segunda-feira, maio 29, 2023

Elis – a cinebiografia

 

Elis Regina foi uma das maiores, senão a maior cantora brasileira de todos os tempos. Não admira, portanto, que houvesse interesse fazer uma cinebiografia dela, numa era em que cinebiografias de músicos proliferam.

Quem aceitou o desafio foi o diretor Hugo Prata, que escalou a atriz Andreia Horta para o papel principal, em filme lançado em 2016 e disponível atualmente na Netflix.

A película segue uma linha cronológica, começando com a chegada da cantora ao Rio de Janeiro, junto com o pai, onde tinha ido gravar seu primeiro disco. Mas ela chega exatamente quando estava se concretizando o golpe militar de 1964, o que faz com que o produtor desista de lançar qualquer coisa naquele momento.

Antes de voltar para casa, Elis participa de um teste para gravar músicas de uma peça estrelada pela musa da boça nova, Nara Leão, é rejeitada (“não queremos cantoras de churrascaria”, diz um dos avaliadores). Depois ela faz questão de ir num show da cantora, onde se espanta com o tom intimista e pouco empolgante.

Esses dois momentos são de fundamental importância narrativa. Eles demarcam a diferença de Elis com o que então era visto como música brasileira e ajudam o expectador a entender porque ela foi tão revolucionária. Elis cantava para fora, era toda expressiva, de corpo, de voz, cantava rindo, fazendo caras e caretas. Como escreve um jornalista, citado no filme, ela surge num momento em que as pessoas precisavam de expressar diante do tom de censura que se instalaria nos anos seguintes.  O modo de cantar de Elis abre caminho para outras musas como Gal Costa e Rita Lee, estabelecendo as bases do que viria a ser conhecido como MPB.

 Nesse sentido, a atuação de Andreia Horta contribuiu muito para que o filme demonstre a impressão correta. Embora não consiga mimetizar a voz de Elis regina (quem conseguiria?), ela imita perfeitamente as expressões, o jeito de andar, a alegria contagiante no palco.

Nas cinebiografias, um item obrigatório é construir a narrativa a partir de músicas do biografado e Hugo Prata faz isso com perfeição, ajudado principalmente pelo vasto e diversificado repertório da cantora, cujas interpretações vão do mais alegre ao mais depressivo.

Essa sincronia tem seu ápice num dos momentos mais impactantes do filme: a relação de Elis com os militares. Em turnê pela Europa, ela dissera, em entrevista coletiva, que o Brasil era governado por gorilas e que pessoas eram torturadas e desapareciam. Quando volta ao Brasil, ela é levada para um interrogatório, onde ameaçam tirar o filho dela. Depois passam a segui-la a todos os lugares.

A única forma de se livrar da perseguição, segundo os próprios  militares, é cantar na Olimpíada do Exército, um gesto de submissão aos militares, o que ela faz de forma altiva. Mas aí a reação vem do extremo oposto: da esquerda. Henfil faz uma caricatura dela saindo de um túmulo e cantando para Hitler. Jovens vaiam ela a ponto de não deixá-la cantar, num espécie de cancelamento da era pré-internet. A música que ela canta durante esse festival de vaias é o tango Cabaré, cuja letra diz: “De tomara-que-caia surge a crooner do norte/Nem aplausos, nem vaias, um silêncio de morte/ Ah, quem sabe de si nesses bares escuros/Quem sabe dos outros, das grades, dos muros”. Unida à ótima interpretação da atriz, percebemos a música como uma resposta de Elis às vaias.

Em tempo, anos depois Elis e Henfil se reconciliariam quando ela grava a belíssima O bêbado e o equilibrista, que traz em sua letra o trecho “Meu Brasil!/ Que sonha com a volta do irmão do Henfil/ Com tanta gente que partiu/Num rabo de foguete”.

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