quinta-feira, junho 08, 2023

Escrevendo quadrinhos: Não mostre tudo

   Eu costumo dizer que quadrinho é a arte da elipse. Elipse é uma figura de linguagem em que pulamos parte da frase, deixando restante subentendido. Por exemplo: Maria gosta de mação, João, de morango. O verbo gostar foi pulado, mas o sentido se manteve – é uma elipse.

O que na literatura é um recurso ocasional, nos quadrinhos ocorre o tempo todo. Há sempre um pulo entre um quadro e outro, que deve ser preenchido pelo leitor (aqueles que criticavam os quadrinhos por não estimularem a imaginação do leitor, dando tudo pronto, certamente nunca leram quadrinhos).
Observe o exemplo abaixo, de Will Eisner.

Entre o momento em que o malandro está falando e o momento em que ele está caído no chão, alvejado, houve uma série de ações. O gangster tirou o revólver do bolso (ou de uma gaveta na mesa) apontou, atirou, a bala fez o trajeto da arma até o corpo do rapaz, ele foi atingido e, finalmente caiu. Tudo isso ocorre dentro da cabeça do leitor.
Os melhores quadrinistas são aqueles que conseguem lidar com a elipse, mostrando apenas os necessário, deixando o leitor participar da história.
Observe, por exemplo, a tira abaixo, do Pelezinho. 

O humor está todo na elipse, a graça está em imaginar o que aconteceu entre o momento em que o Pelezinho faz o gol, pula para comemorar e o constrangedor momento em que ele está no chão, com um pássaro nas mãos.
 As elipses pode, inclusive, dar o ritmo da história. Elipses mais curtas, que mostram muito, podem demonstrar lentidão. Na história clássica do Demolidor A queda de Matt Murdock, há um ponto em que Murdock está acabado, derrotado, em um hotel barato, com poucos dólares no bolso. Deitado na cama, ele reflete sobre o que lhe aconteceu e concluí que tudo faz parte de um plano do Rei do Crime e decide se levantar para se vingar. A sequência parece uma câmera lenta: ele começa a se levantar da cama, ele se levanta, ele anda, ele pega na maçaneta da porta.... e no quadro seguinte ele está de volta à cama. A impressão que se tem é de que o levantar para sair foi feito com grande esforço, lentamente, enquanto que a volta para a cama foi rápida, o que mostra o quanto a personalidade do herói foi quebrada.

Na história Pig Ficiton, com desenhos de Antonio Eder, eu usei a elipse para demonstrar rapidez dos acontecimentos. O pulo entre uma ação e outra é tão grande que parece que tudo aconteceu muito rápido, surpreendendo o porquinho que imaginava que iria escapar.
Ou seja: na hora de escrever seu roteiro, tenha em mente que nem tudo precisa ser mostrado. Às vezes o que não mostramos é mais importante do que aquilo que é visto pelo leitor. 

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