sábado, fevereiro 26, 2022

Além da imaginação – a versão de Jordan Peele

 


Além da imaginação foi um seriado clássico surgido no final dos anos 50 criado apresentado e produzido por Rod Serling (que, aliás, escrevia boa parte dos episódios). Marcou gerações. Suas histórias fantásticas, com roteiros irretocáveis tiveram uma influência duradoura a ponto de quando surgiu Black Mirror muito terem comentado que era o novo Além da imaginação. 
Suas histórias muito bem boladas, com a inevitável ironia do destino no final sedimentaram uma maneira de contar histórias e elevaram o nível da programação televisiva. O que Serling fez não foi só diversão, mas uma série que refletia sobre seu tempo (a guerra fria, o perigo nuclear) usando para isso a ficção científica e fantasia. Programas posteriores, como Jornada nas Estrelas devem muito a Serling. 
Na década de 1980, o seriado ganhou uma versão bastante equivocada, em que a ênfase estava muito mais nos efeitos especiais do que nos roteiros inteligentes. Agora o show retorna sob a batuta de  Jordan Peele, diretor de “Corra!”, que não só trouxe de volta a essência do seriado, como o atualizou o dando uma profundidade sociológica ao discutir temas como tensões raciais, ataques terroristas, imigração e eleições numa época de influenciadores digitais.
A qualidade do que foi apresentado nessa primeira temporada é tão grande que é difícil escolher o melhor episódio. Ainda assim, fiz uma lista dos episódios, do que mais gostei ao que menos gostei.  
Em tempo: a série está em exibição no streaming Amazon vídeo. 


Rebobine
Uma mulher negra está levando o filho para seu primeiro dia na universidade quando descobre que pode voltar o tempo rebobinando uma velha câmera vhs. Mas os dois estão sendo perseguidos por um policial racista. É um belo exemplo de roteiro em looping, com a protagonista tentando se livrar de um destino aparentemente inevitável. O episódio discute racismo, determinismo e a importância de se conciliar com o passado. Mas não traz respostas fáceis, como fica claro no final irônico. É o melhor episódio nova fase de Além da Imaginação e representa bem a proposta de usar a fantasia para falar de temas atuais.




Garoto prodígio
Um marketeiro em desgraça vê a chance de voltar ao topo quando um Youtuber de oito anos resolve lançar se candidato à presidência dos EUA. O episódio Garoto Prodígio reflete sobre os dias atuais, em que pessoas sem conteúdo se tornam celebridade da noite para o dia ganhando grande influência e poder político. Uma situação que é reflexo direto da falta de conteúdo da própria população, que vota em um candidato por ele prometer, por exemplo, vídeo games para todos. É um dos melhores episódios da nova encarnação de além da imaginação não só pelo tema, mas também pela constante tensão entre desejo e desgraça. É também um dos episódios que melhor refletem o modus operandi da série clássica, com seu final totalmente irônico.


Seis graus de liberdade
Seis graus de liberdade é um um dos roteiros mais complexos dessa nova versão de Além da Imaginação. E também um dos que permitem mais discussões filosóficas. Na história, um grupo de astronautas está sendo enviado a Marte. A terra está esgotada graças às mudanças climáticas e essa missão pode ser a última esperança da humanidade. Mas, no momento do lançamento, começa uma guerra nuclear de modo que os astronautas se vêm na situação de serem os últimos representante da humanidade. O episódio é todo construído em cima da teoria segundo a qual a maioria das civilizações tende a se aniquilar antes de desenvolverem tecnologia para viagens espaciais, o que explica o fato de nunca termos tido contatados por extraterrestres. Alguns autores, como Carl Sagan argumentam que se a civilização consegue ultrapassar essa fase e chegar ao espaço, ela tende a se perpetuar. O tema é explorado de forma inteligente, com poucos cenários, foco em closes e truques cinematográficos, como colocar a câmera de lado para simular gravidade zero.



Escorpião azul
Um professor universitário está se separando da esposa e morando com o pai. Um dia chega em casa e descobre que o pai, um hippie que tocou com várias bandas importantes, se matou com um tiro. A arma usada foi a escorpião azul, uma pistola rara que vale cem mil dólares. O episódio é usado para discutir a questão da idólatria das armas e de como elas são apresentadas como solução para todos os males. Mais: é sugerido que as armas se tornaram um novo tipo de religião fetichista. Isso é feito, no entanto, de maneira sútil, sem diálogos óbvios e com bom uso da força das imagens. A cena em que o professor vai a um clube de tiros testar a arma é perfeita. Quase sem diálogos, podemos ver sua transformação e a forma como a arma passa a encantá-lo, no sentido amazônico da expressão, de encantaria, de magia. É um dos episódios que melhor demonstram a força dessa nova encarnação de além da imaginação.



Ponto de origem
Uma dona de casa contrata uma imigrante ilegal como empregada doméstica e vê essa empregada ser presa pela polícia de imigração. Depois ela mesma acaba sendo presa sem saber sequer qual a acusação. O episódio ecoa diretamente o famoso livro O processo, de Kafka, com a protagonista presa em um local desconhecido, perdida em meio à burocracia. O roteiro constrói uma metáfora pesada e pungente a respeito da perseguição aos imigrantes. Destaque para a direção inspirada, em especial na cena da cela, com as luzes sendo usadas como elemento opressivo. Esse é um ótimo exemplo de como essa nova versão de Além da imaginação consegue usar a ficção científica para falar de temas atuais. 


Um viajante
Em uma pequena cidade do Alaska o xerife mantém a tradição de fazer uma festa de Natal no qual perdoa um prisioneiro. Mas naquele ano um desconhecido surge na cela pedindo para ser perdoado. Simpático e dizendo se dono de um canal no YouTube sobre viagens radicais, ele conquista a simpatia de todos e se torna o centro da festa. Mas uma jovem policial desconfia que há algo de errado na história. Esse é o plot do quarto episódio da nova encarnação de além da imaginação. É um daqueles episódios, a exemplos de muitos da série clássica, em que ação acontece toda em um local fechado e a trama se sustenta nós ótimos diálogos e atuações soberbas, com destaque para Steven Yeun  no papel do viajante. Uma trama, aliás, repleta de reviravoltas em que nunca sabemos qual as verdadeiras intenções do estranho. Destaque para o uso inteligente dos efeitos especiais, que surgem apenas nos momentos certos. Destaque também para o final, do mais puro humor ácido no melhor estilo Além da Imaginação. 


O comediante 
Um comediante fracassado descobre que pode fazer rir se usar algo de sua própria vida. Mas tudo que ele cita em suas piadas acaba desaparecendo. Além do ótimo conceito, que discute a questão do poder e seus perigos, vale destacar a ótima atuação de Kumail Nanjiani que consegue, por exemplo, contar uma piada e se mostrar tenso enquanto a plateia ri. A direção, repleta de closes estranhos valoriza a atuação. 


Pesadelo a 30 mil pés
Este foi um dos episódios mais memoráveis da série clássica. Baseado em um conto de Richard Matheson, mostrava um homem em um avião que vê um monstro do lado de fora e precisa convencer a tripulação de que a aeronave corre perigo. Nessa nova versão, um repórter investigativo acha um aparelho no assento e descobre que se trata de um podcast sobre um acidente aéreo. O problema é que ele parece se referir àquele vôo. O repórter deve, então, descobrir como impedir a tragédia usando as pistas do podcast. É incrível, mas esse plot, muito mais pé no chão, consegue ser menos verossímil que o duende da versão clássica principalmente graças ao final, totalmente desnecessário. Se o diretor tivesse a inteligência de terminar a história no momento em que o protagonista descobre o que está acontecendo, seria um dos melhores dessa nova versão de Além da imaginação.



O homem borrado
O episódio O homem borrado é praticamente um manifesto sobre as características de Além da Imaginação. Na história, a roteirista do seriado é assombrada por uma figura borrada que parece ter poderes paranormais. Em determinado ponto a personagem reflete sobre a série: “Além da imaginação não é só sobre monstros numa asa de avião. Se não tem nada de importante para dizer, então são só histórias para assustar. Rod Serling pegou um gênero infantil bobo e o elevou, fazendo arte para adultos”. Esse foi, por exemplo, o problema da maioria dos episódios da década de 1980: eram apenas efeitos especiais para crianças num roteiro que tinha pouco a dizer. É uma pena, no entanto, que o episódio que melhor reflete sobre a alma de Além da imaginação seja também um dos episódios mais fracos dessa nova encarnação liderada por Jordan Peele. (Alerta de spoiller) Por exemplo, o homem borrado, que persegue a roteirista, se revela como Rod Serling recriado digitalmente. A metáfora aí é óbvia: ele está levando a personagem para um mundo onde tudo é possível, um mundo além da imaginação. Entretanto, até esse ponto, parece que ele está muito mais interessado em machucar ou até mesmo matar a personagen do que realmente em introduzi-la em um mundo em que as leis da natureza funcionam de maneira diferente. A situação poderia ser facilmente resolvida mudando as situações para algo surreal, irreal, mas o roteirista parece ter tido preguiça de imaginar tais situações e simplesmente introduziu garrafas que voam na direção na protagonista e outras ameaças.


Nem todos os homens
Um dos grandes méritos da versão atual de Além da Imaginação é usar a fantasia para discutir questões do mundo atual. Isso, entretanto, não funciona quando a metáfora se torna óbvia demais, não deixando margem para interpretações.
Exemplo disso é o episódio Nem todos os homens. Na história, meteoros caem numa cidadezinha norte americana e todos os homens que entram em contato com as pedras se tornam violentos. Esse plot é usado para discutir a questão da violência masculina, mas isso é feito de maneira tão óbvia que descarta qualquer possibilidade de interpretação. Chega um ponto em que uma das personagens explica o que está acontecendo e qual a metáfora envolvida para ter certeza de o expectador tenha apenas uma interpretação. Junte a isso um roteiro ruim , com frases forçadas.
Umberto eco fala da obra aberta, que só se completa quando é interpretada pelo expectador. Já ao contrário, o discurso persuasivo permite uma única interpretação. Ele tende a levar-nos a conclusões definitivas e nos idica como devemos compreender o mundo. Nem todos os homens é um ótimo exemplo de discurso persuasivo.

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