sexta-feira, julho 19, 2024

Uma família segurada

 


Era uma família segurada. O pai, Rivaldo, fizera a primeira apólice como presente de casamento para a esposa. Se ele morresse nas núpcias, já estava tudo arranjado...

Em seguida nasceu a primeira filha, Patrícia, e Rivaldo providenciou logo um seguro para a esposa, tendo como beneficiária a filha.

Em uma noite escura e tempestuosa, berrara pela primeira vez Roberto, o caçula. O pai achou que era um mal agouro e fez um seguro para Patrícia, tendo como beneficiário o irmão.

Desde então, a família pegou a febre do seguro. Carro, bicicleta, casa, móveis, até os seios de Márcia (que, aliás, eram belíssimos) foram segurados.

Viveram felizes por vários anos, coberto pelo manto protetor de duas ou mais dezenas de apólices. Até aquela tarde...

Márcia fora visitar o marido no escritório e tivera de esperar ao lado da Secretária.

- O seu Rivaldo está ocupado. A senhora espera um instantinho... – sugeriu a Secretária.

- Só dez minutos, advertiu Márcia.

Esperou meia-hora. Só então a porta se abriu e saiu dela um homem gordo, vestindo um terno antigo e suando bicas. Era um segurador. Márcia conhecia-o muito bem. Vira-o várias vezes em sua casa. Mas, de tudo que tinham, apenas um candelabro velho que ficava jogado no porão ainda não fora segurado. Não, não podia ser. Não, a explicação era outra: o sacripanta arranjara uma amante. E, não satisfeito, ainda fazia um seguro para a concubina... Hipócrita, desavergonhado, fanfarrão!

Havia de se vingar!

A partir daquela tarde, a vida de Rilvado passou a ser uma contagem regressiva. Até que aconteceu. Numa noite de chuva, o freio falhou. Os pneus derraparam, o carro despencou num despenhadeiro e explodiu. Não sobrou muito para ser investigado.

Márcia recebeu o seguro do marido e do carro. Estava feita! Comprou uma casa nova – bem maior – contratou um motorista, colocou o resto do dinheiro no banco e viveu numa boa desde então. Ou viveria, se não fosse aquela tarde...

Se havia uma coisa que enervava completamente Patrícia, era a matemática. Odiava fazer as lições de casa e já tinha repetido um ano na escola por causa da dita. Naquela tarde, ela e a mãe tiveram uma briga dos diabos. Márcia queria obrigá-la a fazer a lição de casa.

- Eu não preciso fazer a lição de casa, eu sou rica! – gritou a garota.

- Ah, é? Pois fique sabendo que enquanto eu estiver viva, você não toca em um tostão... aliás, pode ir esquecendo a mesada, que este mês não tem!

Foi uma briga feia! Feia demais por sinal. Se fosse um pouco mais esperta, Márcia teria se preocupado com a expressão maquiavélica que a filha passou a ostentar desde então. Passava horas trancada no quarto e andava com ares de quem pensa – o que, aqui para nós, era bastante raro naquela família...

Por fim, aconteceu. Foi durante o banho. Um fio solto provocou um curto circuito e eletrocutou a dona da casa. Quando finalmente desligaram a chave, não havia sobrado muita coisa de Márcia para ser enterrado.

Estavam ricos. Patrícia com 18 anos e Roberto com 16, sozinhos em casa, donos de seu futuro. Era a vida que qualquer jovem pediria a Deus, mas não Patrícia. Pegara o gosto pela coisa e a lembrança de que teria de dividir a herança com o irmão simplesmente a aterrorizava. Resolveu, então, matá-lo. Mandou preparar um jantar especial, dispensou os empregados e armou o seu circo.

- Jantar à luz de velas, maninha? – perguntou Roberto, entrando na sala.

- Claro! Antes de morrer, papai fez um seguro para este candelabro velho. Coloquei aí para ver se quebra... pedi à cozinheira para fazer seu prato predileto... isso tudo para o meu irmãozinho predileto...

Sentaram-se.

- Vejo que temos vinho. – observou Roberto.

- É do Porto. Não faz mal mexer na adega de vez em quando, não é? Especialmente para ocasiões especiais.

- Claro, passe a garafa.

- Não, deixe que eu o sirva...

- Está bem, mas só se você deixar que eu a sirva...

- Claro.

Serviram-se. Disfarçadamente, Patrícia despejou um pouquinho de pó no copo. Era um veneno feito especialmente para não deixar vestígios. Tivera um grande trabalho para conseguir...

Tilintaram os cristais, beberam de uma só vez e ficaram sorrindo um para o outro.

Patrícia foi a primeira a falar:

- Sabe, maninho, que você é um tipo insuportável?

- Pode ter certeza de que tenho os mesmos sentimentos com relação a você...

Patrícia cortou-o:

- Mas eu tomei providências para que isso não dure muito!

De repente uma dor aguda despontou como uma alfinetada no peito de Patrícia. O sorriso desapareceu do rosto de Roberto. Foi substituído por grandes rugas de dor.

- Não me diga que... – gemeu ele.

- ... você colocou... – continuou Patrícia.

- ...Veneno no vinho! – completaram juntos.

Deram um último suspiro e morreram um nos braços do outro. Teria dado um bom dinheiro de seguro...

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