Uma discussão que tem intrigado intelectuais, artistas e
pesquisadores é a cultura brasileira. O que é cultura nacional? Quais são as
suas manifestações legítimas? Ela existe mesmo, ou, ou somos simples
imitadores? Uma resposta curiosa para essas perguntas é representada pela
antropofagia cultural.
Esse ponto de vista ganha uma metáfora na desafortunada
viagem do Bispo Sardinha. O episódio se passou na época do Brasil Colônia. O
sacerdote teve sérias desavenças com o Governador Geral do Brasil, em Salvador.
A coisa se tornou tão séria que a Corte o chamou a Portugal para que explicasse
a situação. Ainda na costa brasileira, o barco naufragou e os sobreviventes
nadaram desesperados até a praia. Deram azar. Os índios antropófagos estavam lá, esperando que a comida chegasse
até eles. Que me desculpem o trocadilho, mas jantaram o sardinha.
O mesmo fez o povo brasileiro com a cultura que veio de
fora. Ela foi jantada e digerida. Danças típicas, como a quadrilha e o carimbó,
tiveram sua origem nos salões nobres da Europa, mas aqui foram misturadas com o
tempero índio e negro, transformando-se em
algo completamente diferente, típico do Brasil, embora tenha suas
origens no estrangeiro.
Quando Gilberto Gil e os Mutantes introduziram a guitarra
elétrica na MPB, muitos chiaram. Para os patrulheiros de plantão, usar esse
instrumento era se render à dominação cultural americana. Quem conhece a
Tropicália sabe que foi exatamente o oposto que aconteceu. A mistura de ritmos,
instrumentos e influências deu origem a algo completamente novo e inusitado,
genuinamente nacional. Outro exemplo é Raul Seixas com seu rock misturado com
forró, repente e baião
Mais recentemente tivemos outros exemplos, ainda na música.
Chico Science e Pato Fu fazem uma música sem fronteiras, misturando ritmos e
dando continuidade a uma tradição que remonta aos primeiros antropófagos que
jantaram os náufragos europeus.
O mesmo fenômeno pode ser visto no cinema, literatura,
quadrinhos e televisão. Veja-se o caso das telenovelas. Inicialmente realizadas
com roteiros importados do México ou de Cuba, elas acabaram tomando uma “cara”
nacional. O Brasil inventou um jeito de fazer novela que é reconhecido em todo
o mundo e supera em qualidade até mesmo quem nos serviu de modelo.
Fechar-se em si próprio não parece ser a característica do
brasileiro. Estamos sempre abertos ao novo, ao que vem de fora. Exemplo disso
foram os imigrantes que ajudaram a construir o país e fizeram de nossa
população um fenômeno de mistura e beleza. Observar as arquibancadas de um jogo
do Brasil é observar um espetáculo miscigenação. Há desde pessoas negras a
loiras de olhos azuis.
A maioria de nosso povo é uma mistura de negros, índios,
portugueses, espanhóis e italianos. O mesmo ocorre com nossa cultura. Nossa
ótica é a da mistura. A cultura nacional parece ser uma mescla de várias outras,
mas é também extremamente original.
Somos, portanto, antropófagos. Antropófagos culturais.
Mas para que o canibalismo não degenere em macaquismo
(imitação pura e simples) são necessários alguns cuidados.
O primeiro deles, claro, é preservar o que já temos. Não se
faz antropofagia abandonando o que já existe para adotar o que vem de fora, e
sim misturando o alienígena com o nacional. Como mixar rock com maracatu.
Ficção-científica com cordel. Chiclete com banana. Se não preservamos e não
damos valor ao que já faz parte da cultura nacional, então seremos eternos
imitadores.
Um outro cuidado é fazer uma leitura crítica do que chega
até nós. Os índios antropófagos escolhiam as melhores partes para devorarem
(preferencialmente o cérebro, pois se acreditava que a inteligência da vítima
passaria para o guerreiro). Andar por aí usando camisas de universidade
americanas ou vestido de cowboy não é antropofagia, é macaquismo.
Podemos, claro, aproveitar até mesmo o lixo cultural que
chega até nós, mas devemos fazer isso criticamente. Isso sim é antropofagia.
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