segunda-feira, setembro 02, 2024

O livro dos códigos

 

              
Os códigos existem para facilitar a comunicação. São eles que nos dizem o que pode e o que não pode, o que representa algo e o que não representa nada. Sem eles, não seria possível se comunicar nem mesmo através de gestos, pois também esse tipo de comunicação passa por uma codificação. Mas existem situações em que códigos são criados com o objetivo específico de tornar o texto transparente para quem tem a chave e absolutamente incompreensível para quem não a tem. São as cifras secretas, utilizadas principalmente na política e na guerra.
              O Livro dos Códigos, de Simon Sigh, lançado recentemente pela editora Record, trata desses últimos. O alentado volume de quase quinhentas páginas trata da história dos códigos secretos e da luta entre dois times, os criptógrafos, que os criavam e tinham como objetivo mantê-los inquebráveis, e os criptoanalistas, que objetivavam descobrir a mensagem por trás de um emaranhado superficialmente incompreensível.
              É um livro altamente aconselhável para quem gosta de história, mas principalmente para quem gosta de exercitar a massa cinzenta. O Livro dos Códigos se encaixa naquela categoria de livros que são para o cérebro o que Solange Frazão é para a panturrilha.
              O aspecto histórico fica por conta dos momentos dramáticos que envolveram a criação ou a quebra de códigos. Não por acaso, o volume começa com Maria, a Rainha da Escócia, que, presa na Inglaterra, estava diante de uma corte, sendo acusada de articular o assassinato da rainha Elizabeth.
              Na verdade, os católicos ingleses pretendiam de fato assassinar Elizabeth, a rainha protestante, e colocar em seu lugar Maria. Mas queriam antes ter a aprovação de Maria. Assim, escreveram para ela uma mensagem cifrada, pedindo autorização para o levante. Maria respondeu positivamente, também através do código secreto.
              Acontece que o primeiro secretário da rainha Elizabeth havia interceptado a mensagem e prendido os revoltosos. Restava julgar Maria. Mas, embora desprezasse sua prima, a rainha da Inglaterra tinha razões de sobra para não condena-la à morte. Primeiramente porque a ré era uma rainha de outra nação e muitos contestavam a autoridade de uma corte inglesa sobre ela. Além disso, a morte de Maria poderia criar um precedente perigoso. Se um júri poderia enviar uma rainha à morte, então talvez o populacho se sentisse tentado a fazer o mesmo com Elizabeth. Por último, havia o laço de sangue.
              A condenação de Maria dependia de provas de que ela participava do plano e isso só poderia ser conseguido com a quebra da cifra.
              Os revoltosos haviam criado um código em que cada letra era representada por um símbolo. Além disso, havia nulos, ou seja, sinais que não tinham valor algum e só serviam para complicar a vida de quem tentasse decifrar a mensagem.
              Um leigo que olhasse a mensagem acharia que seria impossível decodificá-la sem a chave apropriada.
              O mesmo ocorreria com uma cifra de César. Essa forma de codificar mensagens, criada pelo famoso estadista romano consistia em trocar as letras da mensagem original pelas terceiras letras seguintes do alfabeto. Assim, o A virava D, o B virava E e assim por diante. Mas, da mesma forma que a mensagem poderia ser escrita deslocando-se três casas, o criador do código poderia deslocar cinco, seis ou até vinte e cinco casas. Um general inimigo que interceptasse a mensagem poderia ir tentando as combinações possíveis, mas existem 400.000.000.000.000.000.000.000.000 combinações possíveis. Isso significa que ele levaria um bilhão de vezes o tempo do universo para verificar todas as possibilidades. Parece impossível, não? No entanto, meus alunos mais espertos conseguem realizar tarefa semelhante em muito menos tempo. O recorde é de cinco minutos.
              O segredo para a decodificação está na redundância.  Sabendo em que língua foi escrita a mensagem, basta ter uma tabela de freqüência da língua e verificar no texto quais são os sinais mais redundantes e os menos redundantes.
              No português, por exemplo, as letras mais redundantes são as vogais, especialmente o A e o E. Letras como o X e o Z são as menos redundantes. Sabendo-se isso, basta trocar os sinais mais redundantes pelas letras mais redundantes e ir verificando as combinações. Além disso, há a redundância sintática. Em português, geralmente temos uma estrutura de sujeito – verbo – predicado. O sujeito geralmente é composto de um substantivo acompanhado de um artigo. Se o artigo for composto de apenas um sinal, deve ser ou o O ou o A. Se forem dois sinais, o artigo provavelmente está no plural: OS, AS, o que nos dá mais uma letra (S). Se o criptoanalista tiver uma idéia do assunto da mensagem, ele pode experimentar testar palavras que ele acredita constar na mensagem. Isso é chamado de cola. Se, por exemplo, sabemos que a mensagem trata do horário em que será feito um ataque podemos usar a palavra HORA como cola e testá-la na mensagem em vários pontos, até chegar a um resultado positivo. Descoberta uma palavra, o resto é fácil. Quem já jogou palavras-cruzadas sabe que não é tão difícil descobrir o significado de palavras incompletas. Se temos, por exemplo, o conjunto M_NS_GE_, é óbvio que se trata da palavra MENSAGEM.
              Esse método é chamado de análise de freqüência e foi precisamente a técnica utilizada pelo primeiro secretário da rainha Elizabeth para decodificar a mensagem e levar Maria ao cadafalso.
              A pobre rainha da Escócia morreu porque sua cifra era fraca, fácil de ser decodificada.
              Mas, com o tempo, os codificadores foram sofisticando cada vez mais seu trabalho, assim como os criptoanalistas e os códigos passaram a ser essenciais em episódios de guerra.
              Exemplo disso foi o telegrama Zimmermann. Durante a I Guerra Mundial, os ingleses fizeram todos os esforços possíveis para convencer os EUA a entrarem no conflito. Sem sucesso. O presidente americano, Woodrow Wilson, não queria sacrificar a juventude de seu país e estava convencido de que a guerra só terminaria com um acordo negociado. Woodrow saudou a escolha do novo ministro das relações exteriores da Alemanha, Arthur Zimmermann, que parecia querer uma negociação. Os jornais norte-americanos publicaram manchetes como NOSSO AMIGO ZIMMERMANN.
              Mas, na verdade, o novo ministro tinha outros planos em mente. Sua idéia era fazer uma guerra marítima total. O Kaiser havia feito uma promessa ao presidente norte-americano de que os submarinos emergiriam antes de realizar um ataque, o que evitaria acidentes com navios dos EUA. Se permanecessem no fundo do mar, os submarinos seriam invencíveis contra os navios ingleses. Como uma guerra submarina total afundaria navios norte-americanos, forçando Woodrow a entrar no conflito, Zimmermann planejava criar uma guerra na América, financiando uma ofensiva do México contra os EUA.
              O plano foi enviado pelo rádio para o embaixador alemão no México, que deveria negociar com as autoridades mexicanas.
              Acontece que os ingleses interceptaram a mensagem e a decifraram, passando-a para o embaixador norte-americanos na Inglaterra. Os EUA não tiveram outra alternativa, senão entrar na guerra. Segundo Sigh, “uma única descoberta feita pelos criptoanalistas da Sala 40 conseguira sucesso onde três anos de diplomacia tinham fracassado”.
              Mas o momento mais emocionante da atuação dos criptoanalistas foi a Segunda Guerra Mundial.  
              Os alemães haviam inventado uma máquina capaz de cifrar uma mensagem com grande rapidez e enorme confiabilidade. Chamava-se Enigma e era parecida com uma máquina de escrever, com a diferença de que uma letra, ao ser escrita, era trocada por outra letra de um alfabeto codificado. Havia uma série de misturadores, o que faziam com que a mensagem fosse codificada em vários alfabetos cifrados. Além disso, havia cabos que trocavam as letras, assim o A poderia ser codificado como B e assim por diante. A ordem interna dos misturadores e dos cabos podia mudar completamente o código e isso era feito todo dia pelos nazistas. Ou seja, a cada dia os germânicos tinham um código altamente seguro e diferente do usado no dia anterior, o que fazia com que os ingleses tivessem que decifrar o código diariamente. Além disso, a mesma máquina que era usada para codificar, poderia ser usada para decodificar. Um texto cifrado datilografado nela dava origem ao texto original.
              Os ingleses conseguiram com os poloneses uma cópia da máquina Enigma, mas isso não ajudava muito, pois a Enigma poderia ser ajustada de acordo com 10.000.000.000.000.000 chaves diferentes. Seria necessário mais tempo do que  a idade total do universo para chegar cada ajuste e, sinceramente, até lá a guerra já teria acabado.
              A Enigma seria indecifrável, não fosse pela genialidade de Alan Turing, um dos autores que dariam origem ao ramo da ciência conhecido como cibernética.
              O maior inimigo de um código secreto é a redundância. É ela que permite ao criptoanalista decifrar a mensagem. Na Enigma havia pouca redundância, mas, observando os textos que haviam sido decifrados, Turing percebeu uma redundância na mensagem. Muitas delas obedeciam a uma estrutura rígida. Ele descobriu, por exemplo, que os alemães mandavam relatórios sobre a previsão do tempo logo depois das seis horas da manhã. Dessa forma, uma mensagem interceptada nesse horário certamente conteria a palavra alemã para tempo, WETTER. Como havia um protocolo rigoroso sobre a formatação dessas mensagens, Turing poderia ter idéia até mesmo de onde a palavra WETTER estaria na mensagem. Descoberto o texto cifrado de WETTER, bastava ajustar a máquina que transformariam a palavra no texto cifrado. Feito isso, a Enigma revelava completamente seus segredos.
              As mensagens decifradas pelos ingleses foram fundamentais para a vitória aliada na Segunda Guerra, tanto que Winston Churchill chegou a visitar o local em que ficavam os decifradores, em Bletchley Park.

              Entretanto, Turing jamais pôde coletar os frutos de seu trabalho. Em 1952 ele foi se queixar em uma delegacia de que havia sido roubado. Ingênuo, ele revelou que estava tendo um relacionamento homossexual no momento do furto. A polícia prendeu-o, acusando-o de “Alta indecência, contrária à seção 11 da lei Criminal, Emenda de 1885”. Os jornais divulgaram a notícia, Turing foi julgado, o governo britânico tomou-lhe seu passe de segurança e o retirou dos projetos de pesquisa relacionados com o desenvolvimento do computador.  No dia 7 de julho de 1954 ele foi para seu quarto, levando uma maçã e um jarro com cianeto. Mergulhou a maçã na solução e comeu. Com apenas quarenta e dois anos morria um dos maiores gênios da cibernética e da criptoanálise.

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