que chega até nós, mas devemos fazer isso criticamente. Isso sim é antropofagia.

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