sexta-feira, dezembro 01, 2023

Homem-animal – O evangelho do Coiote


Quando escreveu as primeiras histórias do Homem-animal, Grant Morrison imaginava que estava produzindo uma minissérie em quatro capítulos, o que de fato tinha sido a encomenda. Mas quando os editores da DC viram o resultado dessas primeiras histórias, gostaram tanto que resolveram transformar o título numa série mensal e convidaram Morrison para continuar escrevendo.

Ocorre que o roteirista não tinha a menor ideia do que fazer a seguir. Ele resolveu então, produzir uma história metalinguística focada no Coiote do desenho do Papa-Léguas. “Enquanto escrevia, eu estava convencido que aquilo era uma porcaria sem tamanho, impenetrável, e que seria o último prego no caixão da minha carreira em ascensão nos gibis de super-heróis dos Estados Unidos”.

A sequência de regeneração é impressionante. 


Surpreendentemente, essa história foi um sucesso estrondoso, tornando-se a mais lembrada pelos fãs da fase de Morrison com o personagem.

Na trama, um caminhoneiro dá carona para uma garota que pretende ir para Los Angeles com o sonho de ser atriz. Ele explica que passou três anos nas ruas daquela cidade e ainda seria um viciado em heroína ou um moribundo da ala de aidéticos, não fosse o amigo Billy. “Foi ele que me deu essa cruz de prata maciça. Pendurei aqui e nunca mais tirei. Billy e o bom Deus salvaram minha vida”.

Uma sequência de desenho animado mostrada de forma realista. 


À certa altura, os dois atropelam um lobo ou coiote. E aqui temos uma impressioante sequência em que o desenho de Chas Truog e Doug Hazlewood e o texto de Grant Morrison se encaixam perfeitamente. O coiote começa a se regenerar em seis quadros horizontais. “Dor. Dor imensa. O recém-ativado sistema nervoso subitamente congestionado de sinais frenéticos parecer rede de telefone congestionada. A criatura se convulsiona gemendo”.

A história pula para um ano depois. O Homem-animal está brigando com a mulher porque nesse meio tempo ele se tornou vegetariano e decidiu simplesmente jogar no lixo toda a carne da geladeira, sem consultar a esposa. Para espraiar, ele decide sair voando.

A sequência muda de novo para o deserto. O caminhoneiro do início está colocando uma armadilha. O texto conta que duas semanas depois do atropelamento, o amigo Billy morreu num acidente, a mãe morreu de câncer, ele perdeu o emprego e um recorte de jornal mostra o que aconteceu com a garota do início da história, a que sonhava ser atriz. O título diz: “Prostituta trucidada”.

O desenho muda para o estilo de animação. 


Ele se convece de que tudo isso é culpa do ser que ele atropelou na estrada e resolve matá-lo. O que vemos a seguir é uma daquelas famosas cenas de desenho animado, mas numa versão realista, com o personagem levando um tiro, caindo no penhasco (“Por um momento, os pés pedalam no ar. Então ele cai”). Já caído, quando ele começa a se regenerar, sombras crescem no solo e uma pedra enorme cai sobre ele.

Quando o Homem-animal chega ao local, o coiote lhe entrega uma folha de papel que conta sua história e aqui o traço muda para algo no estilo desenho animado.   O que é mostrado é um mundo em que animal ataca animal, num eterno ciclo de violência. Um dia Ardiloso disse chega e foi à presença de Deus... e Deus é mostrado como um desenhista de desenho animado. Ele pede o fim do eterno ciclo de violência. O deus-desenhista decide mandar o coiote para o inferno acima (o nosso mundo): “Enquanto você viver e carregar o sofrimento do mundo, manterei a paz entre os animais. Tal é meu julgamento”.

Há um leve toque de humor triste quando o Homem-animal diz: “Mas eu... não sei ler isso”.

O evangelho do Coiote conseguia misturar metalinguagem com uma história tocante, sensível e uma leve crítica social a respeito da violência dos desenhos animados, ao mesmo tempo em que era uma grande homenagem às animações da Warner (dona da DC Comics).

Essa história mostrou que Morrison era um dos grandes roteiristas da geração de britânicos que invadiram os comics americanos e transformou a revista de um personagem desconhecido, do time C da DC, numa das mais badaladas do mercado americano. 

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