segunda-feira, novembro 29, 2021

Mort Cinder, o homem das mil mortes

 


Hector Oesterheld é certamente um dos maiores escritores de quadrinhos de todos os tempos, rivalizando apenas como Alan Moore. Alberto Breccia é um dos mais revolucionários desenhistas de todos os tempos, tendo criado um estilo que influenciou diversos outros artistas, entre eles Frank Miller. A união desses dois grandes talentos só poderia resultar em uma obra-prima. E essa é a melhor expressão para descrever o álbum Mort Cinder, publicado recentemente pela editora Figura após uma campanha no Catarse.
Mort Cinder poderia ser descrito como a história de um homem imortal, mas essa é apenas uma simplificação grosseira. Mort Cinder é uma história de realismo fantástico, um suspense inigualável, uma obra com forte conteúdo político e histórico.
Quando a série começou a ser publicada na revista Misterix, Breccia pediu a Oesterheld que atrasasse  o surgimento do protagonista porque ainda não havia se decidido quanto à sua caracterização. Mestre absoluto da narrativa, Oesterheld transformou essa limitação em um dos maiores méritos da história. Assim, acompanhamos um antiquário, Ezra Winston, e diversos fatos estranhos que ocorrem com ele, fatos que irão se acumulando até o encontro com Mort Cinder, renascido após ser enforcado. Mas para presenciar esse renascimento – e ajudar o herói – Ezra precisará enfrentar os misteriosos olhos de chumbo. Isso introduz um senso de mistério único na história e faz desse senso de mistério o motor da narrativa. Também introduz uma espécie de realismo fantástico, que lembra muito Jorge Luís Borges.
Soma-se isso ao texto poderoso de Oesterheld: “A estrada se faz trilha. Os retalhos de neblina se alongaram à minha passagem. Rãs coaxaram e era como avançar por um oceano morto, já decomposto. A sombra ao meu lado se mexeu”. Quantos roteiristas de quadrinhos chegaram a esse nível de refinamento do texto? Quantos conseguiram criar uma atmosfera tão opressiva apenas com algumas palavras?
Por outro lado, a arte de Breccia é tão impactante, tão inovadora em que cada quadro merece ser visto várias e várias vezes. Breccia não tem limites: usa borrões, cortes de gilette, parece não existir nada que ele não experimente para ajudar a criar o clima da HQ.
Então imagine uma HQ em que cada quadro é uma obra de arte a ser vista e deleitada. E no qual cada balão tem a força e o valor de uma poesia inteira. Esse é Mort Cinder.
O álbum tem 232 páginas, em formato em capa dura, formato A4. É uma publicação de luxo, cujo formato permite apreciar melhor a arte de Breccia. Há um inconveniente: como a publicação original da série, a revista Misterix, variou do formato horizontal para o vertical, a leitura de algumas páginas fica prejudicada, obrigando o leitor a virar o volume. Mas é compreensível: isso foi feito para evitar adulterar a arte original.

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